3.COMPARAÇÃO ENTRE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA E INSTITUTOS AFINS
Várias são as medidas de urgência postas à disposição dos operadores do Direito pela legislação processual civil. Dentre essas medidas, podemos citar, além da antecipação dos efeitos da tutela (geral ou específica), objeto deste estudo, as medidas cautelares, o julgamento antecipado da lide, a ação monitória e a liminar em mandado de segurança.
No decorrer deste capítulo é feito exame comparativo entre a tutela antecipada e tais institutos.
3.1. Tutela antecipada e medida cautelar
A tutela antecipada e a tutela cautelar, ambas previstas em nosso ordenamento jurídico, apresentam relevantes e numerosos pontos de contato; ambas as espécies de tutela pressupõem cognição sumária, regem-se pela instrumentalidade, são precárias, fundadas em juízo de probabilidade e servem de armas na luta contra o perecimento de direito pela ação do tempo.
No entanto, os doutrinadores, em sua maioria, fazem distinções bem acentuada entre os dois tipos de tutela; cumpre-nos ressaltar algumas delas.
Primeiramente, analisemos a natureza jurídica dos institutos em questão.
O dominante posicionamento doutrinário estabelece natureza jurídica absolutamente dissociada uma da outra.
Luiz Guilherme Marinoni, adepto da idéia supra, diferencia a natureza jurídica dos dois institutos, entendendo que a tutela que satisfaz antecipadamente o direito não é cautelar porque nada assegura ou acautela. Ressalta que "a tutela antecipada não tem por fim assegurar o resultado útil do processo, já que o único resultado útil que se espera do processo ocorre exatamente no momento em que a tutela antecipatória é prestada. O resultado útil do processo somente pode ser o ‘bem da vida’ que é devido ao autor, e não a sentença acobertada pela coisa julgada material, que é própria da ‘ação principal’. Porém, a tutela antecipatória sempre foi prestada sob o manto da tutela cautelar. Mas é, na verdade, uma espécie de tutela jurisdicional diferenciada". [37]
Ernani Fidelis dos Santos tem entendimento semelhante; afirma que "a medida cautelar, em razão de sua provisoriedade, não pode, em princípio, ter conteúdo idêntico à própria satisfação", pois, se assim o for, falar-se-á em tutela antecipada, e não em tutela cautelar. [38]
João Batista Lopes, de forma ainda mais clara, enuncia essa diferenciação: "a liminar cautelar é caracterizada não pela satisfatividade, isto é, não pode implicar o adiantamento dos efeitos da tutela de mérito. A tutela antecipada caracteriza-se, precisamente, pelo adiantamento desses efeitos. Concede-se que, em ambas, existe antecipação de efeitos, mas na tutela cautelar só se antecipa a eficácia da sentença do processo cautelar, não assim do mérito do processo principal. Além disso, a liminar cautelar é marcadamente intrumental, isto é, tem por função garantir o resultado útil do processo principal, evitando que a demora na prestação jurisdicional possa acarretar danos irreparáveis ou de difícil reparação. Já a tutela antecipada não está relacionada a outro processo, mas traduz adiantamento de efeitos do mérito que será deslindado naquele mesmo processo". [39]
Por outro lado, Antônio Cláudio da Costa Machado [40] afirma que a tutela antecipada constitui uma forma de tutela cautelar, por requerer a presença do requisito periculum in mora, caracterizador das cautelares. Em seu entendimento, as diferenças entre ambas são atenuadas, e, consequentemente, eventuais confusões são vistas com menos rigor.
Talvez seja esse o entendimento mais acertado, pois, ao contrário do que defende Luiz Guilherme Marinoni, a antecipação dos efeitos da tutela também está assegurando o cumprimento de algo, no caso, o efetivo provimento final.
O autor defende, ainda, que se aproveite o pedido formulado equivocadamente, amoldando-o ao fundamento legal. A legislação processual civil atual, inclusive, parece estar participando dessa opinião, como poderemos notar à frente, com o advento da Lei 10.444/02, que estabeleceu a fungibilidade dos dois institutos.
