1. Introdução.
A resistência à perseguição de efetividade dos direitos fundamentais sociais também tem curso sobre a vertente normativa, uma vez que se nega que a estrutura lógica da norma que os veicula seja – e se o for, o é em medida reduzida – dotada de eficácia jurídica no sentido de vincular e impor ao Estado a prestação de algum bem ou de um fazer.
A esse fim, e nos limites do presente trabalho, convém o estudo conciso da norma jurídica, haja vista que os direitos sociais por vezes são vertidos em linguagem lata, o que costuma gerar dificuldades – e até rejeição – quando da sua invocação e aplicação.
2. Conceito de norma jurídica.
O Direito Positivo é uma contextura lógico-deôntica entrelaçada metodicamente pelo fio da norma jurídica, de modo que não se há cogitar de Direito senão quando ambientado num plexo de normas interconexas, que formam um ordenamento e compõem um sistema normativo.
Kelsen diz que a “norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.”[1] Para Goffredo Telles é um “imperativo autorizante, harmonizado com a ordenação ética vigente.”[2] A norma jurídica é, na compreensão de Arnaldo Vasconcelos, “norma de Direito, isto é, norma de fazer Direito. A norma é regra de fim.”[3]{C} Maria Helena Diniz afirma que são “normas de conduta social, uma vez que disciplinam as atividades e relações humanas no convívio social, e são imperativas porque impõem determinado comportamento.”[4]{C} Jean-Louis Bergel qualifica as normas como “instrumentos com vocação para constituir modelos que devem ser obrigatoriamente realizados.”[5]{C} Pontes de Miranda define a regra jurídica como sendo “norma com que o homem, ao querer subordinar os fatos a certa ordem e a certa previsibilidade, procurou distribuir os bens da vida.”[6]
Tem-se, então, que “a experiência jurídica é uma experiência normativa.[7]”
O Direito é ordem normativa coativa das relações sociais, das relações humanas, do comportamento proveniente da interação humana, da qual resulta um sistema de normas, “cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade.”[8]
O predicado da ordem normativa “quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”[9], diante de outro homem. Esse dever ser caracteriza e distingue o Direito de outras formas de intervenção na conduta intersubjetiva por ser ele dotado de coatividade oficial.
Registre-se, por oportuna, a advertência feita por Barbieri no sentido de que, inobstante a necessidade que o conhecimento científico tem de conceitos, a ciência sempre estará submetida à crítica, que poderá resultar na confirmação e no reforço do conteúdo delineado, tanto quanto pode dar-se a refutação e a retificação. Observe-se que a linguagem, na transmissão da mensagem concebida após certo processo de investigação sobre determinado objeto, ao conferir unidade semântica, também opera como fator limitador, de modo que “não se pode ter a pretensão de se dar um conceito absoluto sobre alguma coisa, capaz de diferenciá-la, com exatidão, das demais, o que implicaria um conhecimento absoluto sobre o universo e sobre a universalidade das coisas que existem”[10].
3. Estrutura lógica da norma jurídica.
A norma jurídica é uma proposição lógica por meio da qual se descreve um evento (suporte fático) e se estabelece o traçamento de conseqüências jurídicas para a hipótese de o evento, abstratamente previsto, efetivamente concretizar-se (preceito).
A cada um desses membros do corpo normativo os estudiosos atribuem designações que variam entre si, como de resto sói suceder com os termos utilizados para nominar os fenômenos e institutos do Direito, sem que, entretanto, a significação subjacente se altere.
