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Interrogatório na Lei nº 10.792/2003:

uma primeira aproximação teórica

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Mantendo a tradição do silêncio, foi aprovada mais uma modificação em nosso ordenamento jurídico, qual seja, a criação da Lei 10.792/03 que, sem uma discussão prévia sobre a sua relevância ou não, traz importantes e, significativas alterações em alguns procedimentos processuais penais já consolidados.

Nessa primeira aproximação ao tema, que não tem a pretensão de esgotá-lo, vamos analisar dois aspectos: a) em um, a nova redação dada ao artigo 186, redação essa que vai ao encontro do texto constitucional que já defendia o direito do acusado ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII, da Carta Magna de 1988); em dois, a profunda e substancial modificação do antigo artigo 187, agora artigo 188, em relação ao procedimento no interrogatório do acusado por parte do juízo do conhecimento.

Dizia o antigo artigo 186 que "Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa".

Desde a Carta Constitucional de 1988, que não recepcionou tal dispositivo, o instituto do silêncio vinha sendo tratado como um direito, concedido amplamente ao sujeito, e não como alguns queriam ver, como uma estratégia não muito pertinente, e que consubstanciava ao direito de calar, a natureza de uma confissão tácita aos elementos que supostamente buscavam estabelecer-lhe qualquer tipo ou grau de culpa pelo suposto ato ilícito praticado.

A Constituição, ou melhor, o constituinte, entendia que a ação do calar, do manter-se em silêncio não era uma aceitação da culpa, mas uma garantia legal ao cidadão de não produzir, pelas respostas que poderiam ser conferidas no interrogatório, uma auto incriminação. O manter-se em silêncio era uma das mais importantes garantias para o exercício da ampla defesa, o qual por sinal, é outro direito constitucional já definitivamente solidificado.

Agora, com a nova lei, o regramento novo propõe que "Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas".

A esse novo dispositivo foi acrescido, também, um importante parágrafo único com a seguinte redação: "O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa".

Inegavelmente se trata aqui de harmonizar, formal e positivamente, aquilo que já estava sendo determinado pelo texto constitucional, resolvendo-se, dessa forma, uma questão que apesar de tudo criava algumas situações constrangedoras, já que não raro, muitos juizes deixavam de aplicar o comando constitucional para fazer valer a regra do ordenamento infraconstitucional. É derradeiro, assim, que a Lei 10.792/03 corrobora a pungente vitória do instituto do ‘silêncio constitucional’, que tem a sua força jurídica no fato de estar consagrado no capítulo dos direitos e garantias do cidadão.

Por seu turno, o antigo artigo 187 do codex processual afirmava que "O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas". Destarte, queria com isso dizer que o ato do interrogatório do acusado era, então, uma prática absolutamente unilateral, onde as partes não tinham como intervir, sendo apenas coadjuvantes sem significância, já que só podiam manifestar-se de maneira passiva, isto é, meramente assistiam ao ato do interrogatório sem poder nele participar. É, assim que, nesse ato processual não se admitia a figura do contraditório, esse que é, sem dúvida, um dos principais elementos formadores do devido processo legal.

E, esse poder onipotente do juízo era, inclusive, devidamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que esse tribunal superior admitia como certo e legal, a impossibilidade, pelas partes, do inexorável direito ao exercício do contraditório, quando do ato do interrogatório.

Estava, dessa maneira, consolidada na mais alta corte de nosso país, a certeza certa de que o interrogatório, ato personalíssimo do juízo era exercício exclusivo, não delegável, não divisível, não compartilhável aos outros atores do cenário jurídico.

Para a melhor sorte do pretenso Estado de Direito que propalamos ter em nosso país, após a edição dessa lei que aqui se discute, o equivocado entendimento dessa corte suprema não é mais admissível, sobretudo quando uma nova lei revoga esse procedimento meramente inquisitorial, afastando com a nova redação, aquela rigidez injusta e que abertamente feria o princípio do devido processo legal.

E, como se sabe, ferir princípios que fundamentam o próprio ordenamento jurídico é espancar, de forma mais nefasta e inimaginável possível, a própria legalidade do dever ser.

