5. Mudanças visando à democratização do processo
O Código de Processo Civil de 1973 ainda guarda uma visão de processo estritamente individual. Conceitos como o de coisa julgada, interesse de agir, legitimação processual, ainda são marcados pelo individualismo.
A intervenção de terceiros, por exemplo, dificulta bastante a ampliação do rol de participantes do desenrolar processual. O processo é tradicionalmente um ambiente fechado à participação popular. Somente as partes podem argumentar. O assistente deve demonstrar um interesse jurídico na causa para poder ser admitido como tal.
Além disso, é preciso diminuir os riscos e os custos do processo.
A onda democrática que cresce a cada dia exige um processo judicial mais aberto à participação popular. Nesse sentido, propõe-se as seguintes mudanças:
a) prever a intervenção processual de "terceiros" que, a rigor, não teriam interesse jurídico, mas apenas de fato (por exemplo, associações de moradores, conselhos de classe, ONG´s etc), sobretudo em temas envolvendo matéria constitucional (amicus curiae);
Justificativa: é fundamental ampliar ao máximo a possibilidade de participação dos diversos segmentos sociais interessados nos resultados do julgamento, a fim de legitimar e democratizar cada vez mais o processo. Embora tratando do controle concentrado de constitucionalidade, o Min. Celso de Mello, ao relatar a ADIn 2130/SC, compreendeu adequadamente a necessidade de se ampliar o rol de participantes do processo decisório, conforme se pode observar no seguinte trecho: "A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional". Ao longo de seu voto, o Ministro Celso de Mello argumenta que a pluralização do debate constitucional permitirá ao julgador dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia, garantindo, assim, uma maior efetividade e legitimidade à decisão, que será enriquecida pelos elementos e pelo acervo de experiências que os participantes do processo poderão fornecer.
b) introduzir um novo inciso ao art. 927, que estabelece os requisitos específicos das ações possessórias, a serem atendidos pelo autor, para que seja exigido também que o autor prove o cumprimento da função social da propriedade;
Justificativa: de acordo com o Juiz Federal Leonardo Resende Martins 13, trata-se de uma tentativa de densificar o princípio constitucional da função social da propriedade, projetando-o no específico âmbito das ações possessórias. Com efeito, dispõe a Constituição de 1988, em seu art. 5o, inc. XXII, que "é garantido o direito de propriedade" e, logo no inciso seguinte, que "a propriedade atenderá a sua função social". O Constituinte foi insistente, talvez por temer a inefetividade de tais dispositivos, e os repetiu no art. 170, inc. II e III, quando tratou dos princípios da ordem econômica. Ora, não é preciso empregar uma hermenêutica sofisticada para entender que "é garantido o direito de propriedade, desde que esta cumpra sua função social". Em outras palavras, não há proteção estatal alguma à suposta propriedade que não cumpra sua função social, que não vise a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Assim, para auferir do Estado a tutela possessória, deve o autor comprovar, mesmo que sumariamente, que vem dando destinação sócio-ambiental ao bem que diz possuir. A introdução do novo dispositivo teria finalidade retórica, porquanto a exigência já poderia ser extraída de uma interpretação constitucional construtiva.
c) tornar obrigatória a conciliação prévia nos casos de conflitos coletivos pela posse da terra urbana ou rural, com a participação do Poder Público, do Ministério Público, facultada a participação de entidades da sociedade civil;
Justificativa: os conflitos envolvendo a posse da terra urbana ou rural exige do juiz a efetiva tentativa de buscar uma solução definitiva para o litígio. Portanto, é interessante prever uma obrigatória tentativa de conciliação antes de proceder a uma cômoda decisão formal sobre o caso.
d) prever a possibilidade de concessão do benefício da justiça gratuita às pessoas jurídicas que demonstrarem, cabalmente, a insuficiência de recursos para as despesas do processo;
Justificativa: o Superior Tribunal de Justiça já tem reconhecido que "pelo art. 5º, LXXIV, da CF/88, é de se estender à pessoa jurídica o benefício da justiça gratuita, ante a comprovação de que o titular da microempresa de minguados recursos, independentemente de ter ou não família, encontra-se em periclitante penúria, incapaz de arcar com os antecipados ônus processuais" (Precedentes citados: REsp 161.897-RS, DJ 10/8/1998, e REsp 70.469-RJ, DJ 16/6/1997. Resp 200.597-RJ, Rel. Min. Ruy Rosado, julgado em 18/5/1999). É necessário que a lei processual regulamente a matéria, até para que se evitem abusos.
6. Mudanças visando à informatização do processo
A informatização do processo é uma tendência inevitável e veloz. Rapidamente, o Judiciário começa a se acostumar com o peticionamento eletrônico, com o sistema push, com a audiência virtual, com o acompanhamento processual on-line ou via celular (WAP), com banco de dados superalimentados com jurisprudência, legislação e doutrina, com intimação por correio eletrônico, com diário da justiça virtual, com automação de rotinas, com digitalização dos autos etc.
