Toda violência doméstica e familiar contra mulher no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação de afeto está abrangida pela Lei 11.340/06?
Para os efeitos da Lei 11.340/06, segundo o seu artigo 5º: “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” :
(I)–no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; (II) – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; (III) – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
O artigo 5º é taxativo, reconhecendo para os efeitos da Lei 11.340/06, somente a conduta baseada no gênero. Por outro lado, interpretar o mencionado artigo ignorando a exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos, pois: “o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la passível de proteção penal especial.” (Nucci, 2007:1043).
Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica não se confunde com violência de gênero. É necessário: “atentar para a diferença existente entre violência doméstica e a violência de gênero (art. 5º da CF/88) por essência discriminatória, da qual a mulher é principal vítima.” (Prado, 2008:142)
Quando uma violência doméstica e familiar contra mulher no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação de afeto caracteriza-se como conduta baseada no gênero? Para os efeitos da Lei 11.340/06, o que é gênero? Pela redação do dispositivo legal, a palavra gênero não se define simplesmente por critério biológico porque a frase ficaria sem sentido. Algo assim: configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada na mulher. Tautologia que não é permitida ao intérprete imputar à lei, ou seja, na dogmática penal, o intérprete não pode presumir erro na lei ou palavras desnecessárias – posto que estuda a lei como um dogma, um fato que não pode modificar, mas tão somente compreender (interpretar). Com efeito, o termo gênero não pode ser confundido com sexo. “Este, na maioria das vezes, descreve características e diferenças biológicas, enfatizando aspectos da anatomia e fisiologia dos organismos pertencentes ao sexo masculino e feminino. As diferenças sexuais assim descritas são dadas pela natureza.” (Teles e Melo, 2003:17) Em outro passo, recusando o existencialismo biológico, o conceito de gênero é utilizado largamente nas ciências sociais designando a construção social do masculino e do feminino. A precursora desse conceito foi Simone de Beauvoir que condensou os seus fundamentos na famosa frase: “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher.” (Saffioti, 2004:45;107) A crença segundo a qual a mulher é fisicamente mais fraca que o homem não é biológica, mas cultural. É a cultura que proclama nos mais diversos aspectos as diferenças sociais entre mulher e homem. É a cultura que aponta para o lar como o lugar da mulher, o cuidar da casa, o cuidado com os filhos... e a submissão ao homem. O termo gênero, então, é utilizado para: “demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as dependentes.” (Teles e Melo, 2003:16) Portanto, não é a anatomia que define o papel social do feminino ou do masculino, mas a cultura. É a cultura que determina à mulher o papel social feminino e ao homem o papel social masculino, ou seja, o comportamento que se espera de cada um. Especificamente, o comportamento da mulher no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação de afeto não é definido pela sua anatomia, mas pela cultura na qual ela está inserida. Se for uma cultura machista, a mulher deve ser submissa ao homem. Deve servi-lo, com dedicação. Qualquer transgressão, autoriza ideologicamente ao homem castigar a mulher para que ela aprenda o seu papel – compreenda o seu lugar na ordem das coisas. Quando assim age, o homem realiza uma conduta baseada no gênero. Por isso – ou seja, porque dirigida contra todas as mulheres – a violência de gênero carrega um estigma como se fosse um sinal no corpo e na alma da mulher. “É como se alguém tivesse determinado que se nem todas as mulheres foram espancadas ou estupradas ainda, poderão sê-lo qualquer dia desses. Está escrito em algum lugar, pensam.” (Teles e Melo, 2003:11)
Nós, brasileiros, percebemos de imediato quando a violência doméstica contra mulher é uma conduta baseada no gênero porque fomos educados em uma cultura machista. Na violência de gênero, o homem se comporta como se estivesse no seu direito e a mulher – não raras vezes – se sente culpada. Em pesquisa nacional sobre as condições de funcionamento das delegacias especializadas no atendimento às mulheres, realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, foi constatado que: “a prática da violência doméstica e sexual emerge nas situações em que uma ou ambas as partes envolvidas em um relacionamento não cumprem os papéis e funções de gênero imaginadas como naturais pelo parceiro. Não se comportam, portanto, de acordo com as expectativas e investimentos do parceiro, ou qualquer outro ator envolvido na relação.” (Teles e Melo, 2003:19) É exatamente essa motivação do sujeito ativo que qualifica a violência doméstica contra mulher como violência de gênero. Por exemplo, o marido que mata a esposa porque não admite a separação – ela lhe pertence. Ou quando ele lhe aplica uma surra para que aprenda a lhe respeitar ou obedecer. Ou quando ele a ameaça ou lhe rasga as roupas para mostrar quem é que manda. Em todas essas condutas fica claro que o homem agiu como se tivesse direitos sobre a mulher – esse é o dado de fato que caracteriza a conduta baseada no gênero para os efeitos da Lei 11.340/06.
Conclusão
A Lei Maria da Penha não abrange toda e qualquer violência doméstica ou familiar contra a mulher, mas apenas aquela que pode ser qualificada como violência de gênero, isto é, atos de agressão motivados não apenas por questões estritamente pessoais, mas expressando posições de dominação do homem e subordinação da mulher. Pois as situações de violência muitas vezes acontecem por alguns homens acharem que são superiores as suas companheiras e fazendo-as acreditar que realmente o são, e nessa qualidade podem fazer o que acharem de direito. Faz se necessário que a mulher tenha coragem de denunciar as agressões sofridas perante as autoridades competentes para que as medidas cabíveis sejam adotadas. O estado disponibiliza meios para uma denunciam rápida e efetiva que são os números 180 central de atendimento as vítimas, criada pela secretaria de politica das mulheres (SPM) e o número 100 para denunciar violação a Direitos Humanos ou ainda para obter informações. Não podemos nos calar.
Bibliografia:
ALVITO, Marcos e Velho, Gilberto.(org.). Cidadania e violência. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. 2007. Leis penais e processuais penais comentadas. 2ª ed. São Paulo: RT.
MELO, Mônica de. 2003. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense
PRADO, Luiz Regis. 2008. Curso de direito penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: RT.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. 2004. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.