Outra diferença também é constantemente apontada, e diz respeito aos requisitos das duas medidas; "à liminar cautelar bastam os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora aliados à urgência especial que a distingue da providência concedida regularmente na sentença cautelar; para a tutela antecipada requer-se mais, a prova inequívoca de que resulte verossimilhança das alegações". [41]
Reis Friede confirma este posicionamento: "na medida cautelar, basta a existência do fumus boni juris e do periculum in mora para que ela se concretize. Já na tutela antecipada, exige que haja prova inequívoca da verossimilhança da alegação, fundada no receio de dano irreparável ou de difícil reparação ou que fique caracterizada a resistência da parte diversa, conforme reza o art. 273 do Código de processo Civil". [42]
Alguns julgados também estabelecem a diferenciação segundo esse critério, a se ver pelos seguintes precedentes:
Tutela antecipada não se confunde com medida liminar cautelar, eis que nesta a providência se destina a assegurar a eficácia prática da decisão judicial posterior, enquanto que naquela existe o adiantamento do próprio pedido de ação. (Ac. Un. 5ª Câm. TJ/RJ, 10.12.1996, Ag. 4.266/96, rel. Des. Miguel Pachá; RDT 32/240)
Não se confundem medida cautelar e tutela antecipada. Na primeira bastam fumaça de bom direito e perigo de dano. Na segunda, exige-se que a tutela corresponda ao dispositivo da sentença; haja prova inequívoca, capaz de convencer o juiz da verossimilhança das alegações; fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ou manifesto propósito protelatório do réu. Tudo isso mediante cognição provisória, com audiência do demandado, que pode ser dispensada em casos excepcionais. (Ac. Un. 3ª Câm. TJ/SC, 17.09.96. Ag. 96.001.452-7, rel. Des. Amaral e Silva; Adcoas, 30.04.1997)
Além destes, mais traços distintivos são constantemente apontados: a medida cautelar tem sentido publicista, pois se objetiva o resguardo imediato do processo principal, enquanto a tutela antecipada não tem tal sentido, pois visa resguardar o interesse material privado da parte requerente da medida; em razão do sentido publicista que orienta a cautelar, esta pode ser concedida de ofício, enquanto que a antecipação dos efeitos da tutela, diante de seu caráter privatístico, não o pode. [43]
Apesar dessa "aparente facilidade" em se distinguir, teoricamente, a tutela antecipada da tutela cautelar, na prática, entre os operadores do direito, a confusão é muito grande. No sentido de facilitar a aplicação da norma pertinente à tutela antecipada, a lei processual civil brasileira vem passando por reformas, na tentativa de se aperfeiçoar. Perceberemos como se dará tal tentativa logo mais, ao tratarmos da já citada Lei 10.444/02, em vigor desde o dia 07.08.2002.
3.2. Tutela antecipada e julgamento antecipado da lide
Apesar de alguns doutrinadores entenderem que o julgamento antecipado da lide (art. 330, CPC) seja uma espécie de tutela antecipada, prevalece o entendimento de que os dois institutos não se confundem.
No julgamento antecipado da lide, o juiz profere sentença, põe termo no processo, proferindo uma sentença de mérito, impugnável por apelação e sujeita à coisa julgada material.
A antecipação de tutela, por sua vez, é concedida por meio de decisão interlocutória, sendo provisória e, a qualquer momento, passível de modificação ou revogação, não se submetendo à coisa julgada material; o recurso cabível, aqui, é o agravo de instrumento.
Nas lições de José Roberto Bedaque, "o julgamento antecipado da lide, embora destinado a acelerar o resultado do processo, está fundado na suficiência do conjunto probatório para possibilitar o julgamento definitivo do litígio". [44] E completa Beatriz Catarina: "suas hipóteses de concessão, previstas nos incisos I e II do art. 330 do Código de Processo Civil, decorrem da desnecessidade de produzir prova oral em audiência, seja porque a controvérsia envolve apenas matéria de direito, seja em razão da revelia. Diferentemente ocorre com a hipótese prevista no art. 273 da lei processual, que, além de não determinar a solução definitiva e irreversível do litígio, permite que, evidenciadas as circunstâncias autorizadoras da medida, os feitos sejam imediatamente antecipados, ainda que interposto recurso no efeito suspensivo". [45]
Importante ressaltar, no entanto, que mesmo havendo a possibilidade de julgamento antecipado da lide, essa circunstância não afastará o possível interesse do autor em obter a antecipação de tutela, pois entre o ajuizamento da demanda e o julgamento dito "antecipado" pode decorrer um certo tempo capaz de prejudicar a pretensão. Além disso, do julgamento antecipado da lide pode caber recurso com efeito suspensivo.