É óbvio que a legislação processual não está preparada para regulamentar esse novo processo que surge. São necessárias muitas mudanças contemplando a automação das rotinas e das decisões judiciais, a digitalização dos autos, a expansão do conceito espacial de jurisdição, a segurança e autenticidade dos dados processuais, os poderes "cibernéticos" dos juízes, a validade das provas digitais e por aí vai.
Em 2002, houve um saudável debate entre a AJUFE – Associação dos Juízes Federais e a OAB no campo da informatização do processo.
A AJUFE apresentou, através de parlamentar (Deputada Federal Luisa Erundina), projeto de lei tratando da informatização do processo judicial. Nesse projeto, consolidam-se, em nível legal, algumas iniciativas que já vinham sendo implementadas pelos tribunais, como, por exemplo, a validade da intimação do advogado pelo sistema push ou o peticionamento eletrônico mediante prévio credenciamento do advogado. Em síntese, prevê o referido projeto: (a) que o uso de meio eletrônico na comunicação dos atos processuais será permitido, considerando como data da publicação a da disponibilização dos dados no sistema eletrônico para consulta externa (diário oficial virtual), (b) que a transmissão eletrônica de peças processuais independe da apresentação dos documentos físicos "originais", (c) que intimação pessoal dos advogados poderá ser feita por correio eletrônico com aviso de recebimento eletrônico; (d) que as comunicações entre os órgãos judiciários será feita por meio eletrônico.
Alguns setores da OAB manifestaram-se contra o projeto, apontando algumas falhas e possíveis inconstitucionalidades, e apresentaram sugestões no sentido de se adotar o sistema de assinatura digital, através do conceito de chaves públicas e privadas.
O debate é interessante, mas as propostas não se anulam; pelo contrário, complementam-se.
Em termos legislativos, o ideal é que a autorização para o uso de meios eletrônicos para a prática de atos processuais seja genérica, sem mencionar qualquer sistema, técnica ou método.
Nesse sentido, em carta aberta sobre a regulamentação de procedimentos digitais, o IJURIS – Instituto Jurídico de Inteligência e Sistemas sugere que a lei processual apenas autorize a utilização de meios eletrônicos na prática de atos processuais e procedimentais e disponha sobre os requisitos mínimos de segurança no trânsito de documentos e informações.
Desse modo, seria adotada, num momento inicial, a proposta da AJUFE, ou seja, o credenciamento, que já vem funcionando em diversos tribunais e, posteriormente, com a consolidação do sistema de chaves públicas e privadas, passaria a ser adotada a proposta da OAB. E se, posteriormente, viesse uma solução melhor, adotava-se essa solução sem precisar a toda hora estar mudando a lei.
Portanto, em termos de informatização do processo, sugere-se o seguinte:
a) autorizar a utilização de meios eletrônicos na prática de atos processuais e procedimentais, devendo a lei dispor sobre os requisitos mínimos de segurança no trânsito de documentos e informações;
Justificativa: em relação ao aspecto virtual do processo, sugere-se a retomada do Projeto de Lei da Câmara nº 71, de 2002 ( nº 5.828/2001, na casa de origem), que dispõe sobre a informatização do processo judicial , já aprovado na Câmara dos Deputados e, atualmente, sob o crivo da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania no Senado Federal. No referido Projeto de Lei, são traçadas as linhas básicas da informatização do processo judicial, legitimando, inclusive, a prática de atos processuais virtuais, em todas as esferas do mundo jurídico (processo civil, processo penal, processo trabalhista, etc.). No momento, é importante tal legitimação inicial, a fim de ser extirpada toda e qualquer dúvida quanto à possibilidade e regularidade jurídica do processo virtual, sobretudo para a atuação dos Juizados Especiais Federais e para as Varas de Execuções Fiscais, que têm dado passos concretos rumo à informatização dos feitos judiciais ( uso de meio eletrônico nas comunicações de atos e transmissão de dados; certificação virtual e credenciamentos; envio e recebimento de petições, recursos e demais peças processuais; citações/intimações/notificações virtuais, etc.). Quanto às especificidades das Varas de Execuções Fiscais e dos Juizados Especiais Federais, e seus envolvimentos com a temática processual, recomenda-se a constituição de uma Comissão específica, uma vez que o trabalho virtual existente nas 1ª e 3ª Regiões ainda está incipiente e necessita de verificação técnica e de resultados. No âmbito da Primeira Região, por exemplo, somente a Seção Judiciária do Distrito Federal já tem um projeto piloto em execução há pouco mais de um mês.