Ilustrativamente, tem-se fatispécie e estatuição, que traduzem “um acontecimento ou estado de coisas e (...) conseqüências jurídicas para o caso de a previsão se verificar historicamente,”[11] ou, ainda, suporte fático, consistente nas “relações humanas e os fatos, a que elas (normas jurídicas) se referem (...), isto é, aquilo sobre que elas incidem, apontado por elas”[12] e preceito, na linguagem de Marcos Bernanrdes Mello, que alude aos “efeitos atribuídos aos fatos jurídicos. Representa, assim, a disposição normativa sobre a eficácia jurídica,”[13] ou, também, “certas condições ou pressupostos” delineados pelo ordenamento jurídico, em face dos quais “devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas.”[14] Tem-se, ainda, a designação de antecedente onde “encontramos as notas típicas de um fato cuja ocorrência, em face da imputabilidade, faz desabrochar uma relação jurídica em seu conseqüente.”[15] Há, ainda, prótase, enunciado que estabelece o condicional ‘se’, e o ‘apódose’, ou termo condicionado, que dita a implicação, configurando-se, habitualmente, no ‘então’[16]; ou, também, “a hipótese e a tese (ou o pressuposto e a conseqüência).”[17]
Tratando do princípio da imputação, equivalente das ciências sociais ao princípio da causalidade para as ciências naturais, Hans Kelsen diz que, fundamentalmente, a proposição jurídica consiste na fórmula segundo a qual, “sob determinados pressupostos, fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica estabelecido.”[18]
Após explicitar os planos lingüísticos da compreensão do fenômeno da criação à aplicação das normas jurídicas, Gabriel Ivo[19]{C} esclarece que estas “apresentam forma implicacional em que se enlaça certa conseqüência à realização condicional de determinado evento descrito no antecedente. A hipótese é a parte da norma descritora de uma situação de possível ocorrência no mundo. A conseqüência prescreve uma relação deôntica”, de forma tal que “as normas, portanto, possuem uma estrutura lógica comum, integrada por uma hipótese, um nexo atributivo e uma conseqüência ... em todas as normas jurídicas encontramos a mesma estrutura sintática”.
Barros Carvalho fala da “premissa da homogeneidade lógica das unidades do sistema, consoante a qual todas as regras teriam idêntica esquematização formal, quer dizer em todas as unidades do sistema encontraremos a descrição de um fato ‘F’ que, ocorrido no plano da realidade físico-social, fará nascer uma relação jurídica (S’ R S’’) entre dois sujeitos de direito, modalizada com um dos operadores deônticos: obrigatório, proibido ou permitido (O, V ou P),”[20] resumindo em “proposição-hipótese (antecedente) e de proposição-tese (conseqüente)”[21] ou, ainda, “uma proposição-antecedente, descritiva de possível evento do mundo social, na condição de suposto normativo, implicando uma proposição-tese, de caráter relacional, no tópico do conseqüente.[22]”
Maria Helena Diniz[23], a partir da doutrina de Carlos Cossio sobre a “estrutura disjuntiva” da norma jurídica, na qual “tanto a prestação como a sanção têm caráter essencial”, elenca os seguintes dados como seus elementos permanentes: Da endonorma (a que prevê a conduta conforme a Direito): 1. Fato temporal (FT), 2. a cópula lógica do dever-ser, 3. a prestação de alguém (P), 4. sujeito passivo, 5. sujeito ativo; depois vem a partícula neutra ou (que caracteriza a cópula disjuntiva que delimita a endonorma e a perinorma; e na seqüência, a perinorma (a que estabelece a sanção pela conduta não-conforme a Direito): 6. ilícito (não-P), 7. a cópula lógica do dever-ser, 8. a sanção do responsável (S), 9. sujeito passivo – funcionário obrigado a isto (FO), 10. sujeito ativo – pretensão da comunidade (PC).
No mesmo sentido é a observação de Arnaldo Vasconcelos[24], segundo a qual identifica na norma jurídica uma estrutura disjuntiva ao dizer que “dada uma situação existencial (H), deve ser a prestação (P) de alguém obrigado ante um titular, ou da não-prestação (ñP), deve ser a sanção (S), imposta por um funcionário a isso obrigado por pretensão da sociedade”.
Aqui, deve-se sublinhar que à menção da expressão norma jurídica não corresponde invariavelmente todo fragmento preceptivo ou dispositivo de texto, como observa Mello, pois que, por vezes, nele não se contêm integralmente, tanto a descrição do evento, quanto o traçamento dos efeitos correlatos, senão que em conjunto com várias outras estipulações normativas por vezes topologicamente distanciadas no mesmo subsistema normativo ou, ainda, em todo o ordenamento jurídico: “na identificação do fato jurídico e na aplicação do correspondente preceito, não pode, nem deve, o intérprete limitar-se a ler e conhecer um certo dispositivo legal, apenas, mas precisa de conhecer tudo o que no sistema se refira ao fato considerado em sua classe.” [25]
Observação esta também feita por Pontes de Miranda[26], quando consigna que “há regras jurídica que apenas completam a expressão de outras, ou porque definam (...), ou porque sirvam a reduzir, ampliar, ou modificar outra regra jurídica. Tais regras jurídicas, formalmente separadas, são partes integrantes de todas as outras regras jurídicas em que se precise da definição, ou a que se refira a redução, ampliação ou modificação”.