3.3.Tutela antecipada nas ações possessórias
Já se falou que a origem da tutela antecipada remonta às Ordenações do Reino, nas quais eram previstas ações possessórias. Para estas não era prevista liminar de manutenção ou reintegração, mas a prática do foro veio a consagrar, já naquela época, tal medida.
Hoje, as ações possessórias estão previstas nos artigos 920 a 933 do Código de Processo Civil. O art. 928 do referido Código estabelece que, "estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso contrário, determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada".
A liminar nas ações possessórias guarda semelhança com a tutela antecipada nos aspectos de provisoriedade e satisfatividade. De diferente, há o fato de que na tutela antecipada exige-se prova inequívoca e periculum in mora, enquanto que para a liminar possessória é bastante a prova, conforme o caso, da posse, turbação ou esbulho, e o prazo de menos de um ano e dia. Além disso, a tutela antecipada exige o requisito de reversibilidade e pode ser modificada ou revogada, de ofício, a qualquer momento, o que não a acontece com as liminares possessórias. [46]
3.4.Tutela antecipada e liminar no mandado de segurança
Prevê o art. 7º., II, da Lei n. 1.533/51 (lei do mandado de segurança) que "o juiz, ao despachar a inicial, ordenará que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida".
A liminar em mandado de segurança é uma forma de tutela antecipada com as seguintes peculiaridades: a) destina-se a suspender ato ilegal de autoridade; b) exige direito líquido e certo (prova liminar, preconstituída, do fato); c) normalmente é concedida antes das informações da autoridade (que funcionam como contestação). Outra diferença apontada – a possibilidade de concessão de ofício – encontra certa rejeição na jurisprudência, e a previsão de prazo de validade, constante da lei, nunca é aplicada, por considerar-se inconstitucional.
Na opinião de Hamilton de Moraes e Barros, "a concessão liminar da segurança tem que ser objeto de um pedido especial do impetrante, pois que não se concilia com o nosso sistema processual, nem se concebe, uma liminar outorgada de ofício". [47] Não é, porém, o pensamento de autores como Adhemar Ferreira Maciel e Sérgio Ferraz, que consideram implícito o pedido de liminar, quando a situação a justifique.
Merece referência a tese de Hamilton de Moraes e Barros, tema central da obra já citada, no sentido de que a liminar no mandado de segurança não é medida cautelar, mas antecipação do deferimento do pedido. De minha parte, entendo que tal liminar pode assumir um ou outra natureza. É exemplo o caso de mandado de segurança impetrado contra a apreensão de mercadorias. Se é deferida ao impetrante a restituição liminar das mercadorias, trata-se de antecipação do deferimento do pedido. Se, entretanto, limita-se o juiz a suspender o leilão dessa mercadoria, até o julgamento final, a providência é cautelar.
3.5.Tutela antecipada em outras ações
Há hipóteses de tutela antecipada, previstas na legislação especial, com requisitos mais ou menos semelhantes aos previstos no art. 273 do Código de Processo Civil, merecendo destaque: a) despejo liminar – Lei n. 8.245/91; b) liminar da ação civil pública – Lei n. 7.347/85; c) liminar da ação popular – Lei n. 4.417/65; d) liminares na ação de alimentos, na ação revisional de aluguel, na ação de busca e apreensão (Dec.Lei n. 911/69), na ações de desapropriação (imissão provisória na posse) e na ação de embargos de terceiro.
4.ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI N. 10.444/2002
Inicialmente, este capítulo trataria das tendências legislativas na disciplina da antecipação de tutela, examinando o então Projeto de Lei 3476/00. Ocorre que, no desenvolvimento da monografia, tal Projeto veio a ser transformado na Lei n. 10.444/2002, o que é uma prova da prioridade, em face da urgência das questões, que o Congresso Nacional tem dado à reforma processual.
