Tratando do neoconstitucionalismo, Luigi Ferrajoli, em seu artigo “Pasado y Futuro del Estado de Derecho”, inicia seu pensamento com a distinção entre Estado de Direito em sentido formal (ou débil), que traduz qualquer ordenamento submetido à lei e às formalidades legais (atualmente, todos os ordenamentos jurídicos possuem essas características). Há, ainda, o Estado de Direito em sentido substancial (ou forte), cujo objeto diz respeito, em especial, ao seu conteúdo (FERRAJOLI, p. 13); os ordenamentos que atendem a essa característica, em regra, obedecem aos princípios constitucionais.
Ferrajoli diferencia o Direito pré-moderno do “Estado Legislativo de Direito” e do “Estado Constitucional de Direito”. Para ele, o Direito pré-moderno, de origem pré-positivista, era baseado unicamente na doutrina e na jurisprudência[1]. Por conseguinte, o pensamento jurídico que o validava era jusnaturalista.
Já o Estado Legislativo de Direito substancializa o nascimento do Estado de Direito moderno que, face à influência juspositivista, consagra o princípio da legalidade como critério de existência e validade do Direito (FERRAJOLI p. 16)[2]. Dessa forma, o conteúdo do Direito moderno, a exemplo do resultante da doutrina e da jurisprudência, deixa de ser normativo (como o era no Direito pré-moderno), tornando-se interpretativo, reflexo do juspositivismo, que visa à delimitação do objeto da ciência, a fim de conhecê-lo profunda e adequadamente. A produção jurídico-legal passa a ser monopólio do Estado, em respeito ao princípio da legalidade[3].
Por sua vez, o Estado Constitucional de Direito traduz a supremacia das normas constitucionais como legitimadoras das demais leis. O princípio da legalidade ganha novos contornos, de forma a se observar também o conteúdo da norma a ser aplicada[4]. A existência (ou vigência) e validade das leis são dissociadas, analisadas em planos distintos, podendo uma lei formalmente perfeita ser inválida, se estiver em contradição com as normas constitucionais. Logo, a lei “vale” se é constitucionalmente validada; esta mudança reflete, inclusive, na estrutura da democracia[5].
Após discorrer sobre os Estados de Direito, conclui que há uma ligação entre as instituições e a cultura de uma sociedade, de forma que as transformações institucionais interagem com as transformações culturais,, ou seja, as mudanças políticas, jurídicas e filosóficas refletem as experiências vividas em determinado momento histórico.
Para Ferrajoli, os modelos de Estado de Direito (Legislativo e Constitucional) estão em crise, i) seja pelo retorno à supervaloração da atividade criativa da jurisprudência (típica do Direito pré-moderno), ii) seja pela perda da unidade e coerência das fontes jurídicas, bem como da convivência e superposição de vários ordenamentos jurídicos concorrentes ( FERRAJOLI, p. 21). O primeiro aspecto indica a crise do princípio da legalidade (e, por conseguinte, do Estado Legislativo de Direito), face à contraposição da racionalidade organizacional da lei com a hobbesiana “iuris prudentia” de juízes “desordenados” (FERRAJOLI, p. 20), afetando a certeza jurídica, a eficiência e as garantias do ordenamento.
Outrossim, o segundo aspecto ilustra a crise do “papel garantista de la Constitución em relación com la legislación, que es el rasgo distintivo del Estado Constitucional de Derecho” (FERRAJOLI, pp. 20-21). Tal fato resulta da necessidade cada vez maior de interação entre as nações. O Direito interno, inclusive o Direito Constitucional, não é suficiente para regular as relações político-econômicas (em especial a globalização econômica) e sócio-culturais entre os Estados.
Segundo o autor, seria provável que o direito supranacional ou comunitário fosse regido pela globalização econômica, de maneira que as normas seriam ditadas pelas nações dotadas de maior poderio econômico e bélico – uma soberania externa neoabsolutista (FERRAJOLI, p. 22).
A alternativa à crise do princípio da legalidade passa por sua remodelação, obedecendo-se não mais à reserva da lei, e sim à reserva de código (idem, p. 23). Desta forma, as leis devem ser analisadas, interpretadas e aplicadas em conjunto, aglutinadas pelo seu conteúdo (critério substancial da legalidade).