Igualmente anota Barros Carvalho, quando registra que no mais das vezes nem sempre é possível extrair-se norma jurídica de excerto isolado de texto senão que a partir da integração pelo ordenamento normativo, até que se constitua em mínimo deôntico completo, pois que “somente a norma jurídica, tomada em sua integridade constitutiva, terá o condão de expressar o sentido cabal dos mandamentos da autoridade que legisla.”[27]
4. Fenomenologia da incidência da norma jurídica.
Não há dissenso doutrinário no que concerne à compreensão de que a norma invariável e incondicionalmente incide, para uns, automaticamente, ou é incidida, para outros, desde e tanto que ocorrido o evento (ou fato) previsto em seu suporte fático, antecedente, pressuposto etc.,– atentando-se semper et semper para a advertência feita supra, no sentido de que, tanto o suporte fático quanto o preceito, podem ter a composição específica do seu conteúdo, em dado caso singular e concreto, influenciada por diversos fragmentos normativos integrantes do sistema jurídico.
Ilustre-se com Gabriel Ivo, para quem “tendo em vista o acontecimento cujas notas estão depositadas no antecedente, que é o fato, deve ser a imputação de uma relação jurídica, que se estrutura por meio de um conectivo deôntico que recebe o nome de dever-ser interproposicional. Sua ação é inapelável; ocorrendo o fato previsto, instaura-se a conseqüência de modo automático e infalível.”[28]
O dissenso, então, assenta-se na consideração acerca de quando se deve ter por verificado o evento para fins de configuração da incidência normativa.
Há aqueles que compreendem que a verificação efetiva de certo fato delineado no antecedente normativo somente ocorre quando – e se – dito fato restar vertido em linguagem jurídico-formal competente, pela ação humana, de modo que a incidência necessariamente há de coincidir com a aplicação da norma, que também é dependente da ação humana. Gabriel Ivo, ressaltando que o Direito é fenômeno retratado lingüisticamente, cogita de que “essa fenomenologia da juridicização, a incidência, não se dá fora do homem. Não é algo absolutamente objetivo. A observação humana integra a incidência, que é (re) feita na mente do aplicador do direito. Dentro da ontologia dos objetos, o direito ocupa lugar na região dos objetos culturais, aqueles produzidos pelo homem para o atingimento de uma finalidade desenhada, também, pelo homem.”[29] Inobstante a idéia da concomitância dos fenômenos incidência e aplicação da norma jurídica, nitidamente perfilada nessa formulação científica, a utilização pelo referido autor do prefixo “(re)”, anteposto ao verbo fazer (“feita”), indique repetição, iteração de algo já feito, e, portanto, mais denote não propriamente a negação, mas sim certa aproximação ou conexão à “objetividade” da fenomenização da incidência.
Nessa mesma linha é o pensamento de Barros Carvalho[30] para quem somente se há falar em fato e, portanto, também em incidência, quando o evento houver sido revestido de linguagem competente – dependente da vontade humana – pois que “não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria ... requerem o homem ... movimentando as estruturas do direito... imprimindo positividade ao sistema ... impulsionando-o...”.
Outros há que vêem a fenomenização da incidência objetivisticamente, isto é, incondicionada e independente da manipulação humana.
Esse é o pensamento de Bernardes de Mello[31], para quem a norma incide “independentemente do querer das pessoas ... pois que suas conseqüências se passam no mundo da psique ... no mundo de nossos pensamentos”.
