Diariamente somos bombardeados por notícias de corrupção. A bola da vez são os escândalos envolvendo a Petrobras. A operação Lava Jato descortinou uma série de irregularidades na empresa, envolvendo agentes públicos graúdos e a nata das empreiteiras brasileiras. Parte da cúpula dessas grandes companhias encontra-se presa; outros tantos estão em prisão domiciliar, submetidos a uma série de restrições e constrangimentos, inclusive submetidos ao uso de tornozeleiras eletrônicas. Ex - parlamentares de grande influência no meio político e empresarial passam por situações semelhantes. E inúmeros deputados e senadores correm atrás de renomados advogados criminalistas, cientes de que tiveram seus nomes envolvidos na investigação.
Enfim, muito se descobriu até agora. E fatos bastante complexos, envolvendo redes de pessoas e organizações empresariais e financeiras, nacionais e internacionais, foram – e continuam sendo – revelados a cada dia. Grande parte dessas descobertas adveio de um instituto até então pouco conhecido – no meio jurídico e, sobretudo, no âmbito da sociedade civil: trata-se da célebre delação premiada ou, tecnicamente, colaboração premiada.
Esse instituto, hoje, está presente no direito processual penal de variados países, a exemplo de França, Reino Unido, Espanha e EUA. Neste, grande parte dos processos criminais são solucionados por força desse acordo. O ex- presidente da CBF José Maria Marin pode ser um dos próximos colaboradores da Justiça daquele país. A negociação avança, e pode repercutir aqui no Brasil, onde outra CPI envolvendo a entidade de futebol foi instalada.
No âmbito brasileiro, o instituto foi baseado nas experiências encontradas nos EUA e Itália, onde o mecanismo teve muito sucesso no combate aos grupos terroristas e mafiosos. Embora estivesse prevista nas Ordenações Filipinas, que valeram no Brasil entre 1603 e 1830, até a entrada em vigor do Código Penal do Império, surgiu legalmente há cerca de 25 anos, com o advento da Lei nº 8.072/90, que trata dos crimes hediondos. Ao acrescentar um parágrafo ao art. 159 do Código Penal, possibilitou a aquele que denunciasse eventual coautor ou partícipe do crime de extorsão mediante sequestro, facilitando a libertação do sequestrado, uma sensível redução na sua pena, caso condenado ao final do processo penal.
A colaboração premiada foi regulamentada posteriormente em outras leis, como a que trata da lavagem de dinheiro (9.613/98), do combate às drogas (11.343/06) e a que disciplina a proteção às testemunhas (9.807/99). Tem previsão ainda na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado (Convenção de Palermo ou UNTOC) e na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida ou UNCAC), concluídas nos anos de 2000 e 2003.
Todavia, foi apenas há pouco tempo que a delação ganhou contornos mais nítidos e uma forma mais robusta. Com a entrada em vigor da Lei 12.850, em 2013, há cerca de 2 anos, portanto, o instituto cristalizou-se.
Prevendo o mecanismo expressamente no art. 3º, I, com a denominação de colaboração premiada, a lei avançou na definição do instituto nos artigos seguintes. Especificou o procedimento, os requisitos, os direitos do colaborador, os efeitos e benefícios deste pela cooperação na investigação.
Mas, afinal, o que vem a ser delação premiada?
“O instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime.” 1
Mais um dentre tantos instrumentos e meios de prova previstos em lei, a colaboração premiada, portanto, é considerada uma técnica especial de investigação para crimes graves, onde o colaborador, além de confessar a autoria de um fato criminoso, indica a participação de terceiros envolvidos com a prática do mesmo ou de outro delito, em troca de benefícios penais.
