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Erro de execução na legítima defesa

22/03/2016 às 14:08

Resumo:


  • Aberratio ictus em legítima defesa é um tema jurídico que discute a responsabilidade penal quando alguém, ao se defender legitimamente de um agressor, atinge acidentalmente um terceiro.

  • Existem diferentes interpretações sobre a aplicação da legítima defesa e do estado de necessidade nesses casos, com argumentos baseados na equivalência dos objetos atingidos e na razoabilidade do sacrifício de um bem jurídico.

  • A solução para essa questão pode ser encontrada na análise da culpabilidade, considerando a inexigibilidade de conduta diversa, em vez de justificar a ação com base na legítima defesa ou no estado de necessidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

(A), em situação de legítima defesa, atira contra (B), agressor, atingindo mortalmente (C), estranho à agressão. Qual o enquadramento jurídico-penal de (A)?

1. INTRODUÇÃO

O tema que passo a enfrentar é a aberratio ictus, erro de execução, na legítima defesa. Imagine-se a seguinte hipótese: (A), em situação de legítima defesa, atira contra (B), agressor, atingindo mortalmente (C), estranho à agressão. Surge a questão: qual o enquadramento jurídico-penal de (A)? A questão não é recorrente na prática, havendo poucos julgados a respeito, uns entendendo que (A) estaria justificado pela legítima defesa, outros pelo estado de necessidade. A relevância da questão não se resume ao debate teórico, pois pode haver importantes consequências jurídicas, a depender do enfoque adotado no enfrentamento da questão. Essa é a razão que nos leva a suscitar a discussão e tentar responder à pergunta  inicial neste artigo.


2. LEGÍTIMA DEFESA

Trago, neste artigo, dois posicionamentos, talvez os mais aceitos hoje: legítima defesa e estado de necessidade. Comecemos por aquela.

Para alguns autores – o Professor Rogério Greco, por exemplo – a hipótese de legítima defesa com erro na execução é perfeitamente viável, e A estaria justificado pela legítima defesa. Argumentam com base no artigo 73 do Código Penal, que prevê: 

Art. 73. Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo ao disposto no § 3º do artigo 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art.70 deste Código. 

Como bem salienta aquele autor:

 “pode ocorrer que determinado agente, almejando repelir agressão injusta, agindo com animus defendendi, acabe ferindo outra pessoa que não o seu agressor, ou mesmo a ambos (agressor e terceira pessoa). Nesse caso, embora tenha sido ferida ou mesmo morta outra pessoa que não o seu agressor, o resultado advindo da aberração no ataque (aberratio ictus) estará também amparado pela causa de justificação de legítima defesa, não podendo, outrossim, por ele responder criminalmente”[1]. 

Para o autor, portanto, a responsabilização do agente, em relação ao terceiro inocente, se restringiria à seara civil.


3. QUESTIONAMENTOS AO ARGUMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA

O professor Juarez Cirino dos Santos diverge dessa posição e leciona que o agente não estaria sob o manto de nenhuma causa de justificação. Nas palavras do professor:

“em caso de objetos em situação jurídica distinta (A atira contra B em legítima defesa, mas atinge C sem justificação, situado atrás de B): tentativa de homicídio justificada de homicídio contra B e homicídio imprudente contra C (igualmente, parece inadmissível a solução do artigo 20, § 3º, CP, porque a natureza antijurídica do excesso extensivo excluiria a justificação do homicídio imprudente)” [2].

Ou seja, como as situações jurídicas  - de (A) frente a (B) e de (A) frente a (C) - são distintas, o “homicídio imprudente” não seria alcançado pela legítima defesa – que, obviamente, alcançaria a hipótese de (A) ter atingido (B). 

Dissinto do primeiro entendimento (legítima defesa) por outras razões – para além da diversidade das situações jurídicas apontada por Juarez Cirino dos Santos. A primeira razão de discordância vem da própria literalidade do artigo 73, CP, que o sustenta. Isso porque o dispositivo diz que “responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do artigo 20 deste Código”. Chamo atenção para a expressão “praticado o crime contra aquela”, na literalidade da lei. Ora bem, a reação de (A) contra seu agressor não constitui crime; afinal, a conduta encontra-se amparada pela legítima defesa, causa de exclusão de ilicitude, nos termos do artigo 23, inciso II, CP. Excluída a categoria ilicitude, não há crime. Parece-me patente que o artigo 73, CP, se aplica tão-somente aos crimes, razão pela qual não me parece um bom argumento para a situação hipotética que estamos enfrentando.