Também assim compreende Pontes de Miranda ao conceber que “tudo isso se desenrola mediante o pensamento, que está na regra jurídica (pensar vem de pesar), e incide nos fatos, ainda em queda (incidere, cadere) que só se passa no mundo dos nossos pensamentos”.[32] E, ainda, “a incidência é no mundo social, mundo feito de pensamentos e outros fatos psíquicos, porém nada tem com o que se passa dentro de cada um, no tocante à adesão à regra jurídica, nem se identifica com a eventual intervenção da coerção estatal. A incidência da lei independe da sua aplicação.”[33]
À parte essa discrepância doutrinária, o que se observa é que, do ponto de vista pragmático, as conseqüências decorrentes da aceitação de uma ou outra compreensão da fenomenologia da incidência equivalem-se, no sentido de que o conteúdo do dever ser posposto no interior da unidade jurídico-normativa tem de ser aplicado quando consumado juridicamente o fato típico preposto também normativamente.
O recurso a uma categoria do pensamento para a justificação e explicação de certo instituto jurídico não significa esconder-se atrás de um dogma de fé cuja busca de explicação racional implique heresia jurídica. Todos, enfim, vez ou outra, nela – categoria do pensamento – se refugiam a fim de atar todas as pontas, isto é, de conferir racionalidade e emprestar sentido lógico a determinada teoria.
Veja-se o exemplo da norma hipotética fundamental kelseniana: é ela também um postulado imaginário, de vital importância, cuja existência se concebe para dar unidade ao sistema do Direito posto, enquanto entidade proposicional, nomoempírica e prescritiva.
À utilização desse recurso não é infenso o pensamento de Barros Carvalho{C}[34]. Confiram-se suas observações a respeito da norma fundamental: “a norma hipotética fundamental, entretanto, não se prova nem se explica”... pois que é uma “proposição axiomática, que se toma sem discussão de sua origem genética”... “não cabendo cogitações de fatos que a antecedam” ... “é fruto de um artifício do pensamento humano”..., advertindo, inclusive, que “não deve causar espécie a circunstância de a Ciência do Direito precisar de um axioma, enunciado que se dá por verdadeiro sem demonstração, para fincar a raiz de seu sistema”.
Quando Barros Carvalho diz que a incidência da norma requer o homem, fazendo a subsunção... movimentando as estruturas do direito... imprimindo positividade ao sistema... impulsionando-o, incorre na mesma inventividade abstrata e intelectiva com que se fustiga a incondicionalidade da fenomenização da incidência normativa. Afinal, isso tudo se passa no mundo dos pensamentos, pois que a subsunção não é algo que se faça, tampouco a metáfora da estrutura do Direito é factível de mobilização nem se sujeita à transmissão de força, senão no mundo dos pensamentos.
Em outra passagem da referida obra, Barros Carvalho[35], tratando do instituto da ab-rogação da norma, observa que muitos autores apontam-na como o preciso instante em que a validade de uma norma desaparece, deixando a norma de estar incluída no ordenamento do Direito positivo, indagando de como explicar, então, que a norma ab-rogada continue sendo aplicada para situações de fato anteriores à sua ab-rogação? Ao que ele responde, reformulando a acepção tradicional daquele instituto, dizendo “que a regra ab-rogada permanece válida no sistema até que se cumpra o tempo de sua possível aplicação... com a regra ab-rogatória, corta-se a vigência da norma por ela alcançada, de tal arte que não terá mais força para juridicizar os fatos que vierem a ocorrer depois da ab-rogação”.
Essa perplexidade inexistiria acaso se admitisse a incondicionalidade da fenomenização da categoria do pensamento intitulada incidência normativa, que se verifica, idealmente, no mundo do pensamento, ao mesmo tempo da concreção no mundo real (ser) do suporte fático da norma ainda vigorante, válida e pertencente ao sistema do direito posto, sem que a isso seja conflitante a necessidade de se ter, para fins de aplicação, o relato lingüístico-jurídico desse fato preposto no antecedente normativo, quando isso realmente se fizer necessário, quando o suporte fático da norma não prescindir do devido processo legal. Ora, a relação de vigência e pertinencialidade (validade) da norma, para fins de regulação (prescrever, previamente, comportamentos) da vida social e de incidência, somente faz sentido lógico se aferida ao tempo em que historicamente situado o evento, de modo que considerar vigente e, portanto, incidível, para fatos passados, uma norma ab-rogada contradiz a lógica e o conceito de Direito, como ordem normativo-jurídica regulatória dos comportamentos humanos, e que, portanto, necessariamente se volta para o presente e para o futuro. Assim, rigorosa e propriamente, aplica-se não a norma ab-rogada, mas a norma vigente à época da ocorrência dos fatos, pois que lá houve a incidência, e isso se dá por opção político-legislativa, em decorrência da incidência e aplicação de outra norma, que adere à norma ab-rogada e absorve seu conteúdo, e que comporta exceção, a exemplo do direito posto brasileiro, que expressamente prevê que a lei (nova, e ab-rogatória por certo.) “não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (CF/88, art. 5.º, inc. XXXVI).