Essa lei teve uma vacatio legis de três meses, tendo entrado em vigor em 07.08.2002. São as seguintes as inovações trazidas ao Código de Processo Civil em matéria de antecipação da tutela:
Art. 273. [...]
§ 3º. A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º. e 5º. e 461-A.
[...]
§ 6º. A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.
§ 7º. Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.
A primeira mudança consistiu na troca do termo execução da tutela antecipada por efetivação da tutela antecipada, sob a justificativa de que efetivação tem sentido mais abrangente.
Antes, determinava-se apenas que fossem observados, na execução da tutela antecipada, o art. 588, II e III, ou seja, especificava-se que não poderia haver alienação do domínio e, sem caução idônea, o levantamento de depósito em dinheiro, além de que, sobrevindo sentença em sentido contrário, as coisas seriam restituídas ao status quo. Agora, resta acrescentado o inciso I do art. 588, de modo que o autor deverá prestar caução destinada a garantir a reparação de danos causados ao devedor. A responsabilidade por esses danos já existia implicitamente,ou seja, mesmo sem referência ao inciso I; o que se acrescentou foi apenas a exigência de garantia.
Na nova disciplina, devem ser atendidos, ainda, os arts. 461, §§ 4º e 5º, e 461-A, este acrescentado pela mesma Lei n. 10.444. Resultou que foram estendidas à tutela antecipada geral todas as prescrições da específica, inclusive medidas de apoio (coercitivas, punitivas ou assecuratórias) para torná-la mais eficaz. [48]
Antes não estava expresso que a tutela antecipada pudesse ser concedida a apenas alguns dos pedidos cumulados ou parte deles, de tal forma que podia gerar interpretação no sentido de que a tutela só deveria abranger sempre a totalidade dos pedidos. Na nova redação do § 6º., desde que incontroversa a matéria, permite-se a antecipação de tutela parcial.
Deve ser observado que, doutrinariamente, já prevalecia interpretação ampla, admitindo antecipação de tutela parcial, citando-se por amostragem a opinião, na época, de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, segundo os quais, "havendo admissão parcial da pretensão pelo réu, quando, por exemplo, o autor pede 200 e o réu admite a dívida, mas diz que o valor é de 100, na verdade há parte da pretensão sobre a qual não houve controvérsia. Nada obsta que o autor peça o adiantamento da parte incontrovertida, sob a forma de tutela antecipatória". O mesmo entendimento era sustentado por Luiz Guilherme Marinoni: "a tutela antecipatória, fundada nas técnicas da não-contestação e do reconhecimento jurídico (parcial) do pedido, pode ser requerida com base no art. 273, II, do Código de Processo Civil, já que a tutela visa a impedir que a defesa do réu adie, indevidamente, a realização do direito – ou de parcelas de direitos – que não são mais controvertidos". [49]
O § 7º. veio permitir a fungibilidade de medidas antecipatórias e cautelares, eliminando a dificuldade, que ocorria na prática, de distinguir antecipação de tutela e medida cautelar, com a conseqüente inépcia do pedido quando medida cautelar era requerida nos próprios autos da ação principal, e não por meio de uma ação autônoma.
Como bem acentuam Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, "não teria sentido admitir-se poderia o autor pedir o mais no bojo do processo de conhecimento e precisar instaurar outro processo para formular pedido de natureza cautelar, que é menos". [50] Sirva de exemplo o caso já citado – mandado de segurança contra ato de apreensão de mercadorias. Admitamos que a questão fosse objeto de uma ação de rito ordinário. Não se justificaria poder a tutela antecipada – restituição das mercadorias – ser deferida nos autos de ação principal e exigir-se ação cautelar autônoma para a medida cautelar, provisória, de simples suspensão do leilão.
Os processualistas mais apegados à forma, por certo, irão criticar tal alteração. Poderão dizer que a instituição da tutela antecipada, nos autos do processo de conhecimento, esvazia a previsão de um processo cautelar autônomo. Se é possível antecipar provisoriamente, no mesmo processo, a própria pretensão principal, porque haveria necessidade de uma ação cautelar para obter-se medida acessória? A resposta está no princípio da instrumentalidade das formas processuais. Se a mudança, na prática, melhor atende à efetividade do processo, não há porque recusá-la por razões formais e teóricas.