Direito Real de Habitação versus Sucessão Hereditária: a "legal defeasibility" da regra protetiva do habitador.

17/04/2016 às 11:30
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O reconhecimento do Direito de Habitação pode gerar situações esdrúxulas quando, a pretexto de proteger o cônjuge supérstite, acaba legitimando o abuso de direito. Impõem-se, portanto, soluções hermenêuticas capazes de coibir o uso deturpado do instituto.

PARTE 1 - BREVE REVISÃO TEÓRICA

1.1. Conceito e modalidades:

Antes de adentrar ao cerne do tema proposto, convém tecer breve digressão teórica sobre o direito real de habitação, porquanto fundamental à adequada concepção da presente análise.

Sob tal perspectiva, predomina no Direito Brasileiro a divisão do direito de habitação em duas espécies, convencional legal, que podem ser assim diferenciadas:

  • Direito de habitação convencional: é o direito real instituído em favor do habitador, de forma voluntária e temporária, que enseja o desdobramento do direito de propriedade e a transferência do caractere da habitação, perfectibilizado pelo registro na matrícula do imóvel. Possui sede normativa no art. 1.414, do Código Civil:

Art. 1.414. Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família.

  • Direito de habitação legal: é o direito conferido ao cônjuge (ou companheiro) supérstite, automaticamente e independentemente de registro, diante do falecimento de seu consorte, autorizando sua permanência no imóvel em que residia com o de cujus. É disciplinado no art. 1.831, do Código Civil:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

É esta última espécie, direito de habitação legal, que apresenta os contornos relevantes à presente abordagem e será objeto de análise adiante em tópico apropriado ("Parte 02").

1.2. Extinção do direito de habitação

Na quadra atinente à extinção do direito de habitação convencional, é assente que o prazo de duração dependerá da manifestação da vontade e comportamento das partes, seja pelo advento do termo ou implemento da condição, ou pelo descumprimento de alguma obrigação pelo habitador.

Já com relação à extinção do direito de habitação legal, relacionado ao tema da sucessão hereditária, importante tecer algumas considerações para a correspondente análise.

Por primeiro, cumpre observar que o Código Civil de 2002, ao disciplinar o direito de habitação do cônjuge supérstite não repetiu a limitação que havia na Codificação de 1916, no sentido de que o direito apenas persistiria enquanto o habitador permanecesse viúvo. Confiram-se as disposições correlatas dos Diplomas citados:

Art. 1.611. § 2º, do Código Civil de 1916. Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.

Art. 1.831, do Código Civil de 2002. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar

Daí decorre a conclusão, adotada por parte dos intérpretes da norma, de que não subsiste mais impedimento para que o habitador constitua nova família no imóvel, sendo-lhe autorizado inclusive contrair novas núpcias, sem que isto afaste o direito de permanecer residindo - agora com seu novo consorte - no bem.

Acerca de tal temática, veja-se o escólio de Washington de Barros Monteiro[1]:

Cuida-se de direito personalíssimo e vitalício, devendo o beneficiário utilizar o bem exclusivamente como residência sua, não podendo alugá-lo ou cedê-lo, independentemente de manter-se viúvo, condição que exigia o Código de 1916. Este previa, efetivamente, que o viúvo conservasse tal estado para manter aludido direito real de habitação, que, muitas vezes, incide sobre bem de extremo valor. O Código de 2002 dispensou mencionado requisito, de tal sorte que perdura o direito ainda que o viúvo se case novamente ou estabeleça união estável.

Há precedentes jurisprudenciais, inclusive, do E. Tribunal de Justiça de São Paulo nesse sentido, a saber:

Ação de arbitramento de aluguel. Pretensão dos herdeiros, ora autores, a compelir o genitor a pagar aluguel pela permanência no imóvel, residência da família. Direito real de habitação. Proteção legal conferida ao cônjuge supérstite desde que o imóvel seja destinado à residência da família e que seja o único dessa natureza a inventariar, sem limitação de outra ordem. Direito que permanece ainda que convolada novas núpcias. Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 3000697-50.2013.8.26.0022. Partes: Leandro Henrique Luni Castilho e Vanderlei Castilho, Relator: Mary Grün, Amparo, Data de Julgamento: 28/01/2015. Data de Registro: 29/01/2015).

ARROLAMENTO - Direito real de habitação - Cônjuge sobrevivente - Direito estendido a todos os regimes de bens e que não está condicionado ao estado de viuvez do beneficiário - Art. 1831, do Código Civil - Irrelevância, ainda, a existência de outros bens a arrolar -Desobrigatoriedade de pagamento de aluguel à herdeira - Inteligência art. 1.415, do Código Civil - Agravo desprovido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n°. 0183034-95.2011.8.26.0000. Partes: Hormízia Domiciano da Silva Ventreschi e Rudinei Ribeiro da Silva. Relator: Luiz Antonio de Godoy, Franca, Data de Julgamento: 20/03/2012. Data de Registro: 20/03/2012).