Daí a necessidade de não se confundir incidência com aplicação da norma, evitando-se, com isso, a conclusão de que a norma, embora expressamente ab-rogada, “continua, porém, vigente para os casos anteriores, sendo-lhes perfeitamente aplicável,”[36] o que equivale a dizer, para esta concepção, incidível. Não há como conciliar esse raciocínio com a definição de vigência como sendo “uma propriedade de certas regras jurídicas que estão prontas para propagar efeitos, tão logo aconteçam, no mundo social, os fatos descritos em seus antecedentes.”[37] A expressão “tão logo aconteçam” denota ocorrência futura e, portanto, incompatível com “casos anteriores”.
O tempo passado é que incompatibiliza a tese da norma incidida, coincidente com a aplicação, pois que “não é possível ... falar de eficácia jurídica (relação jurídica, direitos, deveres e demais categorias eficaciais) antes de ocorrida a eficácia normativa (incidência).[38]”
Assim, se a eficácia jurídica pressupõe a eficácia normativa – incidência (e isso não se nega), e se esta, para os que refutam a incondicionalidade, somente se dá quando da aplicação, como explicar que os efeitos dessa incidência e dessa aplicação, que se dá somente no presente, voltem-se para o passado? Não se há de querer que esta incidência, que, por coincidir com a aplicação, é logicamente atual, deva ser, por algum “artifício do pensamento humano” (essa mesma possibilidade axiomática que se indisponibiliza à tese da fenomenização incondicional da incidência normativa), teleportada ao passado histórico da ocorrência do evento.
Esse raciocínio, que coincide no tempo a incidência e a aplicação, ganha aparente foro de precisão na seara do direito penal onde as conseqüências deônticas do ilícito têm que ter curso forçado pelo aparato jurisdicional, daí parecer que a aplicação definitiva aparelha e viabiliza a incidência, e, até lá, desfrutará o agente ativo delitivo do estado de inocência e não se poderá ainda dizer, juridicamente, ter ele cometido crime.
Tratando da especificidade da norma penal, Telles Júnior[39] evidencia que “a consagração legal de tais proposições visa obstar a aplicação de pena discricionária a quem não tenha sido indiciado, denunciado, processado e condenado, na forma da lei. São disposições que asseguram a presunção de inocência até sentença judicial contrária, passada em julgado”.
Mas, mesmo na seara penal, não é assim. De logo seja dito que o estado de inocência é conferido por outra norma de maior hierarquia e dignidade (CF/88, art. 5.º, LVII), que incide e surte efeito até a sentença condenatória definitiva, relacionando-se com o suporte fático e, portanto, com a incidência, da norma aflitiva, pois que esta não se satisfaz apenas com o evento crime (fato típico + antijurídico + culpável) senão que também com o devido processo legal penal do qual resulte uma sentença condenatória.
Quando ocorre um evento, que em tese representa determinada figura delitiva penal, abstratamente prevista na norma criminalizadora (em sua completude), incidem as normas que obrigam a investigação, prisões cautelares, denúncia etc, mas, não, ainda, a incidência (aplicação) da norma aflitiva (da pena), uma vez que para a configuração jurídica do crime concorre a certificação judicial passada em julgado, condição sine qua non se desencadeia a incidência e a aplicação da norma sancionadora.
Nestes termos, é preciso compreender que todo o devido processo legal integra também o suporte fático da norma penal sancionadora, ou seja, dado o evento típico + antijurídico + culpável + o juízo condenatório imutável decorrente do devido processo legal penal, deve ser a cominação de certa penalidade, que é, para fins de incidência da norma sancionatória criminal, absolutamente indiferente à confissão ou ao franco, desabrido e verdadeiro desejo expiatório do agente delitivo, diferentemente do que se dá para as sanções doutros ramos do Direito, onde a espontaneidade expiatória do transgressor realiza, por si só, e validamente, a conseqüência jurídica prevista na norma sancionadora.
