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Sucessão de empresas: de novo esse assunto chato?

19/04/2016 às 15:03
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Por que os juízes do trabalho erram tanto quando o assunto é sucessão de empresas? Os débitos da empresa que sumiu devem seguir os sócios, não o ponto comercial.

Quem milita na Justiça do Trabalho conhece bem este calvário: o empregado é dispensado e nada recebe da empresa. Move ação, ganha, mas, na hora de receber, o antigo patrão já não está mais no endereço onde foi citado. Feita a diligência, o oficial de justiça certifica que, no lugar da empresa A, está a empresa B. Ouvido, o empregado diz que a empresa B é sucessora da empresa A, e o juiz do trabalho autoriza a execução contra os bens da empresa B, apenas porque está instalada no lugar onde antes estava a empresa A. A empresa B embarga a execução, provando que nunca contratou aquele empregado nem tem qualquer ligação com a empresa A. O CNPJ é outro, o objeto social é outro, o capital social é outro, o maquinário é outro, o fundo de comércio é outro e os sócios são outros. O juiz despreza suas razões, e diz que a empresa B é sucessora de A porque está no mesmo endereço.

Quando decidem assim, os juízes demonizam o ponto, isto é, espargem sobre o ponto comercial uma espécie de maldição como se todos os futuros empresários que ali se estabelecerem devessem pagar todos os débitos deixados pelos antigos empresários, ainda que não haja entre eles nenhuma ligação jurídica ou contratual nem tenham em tempo algum contratado os empregados que agora reclamam seus direitos.

O que o Direito entende por “ponto”?

Ponto”, para o direito comercial, é o lugar onde o empresário estabelece a sua empresa. Empregado é toda pessoa física que, pessoalmente, presta serviço subordinado e oneroso ao empregador (CLT, art.3º). Empregador é a empresa e empresa é a atividade do empresário (CLT, art.2º). Se o empregador é a empresa e empresa é a atividade do empresário, o empregado presta serviços a essa atividade, e não ao empresário. É só por isso que os arts. 10 e 448 da CLT dizem que a modificação na estrutura jurídica da empresa não afeta o contrato de trabalho nem os direitos dos empregados.

Quando há sucessão no Direito do Trabalho?

Para que haja sucessão no Direito do Trabalho dois requisitos são imprescindíveis: a atividade de uma empresa tem de passar das mãos de um para as de outro empresário; e os contratos de trabalho dos empregados da antiga empresa têm de continuar com a nova empresa, sem qualquer interrupção. Ou seja: esses dois requisitos têm de existir, ao mesmo tempo; se existir um, e não existir o outro, não há sucessão.

Quando não há sucessão no Direito do Trabalho?

Dissemos que para haver sucessão é preciso que a atividade de uma empresa passe para outra empresa e que os contratos de trabalho da antiga empresa sejam mantidos pela nova. Se a atividade de uma empresa é transferida para outra no todo ou em parte, mas os empregados da empresa antiga não continuam trabalhando para a nova, não há sucessão. Esses empregados têm de buscar seus créditos junto à antiga empresa ou junto a seus sócios. Por outro lado, se a atividade da antiga empresa não foi transferida para a nova empresa, pouco importa se os empregados da antiga empresa continuaram ou não trabalhando para a nova. Não haverá sucessão, mas novos contratos de trabalho celebrados com o novo empregador.

Insisto: para que haja sucessão de empregadores, na Justiça do Trabalho, a atividade da empresa antiga tem de ser transferida no todo ou em parte para uma nova empresa, e os empregados da antiga empresa têm de continuar trabalhando para a nova. Se não for assim, nunca haverá sucessão: os empregados da antiga empresa têm de buscar seus direitos junto aos sócios da antiga empresa e os empregados da empresa nova têm de buscar seus direitos junto aos sócios da empresa nova.


Pondo os pingos nos “is”

Um exemplo talvez calhe. Dissemos que ponto é o lugar onde o empresário se estabelece para exercer sua atividade econômica. Imaginem que nesse ponto o empresário tenha se estabelecido com um motel. A atividade empresária é um motel. Depois de certo tempo esse empresário decide deixar o ponto e vende o prédio para um pastor evangélico, que monta ali uma igreja para professar a sua fé. A atividade empresária desse novo negócio é uma igreja. Nunca haverá ali sucessão trabalhista entre a antiga empresa (motel) e a nova empresa (igreja), porque a empresa (isto é, a atividade do empresário) de um (o motel) é inteiramente distinta da outra (a igreja). Onde antes havia um motel há agora uma igreja. Duas atividades inteiramente distintas, portanto. Mesmo que os empregados do antigo motel tenham passado a trabalhar para a igreja não haverá sucessão porque a atividade não é a mesma. Os empregados do antigo motel devem reclamar seus direitos dos sócios do motel e não dos pastores evangélicos. Para os empregados do antigo motel que passarem a trabalhar na igreja como empregados, haverá um novo contrato de trabalho, porque os antigos contratos de trabalho se encerraram com o fechamento do motel.