Além disso, na hipótese aventada, não se encontra presente um dos princípios que embasam o direito de legítima defesa: a “afirmação do Direito”. Na lição de Claus Roxin, o direito à legítima defesa se assenta em dois princípios: o da proteção individual e o da "afirmação do Direito". Sempre conforme o autor, o legislador, ao permitir que o particular se utilize de toda defesa necessária à sua proteção, também tem como fim a prevenção geral, pois: 

“considera deseable que el orden legal se afirme frente a agresiones a bienes jurídicos individuales aunque no estén presentes los órganos estatales que estarían en condiciones de realizar la defensa.” [3]

Ainda conforme Roxin:

“Pues toda agresión repelida en legítima defensa pone de manifiesto que no se vulnera sin riesgo el ordenamiento jurídico y estabiliza el orden jurídico. A esa intención preventivogeneral es a lo que se alude cuando se habla del ‘prevalecimiento del Derecho’ o de la ‘afirmación del Derecho’ como idea rectora del derecho de legítima defensa.” [4]

Portanto, só se configura a legítima defesa se presentes, a um só tempo, os princípios da proteção individual e da afirmação do direito. Voltando à nossa situação hipotética. Ora, não há que se falar em “afirmação do Direito” com a morte ou ferimento do terceiro alheio à agressão, arredando-se, assim, a legítima defesa. Ou seja, como esse princípio basilar do instituto não foi atendido, o entendimento que se baseia na legítima defesa não parece ser o mais adequado.

Ademais, em sede de aberractio ictus, o nosso Código Penal adotou a teoria da equivalência. Nesse sentido a doutrina parece uníssona. Em síntese, duas teorias disputam a primazia de fundamentar o erro na execução: a teoria da concretização e da equivalência. Segundo a teoria da concretização, que parece mais prestigiada na literatura internacional, o dolo pressupõe a sua concretização em um determinado objeto; isto é, se em consequência do desvio se alcança outro objeto, então, falta o dolo em relação a este [5]. Já pela teoria da equivalência, tem-se que o desvio do curso causal não tem influência no dolo, devido à equivalência típica dos objetos. Desse modo, se (A) quis matar uma pessoa (B) e acabou por matar uma pessoa (C), haveria um homicídio consumado em relação a este, já que o dolo não sofreria qualquer influência [6]. 

Na hipótese proposta no início deste artigo, como bem salientou Juarez Cirino dos Santos, as situações jurídicas não são equivalentes, e a causa de justificação (legítima defesa) não ampara o homicídio contra (C). Nesse sentido, Roxin apresenta um exemplo elucidativo:

“A quiere defenderse mediante um bastonazo frente a um agresor y alcanza, debido a um error en el golpe, a su esposa B, que no intervenia en el asunto. Aquí también la teoria de la equivalência hay de reconecer que frente al agresor concurre una tentativa de lesiones justificada, mientras que además hay que examinar si en relación com la esposa pueden apreciarse unas lesiones imprudentes” [7].


4. ESTADO DE NECESSIDADE E QUESTIONAMENTOS

Fundamentação também utilizada é a causa de justificação “estado de necessidade”, insculpida no artigo 24, caput, CP: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.

Há duas teorias sobre o estado de necessidade: a teoria diferenciadora e a teoria unitária. 

A teoria diferenciadora, como se sabe, admite o estado de necessidade tanto como causa de justificação, quanto como causa de exclusão de culpabilidade, a depender dos interesses em conflito. Não basta, na esteira dessa teoria, para justificar a agressão, o maior valor do bem a ser salvo frente ao sacrificado, devendo ser levado em conta também a origem do perigo. Se este partiu do titular do bem que sofreu a ingerência, o caso é de estado de necessidade defensivo, que admite o sacrifício do bem de maior valor – atentando-se sempre para a razoabilidade; se não, é de estado de necessidade agressivo, que exige um valor consideravelmente maior do bem preservado, em respeito ao direito de autonomia. Não sendo o caso de justificação, passa-se a examinar a culpabilidade, sob a ótica da inexigibilidade de conduta diversa. Presente a inexigibilidade, o agente estará ao amparo de uma causa de exclusão de culpabilidade.

Já a teoria unitária passa ao largo do valor do bem e da distinção entre estado de necessidade justificante e exculpante, e admite o sacrifício do bem de maior valor, observada a razoabilidade. O estado de necessidade é sempre causa de justificação. É a teoria abraçada pelo nosso Código Penal, segundo o entendimento majoritário. 

Nesse contexto, em sentido diverso a esse entendimento, vale transcrever preciosa lição de Francisco de Assis Toledo: 

“Em princípio, não nos parece ‘razoável’, para usar-se ao pé da letra a terminologia do art. 24 do Código Penal – permitir-se o sacrifício de um bem de maior valor para salvar-se o de menor valor. Assim, inaplicável a essa hipótese é a causa de exclusão do crime do artigo 23, I, tal como a define o artigo 24. Todavia, caracterizando-se, nessa mesma hipótese, o injusto, a ação típica e antijurídica, há que se passar ao exame da culpabilidade do agente, sem a qual nenhuma pena lhe poderá ser infligida. E, nesta fase, a nível do juízo de culpabilidade, não há dúvida de que o estado necessário, dentro do qual o bem mais valioso foi sacrificado, poderá traduzir uma situação de inexigibilidade de outra conduta, que se reputa, conforme sustentamos no título anterior, uma causa de exclusão de culpabilidade” [8].

