04. ORÇAMENTO IMPOSITIVO E EC 86/2015
Conforme exposto no item anterior, a natureza jurídica do orçamento no Brasil sempre foi – e permanece – autorizativa, como regra geral. Contudo, embora não tenha o condão de alterar essa natureza geral, a Emenda Constitucional nº 86 de 2015 inaugurou certa mudança de paradigma ao instituir certa impositividade de parcelas de despesas fixadas no orçamento. Em outras palavras, conquanto a regra ainda seja a autorizatividade, já se pode falar, desde a EC 86/2015, em Orçamento Impositivo no Brasil, no âmbito de suas disposições. Não é recente a intenção do Congresso Nacional de transformar o modelo orçamentário brasileiro para fixar a impositividade como regra, isto é, todas as despesas, a princípio, seriam de execução obrigatória pelo Poder Executivo, excepcionado o seu cumprimento, apenas, em caso de impossibilidade superveniente. Nesse contexto, a EC 86/2015 apresenta-se como o primeiro passo dessa futura e eventual transformação. Passemos à análise de suas principais inovações.
A principal mudança promovida pela EC 86/2015 foi a reserva do percentual de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), dentro da proposta orçamentária apresentada pelo Poder Executivo, como limite destinado às emendas individuais parlamentares à Lei Orçamentária Anual. Em outras palavras, o chefe do Executivo, ao planejar o orçamento, deverá contar com a provável alteração, pela via da iniciativa parlamentar por emenda legislativa, de despesas que correspondam a até 1,2% da Receita Corrente Líquida dessa mesma proposta. No entanto, o poder de emendar não é livre, curvando-se a certos requisitos constitucionais. Conforme § 9º do art. 166 da CF/88, metade do percentual referido será destinado a despesas com ações e serviços públicos de saúde, em reforço à já existente vinculação constitucional de receitas para a área da saúde, caracterizando mais uma exceção ao princípio da não afetação da receita pública. Ainda assim, essa verba destinada à saúde será computada no cálculo do limite constitucional de despesas com ações e serviços públicos de saúde, a teor do art. 198 da CF/88, porém o § 10º do art. 166 veda, taxativamente, o financiamento por emendas de despesas com pessoal e encargos.
Nessa perspectiva, é OBRIGATÓRIA, ao Poder Executivo, a realização das programações orçamentárias oriundas de emendas parlamentares de 1,2% da RCL projetada no exercício anterior, conforme critérios de execução equitativa da programação definidos em lei complementar. É permitidos que valores de restos a pagar sejam computados, para fins de cálculo do 1,2%, até o limite de 0,6% da RCL do exercício anterior. Essa obrigatoriedade da execução orçamentária das emendas parlamentares só poderá ser afastada nos casos de impedimentos de ordem técnica e legal previstos em lei complementar. Passa a ser obrigatório, outrossim, a transferência de verbas derivadas de emendas parlamentares individuais a Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo defeso o seu bloqueio em razão da inadimplência do ente federativo beneficiado e, não bastasse, excluídos seus valores do conceito de RCL, para fins do cálculo dos limites da despesa com pessoal dos referidos entes. Por outro lado, é permitida a redução da verba destinada às emendas na mesma proporção da reestimativa da receita ou despesa que possa vir a comprometer os resultados fiscais almejados pela LDO. Havendo impedimento de ordem técnica no empenho da despesa, os §§ 14º e 15º do art. 166 da CF/88 propugnam a seguinte solução:
§ 14. No caso de impedimento de ordem técnica, no empenho de despesa que integre a programação, na forma do § 11 deste artigo, serão adotadas as seguintes medidas:
I - até 120 (cento e vinte) dias após a publicação da lei orçamentária, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública enviarão ao Poder Legislativo as justificativas do impedimento;
II - até 30 (trinta) dias após o término do prazo previsto no inciso I, o Poder Legislativo indicará ao Poder Executivo o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável;
III - até 30 de setembro ou até 30 (trinta) dias após o prazo previsto no inciso II, o Poder Executivo encaminhará projeto de lei sobre o remanejamento da programação cujo impedimento seja insuperável;
IV - se, até 20 de novembro ou até 30 (trinta) dias após o término do prazo previsto no inciso III, o Congresso Nacional não deliberar sobre o projeto, o remanejamento será implementado por ato do Poder Executivo, nos termos previstos na lei orçamentária.