Todavia, vale aqui frisar que não há harmonia quanto a tal exegese, subsistindo, na verdade, diversas linhas argumentativas dão base a correntes distintas. Isso porque a vitaliciedade do direito de habitação traz consigo acentuada polêmica, notadamente nas hipóteses em que há inequívoco abuso de direito no seu exercício.

Tais questões, no entanto, serão abordadas com mais vagar em capítulo próprio, cotejando-se as posições doutrinárias existentes com o entendimento jurisprudencial, de forma a analisar detidamente as vertentes soerguidas.

Assim, com base no exposto e em síntese, podem ser reunidas as seguintes características do direito real de habitação:

  • É gratuito, sem que tal característica isente o habitador do pagamento dos tributos que recaem sobre o imóvel;
  • O habitante deve ocupar pessoalmente o imóvel, junto com sua família, tratando-se de direito intuito personae.
  • A habitação não abrange o amplo usufruto do imóvel, impedindo, por conseguinte, sua irrestrita fruição. No entanto, o regramento permite que o habitador exerça a fruição necessária para sua subsistência e de sua família.
  • Em sua modalidade convencional, depende de registro no Cartório de Registro de Imóveis; já a habitação legal independe de registro;
  • Pode ser conferido a mais de uma pessoa, as quais deverão coabitar o imóvel sem exigir aluguel das demais;
  • É renunciável;
  • Permite indenização por benfeitorias necessárias que o habitador realize no imóvel;

PARTE 02 – DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E O CONFLITO COM A SUCESSÃO HEREDITÁRIA

2.1. A colidência de interesses e valores

Particularmente no que se refere ao direito de habitação legal, caracterizado pela permanência do cônjuge supérstite no domicílio conjugal após o falecimento de seu consorte, cumpre destacar que sua aplicação não se dá de forma pacífica no cenário jurídico atual. Na verdade, em determinados casos enfrentados pela jurisprudência, a efetivação desse direito real demonstra aptidão para gerar graves incongruências, capazes de criar intenso embate axiológico.

Afinal, em determinados casos, a permanência do beneficiário (habitador) no imóvel pode aniquilar por completo o direito sucessório dos demais herdeiros, no ensejo da sucessão hereditária.

Imagine-se, por exemplo, situação em que o cônjuge supérstite seja mais novo que os herdeiros do de cujus, e tenha o deliberado ânimo de permanecer naquela residência apenas para tolher a fruição destes, mesmo que adquira outros imóveis ao decorrer de sua vida. Neste caso, nada restaria aos herdeiros a fazer senão conformar-se com a total impossibilidade de conferir efetividade à divisão estabelecida no inventário.

Demais disso, para aqueles que consideram ainda vigente a hipótese de extinção da habitação diante do término da viuvez do beneficiário (com base na limitação contida no Código Civil de 1916 que, embora não reproduzida na Codificação de 2002, poderia ser extraída da cláusula geral de boa-fé objetiva e funcionalização dos institutos, arts. 421 e 422), não se pode negar que habitador poderia agir com inequívoca má-fé, omitindo maliciosamente nova união estável, ou mesmo evitando novo casamento, apenas para perpetuar seu direito sobre o imóvel.

Além da hipótese de constituição de nova família no imóvel pelo favorecido, a doutrina cataloga outras situações em que emerge reprovável feição de abuso de direito do habitador, com o exercício inadmissível da posição jurídica.

É o caso de Cristiano Chaves, em artigo publicado na Revista do Conselho Nacional do Ministério Público[2]:

Todavia, conquanto a regra se mostre válida, uma distorção prática pode decorrer do reconhecimento do direito real de habitação. Basta imaginar uma pessoa que faleceu, deixando filhos menores de um primeiro casamento, a quem prestava alimentos para a sobrevivência, e a viúva (ex-cônjuge ou ex-companheira) e deixando, tão somente, um único apartamento – que havia adquirido anteriormente à relação afetiva e onde residia com a consorte. Embora os filhos tenham o direito hereditário sobre o imóvel, adquirindo-o automaticamente pela regra sucessória (droit de saisine, transmissão automática prevista no art. 1.784 do Código de 2002), a viúva continuará nele residindo até que venha a falecer. Pior: continuará residindo mesmo que constitua uma nova relação afetiva, podendo, até mesmo, levar o seu novo parceiro para residir com ela no imóvel (que, efetivamente, pertence aos seus enteados que, inclusive, podem estar à míngua, até porque quem contribuía para o seu sustento, já está morto).