Registre-se que o Código Penal Militar, decreto-lei 1001, de 21 de outubro de 1969, em seus artigos 39 e 43 [9], faz a distinção entre o “estado de necessidade, como excludente de culpabilidade” e “estado de necessidade, como excludente do crime”.  Neste caso, a justificação exige “que o mal causado, por sua natureza e importância, é consideravelmente inferior ao mal evitado”.


5. REPERCUSSÕES PRÁTICAS DA QUESTÃO

A questão é de extrema importância e não se limita ao plano teórico; muito pelo contrário, tem sérias consequências práticas. Com efeito, como bem observa Roxin:

“las causas de justificación conceden también derechos de intromisión; es decir, que el afectado no sólo ha de renunciar a una legítima defensa contra la actuación del legitimado, sino que también tiene que soportarla de modo general(...), sin poder invocar otras causas de justificación para efectuar una defensa lesiva de bienes jurídicos” [10]. 

Veja que o mesmo não acontece com as causas de exculpação. Quem pratica uma ação exculpada não tem direito de intromissão; quem a sofre pode repeli-la manejando o direito de legítima defesa.


6. EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE: INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA

A lição do Professor Francisco de Assis Toledo acima referida, entretanto, não enfrenta o punctum dolens da nossa questão: justifica-se a ocisão de uma vida para salvar outra, fora do âmbito da legítima defesa? Poderia se sustentar o estado de necessidade? A doutrina dominante parece responder que sim, com fincas no artigo 24, caput, CP. Ocorre que, à luz do artigo 43 do Código Penal Militar, a resposta parece ser não, pois, a sua letra exige “que o mal causado, por sua natureza e importância” seja “consideravelmente inferior ao mal evitado”.

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Ora, pegando carona no surradíssimo exemplo da “tábua de Carneades”, em que um dos náufragos mata o outro na disputa da tábua de salvação, na linha da doutrina dominante, a morte estaria justificada. A análise da mesma situação, porém à luz do Código Penal Militar, nos leva à conclusão de que a morte estaria exculpada (estado de necessidade exculpante), e não justificada – afinal, uma vida não vale mais que outra. 

Entendo que a solução da questão deva passar necessariamente pela aplicação do princípio constitucional da razoabilidade. Conforme o artigo 24, caput, CP – “não era razoável exigir-se” –, não se pode, a meu sentir, sustentar a causa de justificação “estado de necessidade” para amparar o agente que, em situação de legítima defesa, mata um terceiro alheio à agressão. Melhor seria buscar a solução no campo da culpabilidade.

Na hipótese objeto deste artigo, respondendo à pergunta lançada quanto à situação jurídico-penal de (A), entendo que sua conduta não está justificada. São incabíveis as invocações à legítima defesa e ao estado de necessidade, conforme visto acima.

A solução deve ser buscada no campo da culpabilidade. Na hipótese de (A), em situação de legítima defesa, atirar contra (B), agressor, atingindo mortalmente C, estranho à agressão, (A) estaria exculpado, à luz da causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa, já que, considerando-se as circunstâncias, lhe era extremamente difícil, naquele momento específico, atender ao apelo da norma que proíbe a conduta de matar. 


7. CONCLUSÃO

A solução à questão proposta neste artigo deve ser buscada no campo da culpabilidade. Na hipótese de (A), em situação de legítima defesa, atirar contra (B), agressor, atingindo mortalmente C, estranho à agressão, a conduta de (A) não está justificada, sendo incabível invocar a legítima defesa ou o estado de necessidade. Entendo que (A) estaria exculpado, pois, na situação em que se encontrava, não seria razoável exigir-lhe qualquer conduta diversa de forma a atender ao apelo da norma que proíbe o homicídio.


8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, V.1 - Parte Geral, 14ª edição, Ed. Impetus, p. 358.

[2] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral, 3ª edição, Ed. Conceito Editorial, p. 160.

[3] Roxin, Claus. Derecho Penal, Parte General, Tomo I, tradução de Diego- Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, p. 608.

[4] Roxin, op. cit., p. 608-609. 

[5] Roxin, op. cit., p. 492.

[6] Roxin, op. cit., p. 493.

[7] Roxin, op. cit, p. 493.

[8] Greco, op. cit., p. 317.

[9] Estado de necessidade, como excludente de culpabilidade - Art. 39. Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito protegido, desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa.Estado de necessidade, como excludente do crime - Art. 43. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para preservar direito seu ou alheio, de perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, desde que o mal causado, por sua natureza e importância, é consideravelmente inferior ao mal evitado, e o agente não era legalmente obrigado a arrostar o perigo.

[10] Roxin, op. cit., p. 602.

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Sobre o autor
Cosmo Ferreira Filho

Diplomata, Graduando em Direito - Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Cosmo Ferreira. Erro de execução na legítima defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4647, 22 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47390. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trata-se de questão relevante, mas que tem merecido pouca atenção da doutrina, com brevíssimas linhas.

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