As normas penais, e não somente a sancionadora, não são, pois, indiferentes à incondicionalidade da incidência. Veja-se o exemplo da chamada teoria da atividade (CP, art. 4.º), segundo a qual se considera praticado o crime no momento da ação ou omissão, sendo este também o marco para se verificar a imputabilidade penal do agente, no que pertine à maioridade penal (CP, art. 27), assim como tem início a contagem dos prazos (CPP, art. 38, caput e parágrafo único; CP, arts. 111/114) que comprimem temporalmente a persecução penal (pretensão punitiva), desde antes da eventual ação judicial, que pode sequer acontecer. Atente-se para o fato de que esses marcos temporais são estipulados normativamente e, como tais, não dispensam a incidência para o seu desencadeamento ou para que surtam os seus regulares efeitos.
Examine-se, então, a situação em que o Ministério Púlico, dominus litis, de posse das peças informativas de um inquérito, inobstante convencido da materialidade e autoria delitivas, peticione pelo arquivamento, por entender que a pretensão punitiva foi deleteriamente atingida pela norma prescricional, cujos efeitos teriam se operado a certo tempo, ao que o juiz, convencendo-se do contrário, remete os autos à altaneira instância competente do acusador público, que os devolve, ratificando o entendimento do parquet oficiante, quando então o magistrado, a despeito de persistir convencido do contrário, e de até mesmo expressar essa sua contrariedade em seu ato, está obrigado e efetivamente procede ao arquivamento. Indaga-se: quem teria feito incidir a norma extintiva da punibilidade? De quem foi a vontade que lha determinou? Quem a impulsionou ou movimentou? Não se concebe que a fruição de um prazo não somente fora desencadeada, como também exaurida, isto é, foi da ignição à consumação, e, de conseguinte, uma pretensão fora fulminada, sem igualmente conceber que a norma que prevê uma e outra dessas ocorrências haja incidido por ocasião da materialização daqueles eventos, tendo em vista que não se há cogitar de efeitos jurídicos faltante a incidência. Como sustentar que a norma, inobstante haver sido “incidida” somente no presente, abriu e fechou, a um só e mesmo tempo, um interstício temporal, passado antes dessa sua incidência. Daí a já mencionada observação conciliadora de Gabriel Ivo, segundo a qual “a observação humana integra a incidência, que é (re) feita na mente do aplicador do direito”[40].
O mesmo se dá na seara do Direito Tributário. Veja-se que se trata de atividade plenamente vinculada, de modo que os atos e fatos oneradores ou desoneradores hão de necessariamente ser formalizados, solenizados sem o quê não se há falar ainda de juridicização, uma vez que a documentação é elemento integrante do suporte fático não apenas para a constituição de ofício do crédito tributário e consectários, tais como as sanções pela pelo eventual inadimplemento relativo ou absoluto etc., mas também para os atos de constituição e reconhecimento espontâneo da obrigação tributária por parte do contribuinte. Exemplifica-se: o fato de ser proprietário de bem imóvel em perímetro urbano no 1.º dia do ano implica ser devedor do IPTU, por força da incidência da específica regra-matriz de incidência tributária. Entretanto, no vencimento legal da obrigação, não há como o devedor, sponte sua, satisfazer a obrigação, a tempo e modo, a não ser por meio da escrituração, da formalização, da documentação, da solenização do ato de adimplemento, de pagamento, vale dizer, para pagar há de verter o evento em linguagem jurídica competente. Diferentemente do que ocorre noutros tipos de obrigações que não a tributária, como, por exemplo, no direito subjetivo a alimentos do filho menor em face de quem detenha o poder familiar, quando o pai, a mãe ou ambos pagam o seu débito, diariamente, sem que tenham de emitir qualquer documento ou formalizar qualquer conduta, para que se tenha por instaurada a relação e satisfeita a prestação, que somente passará a ser necessária em caso de inadimplemento, de conduta ilícita, portanto.