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A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização

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4 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICO-PENAIS DA NATUREZA FISCAL AO DESCAMINHO

4.1 Necessidade de lançamento definitivo do crédito tributário

Como resta claramente demonstrado, o descaminho e os crimes contra a ordem tributária, além de protegerem o mesmo bem jurídico, assemelham-se quanto ao tipo penal, devendo a ambos, por lógica e senso de justiça, idêntico tratamento.

Logo, o descaminho, consistindo em crime material de natureza tributária, pressupõe que a autoridade administrativa somente poderá exigir o crédito tributário do contribuinte, da mesma forma que somente poderá haver representação fiscal para fins penais, se houver instaurado, preliminarmente, processo administrativo que respeite o direito de contraditório e ampla defesa, nos moldes do art. 83 da Lei 9.430/1996.

Ademais, a necessidade de se aguardar a conclusão do processo administrativo fiscal para que se inicie a persecução penal também encontra previsão na súmula vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incisos I a IV, da Lei no 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo” (BRASIL, 2009). 

O lançamento do crédito tributário é indispensável, pois é o ato da Administração Tributária que quantifica o prejuízo imposto ao Erário pelo contribuinte, antes do recebimento da denúncia, e que pode afastar a punibilidade do ato praticado pelo sonegador, com a decisão definitiva de constituição do crédito, consistindo em valor ínfimo ou de pena de perdimento, por exemplo, resolvendo o ilícito na esfera administrativa.

Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de descaminho pressente o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário, sendo imprescindível para a resolução efetiva, objetivando a aplicação do direito penal como ultima ratio.

4.2 Extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo iludido

Em que pese não esteja previsto no rol das causas extintivas da punibilidade do art. 107 do Código Penal, o pagamento do tributo foi introduzido através da Lei 4.729/1965 no ordenamento jurídico pátrio, mirando estimular o contribuinte a pagar o tributo sonegado, sendo a extinção da punibilidade uma maneira do Estado premiar o contribuinte que agir dentro dos rigores da lei tributária.

Com o passar dos anos, o artigo 2º da Lei 4.729/1965 foi revogado e, após várias outras reformas legislativas e jurisprudências, ocorreu a edição do artigo 9º da Lei 10.684/2003, o qual assevera que o pagamento integral do débito fiscal realizado pelo contribuinte é causa de extinção de punibilidade.

Corroborando com a previsão legal vigente foi que, em 2011, sucedeu a promulgação da Lei nº 12.382, a qual alterou o artigo 83 da Lei nº 9.430/1996, e passou a dispor sobre os efeitos do parcelamento dos créditos tributários no processo penal.

Entretanto, a questão da extinção da punibilidade pela quitação integral do débito fiscal, no que se refere ao descaminho, ainda não é pacífica. A controvérsia reside, mais uma vez, na natureza do delito de descaminho, como crime material contra a ordem tributária, vez que a extinção da punibilidade com o pagamento do tributo não faz referência ao descaminho.

No entanto, passou-se a discutir a aplicação deste instituto utilizando-se da analogia in bonam partem, pois, se permitida extinguir a punibilidade pelo pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia nos crimes de sonegação fiscal, não haveria razão para negar tratamento igualitário ao delito de descaminho, onde somente há a ilusão do fisco, com o intuito de sonegar tributos.

Nesse ponto de vista, a jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2013) entendia que as disposições dessas leis, a fim de extinguir a punibilidade do contribuinte, quando do pagamento dos tributos e multas devidas, deveriam ser aplicadas por analogia.  

Contudo, recentemente, mudou-se o entendimento naquela corte mais uma vez. Segundo posição atual do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015), o pagamento do tributo devido não extingue a punibilidade do crime de descaminho, uma vez que é equiparado como crime formal e não mais como crime material contra a ordem tributária.  

Destarte, a controvérsia permanece sob qual a classificação do crime de descaminho, isto é, se consiste em crime formal ou material. No presente trabalho, defende-se que o descaminho constitui iminentemente um crime material, sendo devida a aplicação, por analogia, da extinção da punibilidade do contribuinte fraudador, pela quitação do tributo iludido.

4.3 Perdimento de bens como causa extintiva da punibilidade

Com a aplicação deste instituto em decisão administrativa pelo órgão fazendário, via de consequência, acarretaria o afastamento da incidência do tributo, não se podendo falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, não se realizaria o núcleo fático do tipo penal do artigo 334 do Código Penal.

Forçoso reconhecer como inviável tal interpretação somente pelo fato do descaminho não estar, textualmente, presente no rol de crimes contra a ordem tributária, ou até mesmo porque o artigo 9º da Lei 10.684/2003 limitou a incidência do benefício apenas aos contribuintes infratores dos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/1990.

Sob a ótica do princípio da isonomia, como garantia fundamental assegurada pela Constituição Federal, há de se questionar a própria constitucionalidade dessa interpretação literal e restritiva conferida ao texto legal, eis que o legislador não poderia valer-se de política criminal que absolva uns e condene outros numa mesma situação fática.

Mister ressaltar que o perdimento obsta a própria constituição de crédito tributário, dispensando posterior pagamento, ou seja, decretado o perdimento do bem, não há mais o que se pagar e é exatamente nesse ponto que reside a aparência justificadora do emprego da analogia no campo criminal.