“O delator, no fundo, à luz da Constituição, é um colaborador da Justiça”. 2
Há certo caminho até a delação, entretanto. Algumas etapas devem necessariamente ser percorridas. Identificado o colaborador, o Ministério Público inicia tratativas com seu advogado, de onde poderão resultar reuniões para tratar do assunto, com ou sem a participação do colaborador. Definidos os termos do acordo, o texto final com a proposta é encaminhado ao juiz criminal competente, para homologação. Certificado judicialmente, a cooperação se inicia de fato, podendo ser realizadas diligências adicionais durante a execução do acordo, a fim de colher provas que corroborem as afirmações do delator.
Como já afirmado, a colaboração, como é hoje, existe no Brasil desde 1990, trazida pela lei dos crimes hediondos. Depois desta, outras normas passaram a prever o instituto, culminado com a elaboração da lei que define as organizações criminosas. Cada uma delas, com suas limitações, estipulou os efeitos e os benefícios ao colaborador. Em suma, os benefícios previstos são os seguintes: a) causa de diminuição de pena de até 2/3. Caso condenado, o colaborador da Justiça pode ter sua pena diminuída em cerca de 66 por cento; b) substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. Em vez de ser preso, pode o colaborador cumprir sua pena prestando serviços à comunidade, por exemplo; c) perdão judicial. Pode o colaborador ver-se livre de qualquer sanção penal caso sua ajuda revele de grande importância na descoberta dos fatos investigados; d) acordo de imunidade. Na eventualidade de ficar caracterizado (art. 4º, paragrafo 4º, Lei 12.850/13) que o colaborador não foi o líder da organização criminosa investigada e, ainda, caso seja o primeiro a prestar efetiva colaboração com a Justiça, o Ministério Público pode deixar de processá-lo criminalmente. Fica, assim, imune de responder em eventual ação penal.
Embora utilizada com muita frequência em outros países, como nos EUA, a delação premiada divide opiniões.
Considerado um dos eventos de maior prestígio no Direito Penal no Brasil, o seminário do IBCCRIM este ano também foi afetado pelo instituto. Grandes escritórios de advocacia decidiram retirar o patrocínio ao evento. O motivo: a participação, como convidado, do juiz Sergio Moro, responsável pela operação Lava Jato e fervoroso defensor do mecanismo. Um dos advogados foi enfático ao afirmar que não pagaria para dar palco a quem viola constantemente o direito de defesa e que, no evento, falaria sobre algo (delação) que “sabemos como se dão”.3
Ferrenhos críticos do instituto, renomados advogados criminalistas bombardeiam a delação com uma série de argumentos em seu desfavor. “Não se pode premiar quem delata, porque é conduta que denota caráter deformado e deformador, conduta reprimida até mesmo pela "lei do cão" vigente nas cadeias”, sustentam alguns. 4
Segundo outros, o uso dessa técnica é prova inconteste da incompetência do Estado no combate ao crime. Ao associar-se a supostos criminosos na busca de informações sobre infrações penais graves, o Estado estaria atestando sua inoperância na solução de questões desse tipo.
Independentemente das críticas - e há muitas outras -, a colaboração premiada apresenta importância premente sobretudo quando se enfrenta o crime organizado. Os instrumentos tradicionais são absolutamente ineficazes frente às novas formas de criminalidade
Para bem (de muitos) e para mal (de poucos), a eficácia do mecanismo chama a atenção. Nos escândalos anteriores – na grande maioria – pouco se avançou nas investigações. O alto escalão parecia inatingível. Apenas personagens menores eram alcançados. Quando envolvidos e decidem colaborar com a descoberta dos acontecimentos, em troca de benefícios penais, as apurações ganham velocidade e alcance. Isso ficou evidente na operação Lava Jato.
1 STJ, AgRg no Ag no 1.285.269/MG, Relator o Ministro OG FERNANDES , Dje de 29/11/2010).
2 (STF, 1.ª Turma, HC 90.688/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 12/02/2008.).
3 http://direito.folha.uol.com.br/blog/petrolao-retirada-de-patrocinio-e-a-melhor-solucao).
4 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2608200509.htm).