Referindo-se a contexto semelhante, adverte o jurista Francisco Loureiro quanto à reprovabilidade do uso deturpado do instituto, que mais traduz inegável hipótese de abuso de direito:

Basta imaginar a hipótese, nada acadêmica, de cônjuge supérstite que, em razão do regime de bens, concorre somente com um descendente. Caso o único bem do espólio seja um imóvel residencial, o viúvo receberia metade do imóvel como herança e mais o direito real de habitação vitalício sobre ele. Ao descendente restaria apenas a nua propriedade sobre a outra metade da herança, o que, à toda evidência, agrediria sua legítima (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 6ª Câmara de Direito Privado. Embargos Infringentes n°.0000038-40.2012.8.26.0471, Partes: Luciene Pereira Bedin e Ivania Aparecida de Camargo Nunes, Relator: Des. Francisco Loureiro. Porto Feliz, Data de Julgamento: 14/08/2014. Data de Registro: 15/08/2014).

A gravidade da situação é também denunciada por Daniel Blikstein[3], para quem o direito de habitação deve encontrar limites que o impeçam de ser manipulado com o fito de legitimar situações injustas:

A garantia do direito real de habitação tem seu lado social, mas não pode embaraçar, sem qualquer limite temporal, a propriedade dos titulares. Destarte, não há amparo para que se conclua pela ‘perpetuidade’ do instituto sobre o mesmo imóvel.

É bem verdade que, se por um lado, o exercício do direito de habitação pode se dar de forma deturpada pelo habitador, por outro, não se pode negar ao cônjuge supérstite o direito de permanecer no imóvel após o falecimento de seu consorte. Afinal, a imposição de óbice ao desenvolvimento do direito de habitação instauraria justamente o panorama de abandono e desamparo que a própria concepção do instituto pretendeu afastar.

Rememorando o contexto histórico que permeou a criação do direito de habitação no Brasil, cabe observar que até a década de 1960, o modelo tradicional de família brasileira, ainda marcado pela concentração no marido da chefia da sociedade conjugal, se deparava com frequente problemática quando do falecimento de um dos cônjuges, uma vez que, meio ao delicado momento, não raras vezes o supérstite era obrigado a desocupar o imóvel no qual residia com o falecido para viabilizar sua partilha entre os herdeiros. Eis a celeuma que criou ambiente favorável à instituição, por meio da Lei n. 4.121/62, também denominada "Estatuto da Mulher Casada", do direito de habitação decorrente da sucessão hereditária, com a perspectiva de conferir conforto e segurança ao cônjuge supérstite, contemplando-o com o direito de permanecer residindo no imóvel após o passamento de seu consorte. 

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Assim, sopesados os prismas contrapostos, identifica-se nítido conflito entre diversos direitos assegurados pela Constituição Federal, a teor da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), propriedade (art. 5º, caput), igualdade (art. 5º, inciso I), direito à herança (art. 5º, inciso XXX), direito à moradia (art. 6º, caput), entre outros.

Além disso, tratando-se de instituto disciplinado por comandos normativos específicos, a antinomia não se limita à seara dos princípios, mas também envolve o choque de regras existentes no ordenamento jurídico (1.831, e seguintes, do Código Civil e Lei n. 9.278/1996), que se encontram em indiscutível confronto.

Logo, a delicada situação reclama, com urgência, o alcance de soluções que propiciem o adequado cumprimento dos elementos valorativos em conflito, sem descurar as finalidades precípuas do instituto.

Nas palavras do doutrinador baiano Cristiano Chaves (2014, p. 318), a situação posta em análise “trata-se, a toda evidência, de um extreme case. Não se trata de um caso comum, corriqueiro, mas, seguramente, factível”. Nessa ótica, demonstrando a singeleza da questão, o doutrinador baiano define extreme cases como aqueles “casos raros, de pouco ocorrência prática e de difícil solução jurídica e social. Não se confundem com os hard cases (casos difíceis), aludidos pela doutrina, mostrando-se ainda mais complexos estruturalmente e ainda mais escassos”.

2.2. Soluções alcançadas pela doutrina e jurisprudência

A ampla cognição da doutrina e jurisprudência permite destacar a nítida formação de correntes hermenêuticas para solucionar esses denominados extreme cases, nos quais o abuso de direito se revela perceptível, mas pretensamente escamoteado sob as vestes do direito de habitação.

