Conflitos na judicialização da saúde

31/03/2016 às 21:20
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Como enfrentar na judicialização da saúde a dicotomia entre os princípios do acesso universal e da reserva do possível.

 O Poder Judiciário brasileiro tem recebido nos últimos anos uma avalanche de processos relacionados à saúde, fenômeno conhecido como judicialização da saúde, nos quais se pleiteiam, em síntese, a concessão de medicamentos, de tratamentos e de procedimentos cirúrgicos, muitas vezes existentes apenas no exterior ou, ainda que existentes no Brasil, sem amparo científico a comprovar sua eficácia.

Interpostos os processos, objetivam os seus autores, em grande maioria, sejam-lhes obrigatoriamente fornecidos pelo SUS – Sistema Único de Saúde os aparatos ditos necessários à sua sobrevivência, haja vista que o direito à saúde de acordo com o que determina a Constituição Federal é de acesso universal, sem se aterem às normas determinantes às concessões pleiteadas judicialmente, como o necessário registro nos órgãos competentes daquilo que buscam como essencial.

Recente caso de grande repercussão neste sentido foi o da Fosfoetanolamina, no qual o Poder Judiciário foi acionado por inúmeras pessoas em busca de uma droga considerada na ocasião como a cura do câncer, afirmação esta sem amparo científico, haja vista inexistirem registros de pesquisas a comprovar a eficácia afirmada, assim como inexistirem registros perante os órgãos oficiais nacionais como a ANVISA a esse respeito.

O caso da Fosfoetanolamina trouxe à tona uma questão latente no Poder Judiciário há anos: o conflito entre os princípios constitucionais do acesso universal e o da reserva do possível na questão da saúde pública, senão vejamos.
 
O princípio do acesso universal à saúde é previsto na Constituição Federal como fundamental e, como tal, deve ser preservado e garantido por todos, incluindo-se aí o Estado, que deve respeitar a Carta Magna para salvaguardá-lo.
 
Este mesmo princípio ainda está previsto em inúmeros outros dispositivos constitucionais, como na determinação de que seja a saúde legislada de forma concorrente pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal e executada em comum por eles e pelos Municípios e na observância de que os Municípios devem prestar atendimento à saúde de sua população, com a possibilidade de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para a fiscalização da aplicação de suas receitas públicas em saúde, dentre outros.
 
Com o objetivo de efetivar a aplicabilidade destas normas, a Constituição Federal traz também em seu bojo normatividades relacionadas ao orçamento público, a fim de que o Poder Público possa, mediante o recebimento e o controle de suas receitas, adimplir com suas obrigatoriedades legais, dentre elas a de garantir o acesso universal à saúde pública.
 
Como se observam nestas normatividades relativas ao orçamento público, esparsas pelo ordenamento jurídico como um todo, como na Lei de Diretrizes Orçamentárias, por exemplo, as fontes de arrecadação Estatal são limitadas e burocráticas, e até que se concretizem as arrecadações, a demora quando a questão é saúde, é o que mais pesa.
 
Por esta razão, pesa ao Poder Judiciário na tomada de suas decisões relacionadas à saúde, a observância e a aplicação do princípio da reserva do possível, haja vista que ainda que a questão trazida à baila em cada pleito apresentado seja diretamente a vida e o bem estar de quem aciona os Tribunais e que seu acesso seja universal, inexiste no ordenamento vigente qualquer direito absoluto.
 
Desta forma, no intuito de amenizar a dicotomia entre os princípios do acesso universal à saúde e o da reserva da possível, algumas considerações devem ser feitas e sopesadas nesta emblemática questão enfrentada diuturnamente pelo Poder Judiciário para que a justiça aconteça.
 
Ao ser acionada a via judiciária para a busca de medidas relacionadas à saúde, um trabalho multidisciplinar é fundamental, no sentido de que profissionais da área da saúde e da área jurídica possam trabalhar conjuntamente e se aterem, primeiramente, às normas regulamentadores do tema.
 
Todos, em conjunto, devem observar o que determina o ordenamento jurídico vigente a respeito do que se busca como necessidade vital, principalmente no tocante ao seu registro na ANVISA, órgão nacional responsável pela segurança, eficácia, qualidade e dimensão econômica daquilo que é buscado judicialmente como satisfação do direito à saúde.

Feito isso, evitar-se-ão procrastinações e desgastes das mais variadas ordens, o respeito ao disposto no artigo 196 da Constituição Federal e ao que determina a Lei 8080/90, instituidora do Sistema Único de Saúde – SUS – possibilitando-se o acesso universal à saúde de todos que os que acionarem o Poder Judiciário, minimizando delongas e sofrimento aos necessitados de um posicionamento judicial.
 
O exame de algumas outras normas, como o disposto no artigo 200 da Constituição Federal, que determina competir ao SUS executar ações de vigilância sanitária ao que se pleiteia como a cura dos males à saúde, também é de grande importância.
 
A observância à Lei 9.782/99, que institui a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e à Lei 6360/76, que determina competir ao Ministério da Saúde o registro e a fiscalização da produção de substâncias relacionadas à saúde, são de grande valia quando acionada a via judicial para garantia do direito à saúde e servem como norte no sopesamento dos conflitos latentes na questão da judicialização da saúde.
 
O Poder Público se vê diuturnamente diante desta emblemática questão: representado por homens leigos, seja por advogados públicos que interpõem judicialmente os pedidos relacionados à saúde sem nenhum conhecimento sobre a eficácia do que postulam, seja por magistrados que desconhecem a comprovação científica daquilo sobre o que devem decidir, as decisões são absolutamente complexas.

Muitas vezes, por razões de consciência e com medo da morte iminente daquele que aciona o Poder Judiciário, acabam os magistrados por decidir pelo deferimento deferir tudo e de qualquer coisa, dificultando ainda mais o deslinde satisfatório do tema.

A conscientização de todos os que atuam no ramo da saúde sobre os conflitos existentes em sua judicialização, assim como a atuação dos órgãos de fiscalização sobre todas as questões relacionadas á saúde pública são medidas de extrema urgência.
Políticas públicas garantidoras de direitos, arrecadadoras de verbas ou concessoras de benefícios pleiteados na questão da saúde precisam ser revistas e harmonizadas.

É imprescindível uma parceria entre cidadãos, médicos, pesquisadores, farmacêuticos e operadores do direito, a fim de que se possa atenuar essa periclitante situação por intermédio do diálogo entre todos os que nela estão envolvidos.

Mudanças são necessárias e para que se viabilizem, a conscientização de quem as promoverá é medida indiscutível e cogente, a fim de que casos como o da Fosfoetanolamina não sejam apenas dados numéricos a tumultuar os Tribunais brasileiros e a confirmar os conflitos na judicialização da saúde.

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Deferir tudo a favor de uns é prover a morte de tantos outros, haja vista que o acesso é de todos, mas a realidade vivenciada denota em afirmar que os recursos acabam sendo de pouquíssimos, perseverando uma realidade que exige reformas, já que judicialização da saúde acaba por refletir na impossibilidade de se afirmar que todos são iguais perante a lei, e isso precisa ser repensado e reformulado, em caráter de máxima urgência.

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Sobre a autora
Natalia C. Verdi

Advogada, militante nas áreas do direito civil, família, criminal e saúde.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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