§ 15. Após o prazo previsto no inciso IV do § 14, as programações orçamentárias previstas no § 11 não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos justificados na notificação prevista no inciso I do § 14.
Expostas as principais inovações trazidas pela EC 86/2015, convém analisá-las sob ponto de vista crítico, perscrutando as imbricações projetadas não só no ordenamento jurídico, mas também na economia do país, na forma como a receita pública é aplicada e no resultado efetivo da despesa pública na melhoria do bem estar da sociedade civil. Infelizmente, muitos são os vícios e problemas apontados na alteração constitucional, destacando-se a opinião de Valdecir Pascoal, que critica:
“Além do excessivo detalhamento no texto constitucional e das imperfeições de redação, a principal crítica que se faz à EC nº 86 é o fato de ela não haver estendido a impositividade do orçamento para todas as despesas aprovadas, limitando-se às programações orçamentárias decorrentes de emendas individuais dos parlamentares. Ao tempo em que detalha em excesso muitos pontos, remete muitas questões para regulação em lei complementar, o que poderá dificultar sua compreensão e efetividade”.[11]
Essa ingerência parlamentar também pode resvalar para a execução das políticas públicas, prejudicando-as na medida em que podem restringir-lhes receitas. De fato, em nosso modelo de estado e de governo incumbe ao Poder Executivo a tarefa de planejamento e execução de políticas públicas, sendo que a divisão desse mister com o Poder Legislativo pode acabar por enfraquecer o poder de ação do primeiro, com prejuízo para a própria sociedade. Nos casos em que o Executivo não se desincumbe a contendo desse importante ônus de planejar e gerir a vida social, cabe à própria sociedade rever seus governantes no momento das eleições. Por outro lado, procurar atalhar esse caminho através de uma mudança institucional pode, em vez de solucionar uma deficiência de certo governo, ocasionar uma limitação permanente ao próprio Poder Executivo, que não mais poderá livremente planejar e implantar programas e projetos de melhoria social por dever obediência às emendas parlamentares individuais. Tal representa, outrossim, certo desvio do foco do Poder Legislativo, que deixará de investir tempo nas tarefas constitucionais de fiscalização do Poder Executivo e de edição de atos normativos primários, para fazer as vezes de gestor público e coercitivamente impor despesas públicas através das emendas individuais. Sobre o tema, professor Fernando Facury Scaff acrescenta à crítica:
“o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86, que criou a curiosa figura do Orçamento impositivo à brasileira, pois ao invés de aprovar uma norma que realmente obrigasse o Poder Executivo a cumprir as leis orçamentárias, foi aprovada uma emenda constitucional que obriga o Poder executivo a cumprir as emendas parlamentares, que se caracterizam como uma pequena parte do orçamento, e vinculada a interesses eleitorais dos próprios parlamentares.
A bem da verdade, em face de tantos limites impostos aos parlamentares para dispor de matéria orçamentária eles tinham duas alternativas: ou propunham uma verdadeira reforma constitucional orçamentária, estabelecendo poderes para que pudessem efetivamente gerir os recursos públicos, ou criavam uma meia sola apenas para cuidar de seus interesses eleitorais — o que acabou prevalecendo. Uma pena. Para usar uma expressão popular, vê-se que a montanha pariu um rato. Poderiam ter ousado mais”.[12]
Inobstante essas ressalvas, o renomado professor consegue enxergar pontos positivos na EC sob comento, apontando como vantagem a redução do poder de barganha do chefe do Poder Executivo sobre os parlamentares, traduzido na utilização da liberação de recursos públicos como moeda de troca por votações legislativas. Nas palavras do autor:
“De toda forma, mesmo estas tímidas normas aprovadas já tem o poder de causar muitas modificações nas relações político-partidárias existentes, pois a liberação de emendas parlamentares deixará de ser uma espécie de moeda de troca nas relações entre o Congresso e o Planalto. Nem falo apenas do atual governo, mas de todos os governos do período democrático, em todos os níveis federativos, durante os quais se usou a liberação de emendas parlamentares para aprovar as matérias de interesse do Executivo junto ao Legislativo. Se o deputado votasse de acordo com o Planalto, as emendas seriam liberadas (mesmo que a conta-gotas); se votasse contra, não haveria liberação de recursos. Nos estados e municípios brasileiros esta mesma dinâmica existe e, tal como na União, é indiferente quais sejam os partidos na situação ou na oposição. A Emenda 86, embora tímida e circunstancial, se propõe a liberar o Legislativo do jugo do Executivo, o que é positivo. Repito: a ousadia poderia ter sido maior e colocado o Legislativo no efetivo comando dos destinos dos recursos que são arrecadados de todos em nosso país. Claro que muitos erros poderiam ocorrer, mas desta forma, ao longo de algumas eleições, conseguiríamos melhorar a qualidade da composição de nossos Parlamentos e instaurar um sistema de representação parlamentar estável e mais representativo em nosso país”.[13]
05. CONCLUSÃO
É possível concluir, diante do exposto, que o traçado do Direito Financeiro na Constituição Federal contempla o instituto do orçamento, via de regra, como mero ato condicional à realização da despesa pública, prevalecendo a discricionariedade do gestor público na efetiva alocação das dotações orçamentárias. A lei de orçamento, portanto, assume o caráter legal apenas sob a ótica formal, pois materialmente consiste em ato administrativo, produzindo efeitos apenas pelo período de um ano (lei de efeitos concretos).
Conquanto seja mesmo regra a autorizatividade, sempre se observou notas de impositividade do orçamento nas normas constitucionais, a exemplo da vinculação das receitas públicas a despesas de saúde e educação, bem como das transferências constitucionais obrigatórias, que restringem o poder de disposição do Poder Executivo sobre o erário. Com a promulgação da Emenda Constitucional 86/2015, ganhou força essa impositividade, visto que agora o Poder Executivo também é vinculado às alterações legislativas na Lei Orçamentária Anual, aprovadas por emendas parlamentares individuais até o limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida estimada no projeto. Com isso, a doutrina dividiu-se na avaliação da mudança: embora se tenha criticado a ingerência pelo Poder Legislativo nas competências do Executivo, além da possível intenção de uso das emendas para finalidades pessoais e eleitoreiras dos parlamentares, elogiou-se a mitigação do poder de barganha do Executivo nos atos de liberação de recursos para os demais poderes. Em todo o caso, deve-se reconhecer na EC 86/15 um primeiro passo para a maior democratização do orçamento, no sentido de aumentar a participação popular, através dos representantes parlamentares, na elaboração e gestão das contas públicas, coibindo, inclusive, os abusos do Poder Executivo quando no controle absoluto das receitas/despesas públicas.
06. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010
PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015.
PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014.
SCAFF, Facury Fernando. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela Emenda Constitucional 86. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/contas-vista-surge-orcamento-impositivo-brasileira-ec-86. Acessado em: 29 de janeiro de 2016.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010
Notas
[1] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pág. 171.
[2] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 18.
[3] Idem.
[4] PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014, pág. 47.
[5] STF; ADI 1050 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/1994, DJ 23-04-2004 PP-00006 EMENT VOL-02148-02 PP-00235 RTJ VOL-00191-02 PP-00412.
[6] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 19.
[7] HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010, pág. 60.
[8] STF, RE 34581, Relator(a): Min. CÂNDIDO MOTTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/10/1957, DJ 05-12-1957 PP-***** EMENT VOL-00325-01 PP-00246.
[9] STF, RE 75908, Relator(a): Min. OSWALDO TRIGUEIRO, Primeira Turma, julgado em 08/06/1973, DJ 10-08-1973 PP-05613 EMENT VOL-00916-02 PP-00547.
[10] PISCITELLI, Tathiane. Direito financeiro esquematizado. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014, pág. 58.
[11] PASCOAL, Valdecir Fernandes. Direito financeiro e controle externo. 9ª Ed. São Paulo: Método, 2015, pág. 22.
[12] SCAFF, Facury Fernando. Surge o orçamento impositivo à brasileira pela Emenda Constitucional 86. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/contas-vista-surge-orcamento-impositivo-brasileira-ec-86. Acessado em: 29 de janeiro de 2016.
[13] Idem.