A lei 10.792/03, na nova redação dada ao art. 188 do CPP, traz uma nova oxigenação ao procedimento do interrogatório, verbis: "Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante".

Desde de logo se entende que, agora, as partes (isto é, o defensor do acusado, mas, igualmente o Ministério Público ou o querelante), como quer a lei quando afirma "... o juiz indagará das partes...", poderão influenciar, por se fazerem ativamente presentes de algum modo, ao menos nas perguntas a serem feitas, mesmo que nesse momento inicial, o instituto do contraditório no interrogatório.

É obrigatório, entretanto, atentar-se para uma boa exegese da nova lei, pois a bem da verdade, a lei 10.792/03 apenas autoriza às partes a "intervir ou influir" diretamente nas perguntas feitas, mas feitas, ainda, pelo juiz ou nas respostas apresentadas pelo acusado, de forma a procurar mudar um ou outro elemento, para melhor propiciar o trabalho da defesa ou do órgão acusador. Quer dizer, não se autorizou a total liberdade de formulação de perguntas pelas partes ao acusado. O juiz é, ademais, o filtro dessa participação.

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O que está a se autorizar, verdadeiramente, no momento indicado e na forma evidente, é a indicação de que ao fato apresentado se pode buscar um melhor esclarecimento, decorrendo de tal indicação a possibilidade de uma nova formulação de perguntas ao acusado, sempre feitas pelo magistrado que presidir o ato. Só que em aceitas essas perguntas e oriundas das partes, isso por si já significa uma importante revolução no jogo de poderes entre o juiz, a defesa e o órgão acusador ou o querelante.

Querendo ou não, limitada ou não, seja como for, agora é inegável que a nova lei passou a admitir, de algum modo, que as partes têm a possibilidade de buscar e influenciar, nas perguntas formuladas, antes mero exercício discricionário do juízo da causa, o próprio limite do processo penal a partir desse momento.

Repita-se: muito embora, ainda, caiba ao juiz apreciar a pertinência e relevância da(s) pergunta(s) formulada(s), para depois refazê-la(s) ou não ao acusado, é certo que uma vez indeferida(s) deverá cuidar-se para que conste(m) do termo exatamente como formulada(s) pela(s) parte(s) e as razões do indeferimento, como garantia da ampla defesa, visto que, agora, é aberta ao acusado a possibilidade de uma discussão em eventual ataque recursal sobre tal ato processual, ação que era anteriormente inimaginável, dada a onipotência do juízo.

De cristalina clareza que, agora, as partes poderão de alguma forma capiciosa influenciar, de algum modo sutil, o momento mesmo do interrogatório do acusado, mesmo que pela via dissimulada de perguntas oferecidas ao juízo, e em fazendo isso, permitir, desde o princípio do devir processual, a presença do contraditório e do devido processo legal.

Ao juízo é concedido o poder de ao seu particular entendimento, formular ou não as perguntas que poderão vir a ser apresentadas pelas partes. Sem dúvida que no jogo dos poderes entre os operadores do direito, isso significa um importante capítulo. Implacavelmente, isso é um fato! Está, portanto, ampliado um espaço de participação às partes que antes não existia, e que ao se fazer existir, abre-lhes um maior comando de manobras no ‘iter’ processual, tanto no que diz respeito à defesa, quanto para a acusação.

Dessa forma, ao materializar no universo processual o fim de qualquer polêmica ou resistência ao direito ao silêncio, antes já consagrado pela via constitucional, bem assim fortalecer, ainda que de forma incipiente o direito ao devido processo legal já na fase do interrogatório, a lei 10.792/03 é um avanço em direção a uma realidade sócio-política-jurídica que se diz cimentada em um Estado Democrático. Mas essa é apenas uma primeira visão dessa lei tão repleta de significações!

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Sobre o autor
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco. Interrogatório na Lei nº 10.792/2003:: uma primeira aproximação teórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 185, 7 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4694. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Título original: "Da Lei nº 10.792, de 2 de dezembro de 2003: uma primeira aproximação teórica".

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