Continuemos no exemplo. Digamos que os donos daquele antigo motel tenham vendido o ponto para uns sujeitos e esses novos empresários tenham decidido aproveitar a estrutura do negócio e o fundo de comércio e montar ali um outro motel. Nesse caso, a atividade dos antigos empresários (motel) continuou a mesma (motel). Se os empregados do antigo motel continuarem trabalhando para o novo motel, haverá sucessão, porque a atividade do antigo empresário (motel) passou de um para outro empresário, e os contratos de trabalho dos empregados do antigo motel não foram interrompidos com a criação do novo motel. Mas, se os empregados do antigo motel não passarem a trabalhar para o novo motel, não haverá sucessão trabalhista, porque os contratos de trabalho sofreram solução de continuidade, isto é, não continuaram com o novo empresário, embora a atividade da empresa (motel) tenha sido a mesma. Esses empregados nada poderão reclamar dos sócios do novo motel, mas apenas dos sócios do motel antigo, porque os seus contratos de trabalho se encerraram com a venda do estabelecimento e pelo fato de que eles, empregados, não continuaram trabalhando para o novo empresário, embora a atividade da empresa antiga (motel) tenha continuado a mesma (motel).

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Nesse exemplo hipotético, somente haveria sucessão trabalhista se, no mesmo ponto comercial, um motel (atividade) fosse sucedido por outro motel, e se os empregados do antigo motel tivessem passado a trabalhar para o novo motel, sem qualquer interrupção nos contratos de trabalho. Se a atividade da nova empresa é outra, ou se os empregados da antiga empresa não passaram a trabalhar para a nova, pouco faz quem ocupe o ponto ou aproveite o maquinário e a clientela. Não haverá sucessão. A maioria dos juízes do trabalho não pensa assim, mas está equivocada ou assumiu intimamente o compromisso de dar esmola com o chapéu dos outros.


Cortando na carne

O juiz do trabalho somente vai se dar conta da atecnia da sua decisão quando se puser no lugar do empresário. É como o disse o poeta e padre anglicano John Donne: "a dor de um só será verdadeiramente sentida quando doer em todos".

Façamos um exercício de futurologia. Do ponto de vista legal, juiz não pode ser dono de empresa. Pode ser sócio ou acionista, mas sem cargo de direção. Do ponto de vista ético, juiz não pode ser dono de cursinho preparatório para concursos públicos, especialmente aqueles voltados para o ingresso na magistratura. O art. 36, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional não o proíbe de ser sócio, acionista ou quotista de qualquer empreendimento comercial, desde que não exerça cargo de administração. Esse nosso juiz hipotético e sedizente proativo entende, como a maioria, que basta ocupar o ponto comercial para que a sucessão de empregadores se perfaça. Imaginemos, então, que esse nosso juiz seja sócio de um cursinho preparatório para concursos públicos. Lá, um dia, com o sucesso dos negócios, ele e seus sócios decidem ampliar a empresa e comprar um amplo edifício abandonado onde antes funcionara uma academia de ginástica. A academia cerrou as portas e os donos sumiram deixando sem pagamento a recepcionista, o limpador de piscinas, o faxineiro, a telefonista, os professores de musculação, a professora de dança de salão, a moça da cantina e o vigia da noite. Lá, um dia, passando pelo local onde antes estava a academia de ginástica, a recepcionista viu que ali estava funcionando, agora, um cursinho preparatório para concursos públicos. Informa isso a seu advogado e o sujeito imediatamente atravessa uma petição nos autos dizendo, ao nosso juiz, que o cursinho preparatório deve responder pelas dívidas trabalhistas deixadas pela academia de ginástica, porque é seu sucessor e está instalado no mesmo endereço onde antes funcionava a academia de ginástica que deu calote na recepcionista e no pessoal que ali trabalhava. Um juiz trabalhista dirá, citando talvez o precedente do próprio colega recém-instalado naquele endereço, que o raciocínio dos ex-empregados da academia é rigorosamente exato e o cursinho é sucessor da academia porque está instalado no mesmo endereço. O cursinho, obviamente, nunca contratou nenhum dos empregados da academia. Os sócios são outros, o CNPJ é outro, o objeto social é outro. Por azar, o cursinho foi se estabelecer no mesmo endereço onde antes estava a academia de ginástica. Esse é o seu pecado original.

Como será que esse nosso juiz se comportaria no processo? Pagaria, de uma só vez, e sem reclamar, todo o passivo trabalhista, previdenciário e fiscal deixado pela academia de ginástica, porque é assim que ele pensa verdadeiramente e porque é assim que ele passou a vida inteira condenando os outros empresários que tiveram causas na sua jurisdição? Ou pediria aos seus pobres advogados que escrevessem copiosas defesas — que nunca serão lidas por juízes como ele — onde sustentariam, a esmo, como o Nazareno pregando no deserto, que não é sucessor da academia, porque a atividade do empresário anterior (academia de ginástica) não foi transferida para ele, pois é um cursinho preparatório e não academia de ginástica; que o CNPJ é outro; que o objeto social é outro; que os sócios são outros; que nunca contratou, dirigiu ou dispensou os empregados; e que sua única infelicidade foi se estabelecer no mesmo ponto comercial onde antes estava a academia de ginástica?

Bem. Se ele tiver a felicidade de encontrar pela frente um juiz com pelo menos um neurônio poderá livrar-se das obrigações que não são suas e fazer com que os empregados da extinta academia de ginástica redirecionem a execução e busquem seus direitos em face dos sócios do antigo empregador. Se, por azar, topar com algum juiz que decida como ele sempre decidiu, nosso juiz deve preparar o bolso e boa parte do seu patrimônio pessoal. Talvez depois disso decida estudar e parar de repetir uma doutrina sem pé nem cabeça que leu não sei onde e resolveu copiar.


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Sobre o autor
José Geraldo da Fonseca

Advogado - Veirano Advogados. Desembargador Federal do Trabalho aposentado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, José Geraldo. Sucessão de empresas: de novo esse assunto chato?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4675, 19 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48298. Acesso em: 16 abr. 2024.

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