A legislação aduaneira trata o perdimento de bens como uma medida reparatória de danos ao Erário, sendo que, na maioria das vezes, o valor da mercadoria apreendida é superior ao montante do tributo devido, em caso de importação ou exportação regular, o qual já seria suficiente para cobrir os danos causados à Administração Pública.

Em contrapartida, caso o valor do bem seja inferior ao valor do tributo e acessórios devidos, o perdimento como medida punitiva e o pagamento integral do quantum devido também oportunizaria a efetiva resolução do conflito, dando solução à causa em via administrativa.

Por todo o exposto, a exegese aqui defendida se impõe quando o contribuinte logra êxito na esfera administrativa ou judicial para efetuar o pagamento do montante equivalente ao tributo e acessórios, nos casos em que a decretação de perdimento se revele uma medida proporcional de resolução efetiva do crime, evitando-se aplicar a tutela penal como meio de resolução do descaminho, em respeito ao princípio da intervenção mínima.

4.4 Aplicação do princípio da insignificância

A base da teoria bagatelar do resultado crime reside na ratio essendi do Direito Penal, ou seja, no reconhecimento da necessidade de tutela a lesões substanciais a bens jurídicos, excluindo-se da esfera de proteção as ínfimas ofensas, afastando-se desde logo a tipicidade material da conduta irrelevante faticamente.

Em outras palavras, o entendimento explanado se refere ao agente que realiza uma conduta típica, porém não ofende o bem jurídico protegido pela norma, não restando presente o desvalor necessário para que se fale em tipicidade da conduta e necessidade dos rigores da lei penal, momento em que se evidencia a natureza fiscal do delito de descaminho.

Nesse sentido, se os tributos descaminhados pelo contribuinte consistirem em valor ínfimo, isto é, de pequena monta à Administração Pública, a Procuradoria da Fazenda Nacional deverá deixar de promover o ajuizamento de ações de execução por dívidas ativas da União.

Esse argumento se funda na Lei 10.522/2002, que disciplinou a Fazenda Nacional em adotar o limite mínimo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para considerar a cobrança executável. Mais tarde, em 2012, por meio da Portaria do Ministério da Fazenda n° 75, aumentou-se o limite para R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por entender que não é economicamente vantajoso para o erário ajuizar demanda, cujo valor seja inferior, ao final, a esse parâmetro.

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Gomes (2012) pondera que, uma vez alterado o quantum correspondente ao ajuizamento da execução fiscal, não resta nenhuma razão para se modificar também a incidência do princípio da insignificância no âmbito dos crimes tributários e de descaminho.

Com esse raciocínio foi que a matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, ocasião em que os Ministros passaram a julgar em favor da absolvição sumária do contribuinte acusado de descaminho quando o valor dos impostos sonegados não ultrapassasse o limite adotado pela Fazenda Nacional para desencadear a execução da dívida, conforme defendido na seguinte ementa do julgamento do Habeas Corpus n.º 121692/RS (BRASIL, 2014):

“Decisão: Ementa: Habeas corpus. Descaminho. Atipicidade da conduta. Valor do tributo sonegado inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Precedentes. Ordem concedida. 1. Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado contra acórdão assim ementado: “PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. MERCADORIAS IMPORTADAS. INSIGNIFICÂNCIA. PARÂMETRO. DÉBITO TRIBUTÁRIO SUPERIOR A DEZ MIL REAIS. NÃO APLICAÇÃO DA PORTARIA N. 75/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. [...] 8. No caso, a autoridade impetrada afastou a aplicação do princípio da insignificância pelo fundamento de que o valor de R$ 12.477,39 (doze mil, quatrocentos e setenta e sete reais e trinta e nove centavos) ultrapassaria aquele estabelecido pela legislação de regência para o arquivamento da execução fiscal (R$ 10.000,00). Ocorre que, por meio da Portaria 75, do Ministério da Fazendo, definiu-se o valor de R$ 20.000,00 como novo parâmetro para a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional e para o arquivamento das pretensões de natureza fiscal. 9. Nessas condições, consideradas as diretrizes até então utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal na análise da tipicidade de condutas que envolvem a importação irregular de mercadorias, não há como deixar de reconhecer a atipicidade dos fatos imputados ao paciente. Notadamente se se considerar que eventual desconforto com a via utilizada pelo Estado-Administração para regular a sua atuação fiscal não é razão para a exacerbação do poder punitivo. Nesse mesmo sentido foram julgados pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, dentre outros, o HC 120617, Rel.ª Min.ª Rosa Weber, e o HC 120096, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 10. Diante do exposto, com fundamento do art. 192 do RI/STF, concedo a ordem para restabelecer a sentença que absolveu sumariamente o paciente. Publique-se. Intime-se. Brasília, 04 de abril de 2014. Ministro Luís Roberto Barroso Relator Documento assinado digitalmente.”

 Destarte, fica evidente a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, uma vez que, se a própria União demonstra desinteresse em cobrar os referidos valores pela via judicial, não cabe ao órgão acusatório fazê-lo.

Noutras palavras, se a lesão é irrelevante em sede administrativa, mais ainda o será em relação ao Direito Penal, uma vez que, pautando-se pelo princípio da intervenção mínima, deve ser aplicado apenas em casos relevantes.

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Sobre os autores
Luiz Henrique Teixeira

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Paranaense - UNIPAR - Umuarama - Paraná.

Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Luiz Henrique ; DORIGON, Alessandro. A natureza fiscal do delito de descaminho e a sua real necessidade de criminalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4646, 21 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47392. Acesso em: 22 dez. 2024.

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