As propostas para um novo modelo de Estado de Direito confluem-se nas universalidades, ou seja, na existência de regras, garantias, normas e princípios validados por uma lógica universal[6].
Essas propostas teriam por conseqüência a redução ou perda da soberania dos Estados em face de um constitucionalismo internacional, legitimado a limitar quaisquer tendências absolutistas de um constitucionalismo comunitário[7].
Portanto, para Ferrajoli, a construção de um novo Estado de Direito toma contornos científicos e universais, todavia, não se pretendendo a homogeneização cultural, religiosa e social, e sim uma Carta de Direitos e Garantias pautados na universalidade dos direitos humanos[8].
Conclusões e questionamentos
Algumas ponderações merecem ser tecidas.
De fato, as novas dimensões de direitos e garantias fundamentais apontam cada vez mais para a universalização do bem-estar das pessoas (e dos demais entes que as cercam). Ocorre que essa tendência é centrífuga, de dentro para fora, é dizer, do âmbito interno para o internacional. A própria existência de uma teoria da universalização dos direitos e garantias fundamentais já demonstra que estes não são ou não eram inicialmente universais; o que já é universal não precisa ser posteriormente legitimado como tal.
Verifica-se que a proposta de Ferrajoli acerca do Estado Internacional de Direito necessita de uma Constituição para não se retornar à “iuris prudentia” do Direito pré-moderno nem à completa submissão ao princípio da legalidade (e reserva da lei) - Estado Legislativo de Direito. Para tanto, essa Constituição, além de sintética, deve ser “pensada” e permeada de conceitos (cláusulas gerais e abertas), e não de definições. Ademais, a Constituição Internacional carecerá de novos critérios e métodos de interpretação, não podendo ser utilizada a hermenêutica constitucional do Direito interno, sob pena de torná-la contraditória com os diversos ordenamentos jurídicos preexistentes.
Se o Estado Internacional de Direito a surgir pretende ser eficaz e garantista, outros questionamentos de ordem prática podem se formular, a saber: haveria um controle de constitucionalidade das Constituições internas em face das Constituições Comunitárias e Internacional? Como seria legitimado esse controle? Como conciliar a total dependência política para sua criação (vide nota de rodapé nº. 8) com a conotação científico-sociológica do Estado Internacional de Direito (pautada na universalização dos direitos fundamentais)? Qual a garantia de que não será somente institucionalizado um Estado Internacional “Político-Econômico” de Direito?
Não há soluções definitivas no caminho a ser tomado pelo novo Estado de Direito. Há, porém, conseqüências possíveis de serem antecipadas (como se percebe dos questionamentos acima), que devem ser devidamente sopesadas numa perspectiva voltada para a harmonização do bem-estar individual, coletivo e internacional, sob pena de, ao invés do neoconstitucionalismo, legitimar-se o neoabsolutismo.
BIBLIOGRAFIA
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y Futuro del Estado de Derecho. In CARBONELL, Miguel (Editor). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, pp. 13-29.
[1] Portanto, não havia de se falar em princípio da legalidade no Direito pré-moderno; poder-se-ia afirmar que o Direito era fruto dos “fatores reais de poder”, preconizados por Lassalle.
[2] É a consagração do dogma do Direito posto em plano superior ao do Direito justo.
[3] O conteúdo, é dizer, a substância jurídico-normativa não sofreu expressivas mudanças; a alteração, portanto, foi basicamente de legitimidade da produção jurídica.
[4] Consoante assevera o prof. Eros Roberto Grau, o Direito posto passa a conviver com o Direito pressuposto.
[5] “La subordinación de la ley a los principios constitucionales equivale a introducir una dimensión sustancial no sólo em las condiciones de validez de las normas, sino también em la naturaleza de la democracia, para la que representa um limite, a la vez que la completa” (p. 19).
[6] Ressalta-se que Ferrajoli defende o caráter universal dos direitos e garantias fundamentais, ao passo que a doutrina majoritária sustenta a relatividade dos mesmos.
[7] Pode-se concluir que o novo Estado de Direito fará parte de uma tríade: constitucionalismo interno, constitucionalismo comunitário e constitucionalismo internacional.
[8] “Nada autoriza a afirmar que la perspectiva de um Estado internacional de Derecho sea, em el plano teórico, irrealizable. Su realización depende únicamente de la política y precisamente de la voluntad de los países más fuertes em el plano econômico y militar” (p. 29)