b) expandir o conceito espacial de jurisdição, permitindo que o juiz pratique determinados atos mesmo fora de sua jurisdição territorial (por exemplo, a ouvida de testemunhas em outros Estados ou mesmo outros países, através da vídeo-conferência);
Justificativa: a internet é um ambiente sem fronteiras. Não possui limite territorial. Não possui espaço geograficamente delimitado. Por isso, o conceito processual de Jurisdição vai sofrer sérias modificações. Atualmente, o Código de Processo Civil informa que os atos processuais realizam-se de ordinário na sede do juízo (art. 176). Com a internet, inúmeros atos processuais serão realizados neste ambiente "digital", que não tem fronteira. Um juiz no Rio Grande do Sul poderá ouvir, pessoalmente, uma testemunha na Amazônia ou até mesmo em outro lugar do mundo. As regras de competência territorial e internacional deverão ser revistas. As relações jurídicas praticadas na internet não terão nacionalidade. Muitos problemas surgirão com essa expansão do conceito espacial de jurisdição, sobretudo se permanecer a mentalidade tradicional de espaço físico. É preciso, pois, que a legislação esteja atenta a essas mudanças.
c) disciplinar as chamadas provas digitais, reconhecendo-lhes expressa validade;
Justificativa: já são realizadas pela internet inúmeras transações, que vão desde o comércio eletrônico (e-commerce, e-business, e-banking etc.) até relações afetivas. Obviamente, essas transações possuem conseqüências jurídicas e freqüentemente acarretam conflitos. É vasta a influência da tecnologia da informação no campo probatório. Desde simples mensagens de e-mail até complexas fórmulas matemáticas certificadoras da autenticidade de documentos digitais tornam-se comuns nas discussões forenses.Já se aceitam como válidas as certidões negativas de débitos fornecidas, on-line, nas páginas dos órgãos públicos.O STJ reconhece como autêntica a cópia do inteiro teor dos acórdãos disponível na Revista Eletrônica de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (cf. STJ, RESP 327687/SP, 4a Turma, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 21/02/2002). Seria interessante que a legislação também previsse e regulamentasse a validade de tais provas.
d) autorizar a prática automatizada de atos processuais, dispensando a assinatura de próprio punho em favor de outras formas de autenticação e identificação do signatário;
Justificativa: os servidores "burocráticos" estão sendo substituídos, com vantagens, por sistemas inteligentes, capazes de dar impulso processual e elaborar os expedientes necessários com uma rapidez inigualável. O mecanismo de intimações pelo sistema push, onde o advogado é informado automaticamente de qualquer movimentação processual, é exemplo disso, pois não há necessidade de nenhum servidor para fazer funcionar o sistema, a não ser um especialista em informática que analisará eventuais problemas técnicos. A tendência, portanto, é automatizar boa parte do impulso processual, sobretudo a comunicação dos atos processuais. Veja-se que o Código de Processo Civil não contempla a hipótese de atos processuais praticados por máquinas. Além disso, o art. 164, do CPC, exige que os despachos, decisões, sentenças e acórdãos sejam redigidos, datados e assinados pelos juízes e que quando forem proferidos, verbalmente, o taquígrafo ou o datilógrafo os registrará, submetendo-os aos juízes para revisão e assinatura, o que impediria, em princípio, despachos automatizados.
e) uniformizar, em nível nacional, as rotinas e as linguagens de informática utilizadas pelo Poder Judiciário, inclusive os endereços eletrônicos;
Justificativa: atualmente, cada Tribunal tem autonomia para criar suas próprias "linguagens" de informática. É preciso a uniformização de rotinas e linguagens em âmbito nacional, sob pena de dificultar bastante o acesso às informações e serviços on-line . Especialmente no que se refere aos endereços de e-mail e da chamada Wide World Web (WWW), a situação atual é caótica.
f) regulamentar os "poderes cibernéticos do juiz";
Justificativa: atualmente, a autoridade judicial tem poderes que vão desde de penhorar um automóvel até autorizar escutas telefônicas e determinar quebras de sigilo bancário. Tradicionalmente, essas atividades são feitas mediante ofícios enviados pelo juiz. Com a tecnologia da informação, essas atividades serão realizadas diretamente pelo juiz, sem intermediários. Por exemplo, se o juiz determinar a penhora de um automóvel, ele próprio (ou um servidor a seu mando) irá efetuar o bloqueio do referido veículo de seu computador. Outros poderes, ainda mais assustadores, vão surgir. Com o Bacen Jud, que é um sistema de solicitação de informações via internet, o magistrado pode enviar ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional com uma facilidade impressionante. Com isso, as quebras de sigilo bancário e os bloqueios de contas correntes de pessoas físicas e jurídicas poderão ser efetivados com alguns cliques. O juiz será uma espécie de hacker oficial, com poderes para invadir sistemas de computadores, interceptar mensagens eletrônicas e obter livre acesso aos mais sigilosos bancos de dados, compartilhando informações com órgãos como a Polícia Federal, a Interpol, a Receita Federal, o INSS etc. Sem uma regulamentação com base na chamada ciberética, haverá inúmeros abusos dos poderes cibernéticos do juiz.