Cada uma delas, à sua maneira, objetiva superar a antinomia identificada no sistema, propiciando uma aplicação mais justa do direito de habitação legal, sem que se olvide os bens jurídicos alocados em xeque, relacionados nas linhas antecedentes.

A primeira delas adota desde logo a constituição de nova família pelo beneficiário como marco extintivo do direito real de habitação, aplicando-lhe a mesma ratio que antes era trazida pelo art. 1.611, § 2º. do Código Civil de 1916.

Segundo esta linha de intelecção, a melhor exegese do instituto reside na prevalência dos direitos sucessórios dos herdeiros, quando ameaçados pela desvirtuação da permanência do supérstite no imóvel. Vem a calhar, sob tal enfoque, o magistério de Mauro Antonini[4]:

Ante a redação literal deste art. 1.831, em tese não haveria mais a limitação desse direito à permanência da viuvez, como acontecia no regime do CC/1916. Aparentemente, houve um cochilo ao não se incluir limitação à duração da viuvez, tanto que o PL n. 699/2011 (reapresentação do PL n. 6.960/2002 e do PL n. 276/2007) propõe restabelecê-la. De se observar, porém, que em precedente do TJSP, citado a seguir, de que foi relator o Des. Francisco Loureiro, no qual faz interpretação funcional e sistemática, e não meramente literal ou gramatical, observando que não há sentido em manter o direito real de habitação quando o cônjuge beneficiário vem a se casar novamente, constituindo nova família. O direito real de habitação constitui projeção para depois da morte de vínculo decorrente da família então existente, entre o de cujus e o cônjuge sobrevivo. Se este forma nova família, deixa de existir o fundamento que justificava o direito real de habitação. Reputa-se que essa solução do julgado do TJSP é a que confere solução mais adequada à matéria. Por identidade de razão, estende-se aos casos nos quais o cônjuge sobrevivente, em vez de se casar, constitui união estável, pois forma, igualmente, nova família.

Também é a concepção proposta por Arnoldo Wald[5]:

O novo Código Civil, no art. 1.831, assegura ao cônjuge viúvo o direito real de habitação, qualquer que seja o regime de bens. Interessante, porém, observar que, apesar de continuar sendo previsto o direito real de habitação, nada se menciona sobre o momento da cessação dessa situação na hipótese de o cônjuge viúvo se casar novamente ou constituir vida em comum com outra pessoa. De qualquer modo, nada leva a crer que o novo texto receberá interpretação diversa daquela existente à luz do art. 1.611, § 2º. do Código Civil de 1916.

No mesmo rumo é o pensamento de Carlos Roberto Gonçalves, para quem, “malgrado a omissão do citado dispositivo, esse benefício, numa interpretação teleológica, perdurará enquanto o cônjuge sobrevivente permanecer viúvo e não viver em união estável”[6].

Sob tal perspectiva, Zeno Veloso defende ainda a iminente necessidade de alteração do art. 1.831, do Código Civil, de sorte a resgatar a redação que disciplinava o direito no Diploma de 1916, a qual bem limitava a duração do direito até o final da viuvez:

Consciente de que a crítica doutrinária, científica, tem de ser isenta, ponderada, respeitando, sobretudo, o trabalho e o esforço dos que escreveram o Projeto do Novo Código Civil, é preciso, ademais, oferecer alternativa, expor as próprias ideias para o conhecimento e análise de todos. Assim, cabe-me oferecer emenda substitutiva ao mencionado art. 1.790 do novo Código Civil brasileiro, advertindo que precisam ser alterados, ainda, os arts. 1.831 e 1.839.

Inicialmente, é necessário, até por imperativo de técnica legislativa, deslocar o art. 1.790, e inseri-lo no Título II — Da Sucessão Legítima, Capítulo 1 — Da Ordem da Sucessão Hereditária, em seguida do art. 1.838, que trata da sucessão do cônjuge sobrevivente. O art. 1.839 deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, nem companheira ou companheiro, na forma do artigo antecedente, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau”. O art. 1.831 também deve ser modificado, para estabelecer, como faz o art. 1.611, § 2º, do Código Civil de 1916, que o direito real de habitação só persiste enquanto o cônjuge sobrevivente permanecer viúvo ou não constituir união estável. (...)

O art. 1.611, § 2º, do Código Civil de 1916 institui o direito real de habitação para o cônjuge sobrevivente. Todos apontam o caráter assistencial desse direito. O legislador quer manter o status, as condições de vida do viúvo ou da viúva, garantir-lhe o teto, a morada. Porém, não há razão para que o favor legal seja mantido se o cônjuge sobrevivente constituir nova família. O cônjuge já aparece bastante beneficiado no novo Código. Não parece justo que ainda continue exercendo o direito real de habitação sobre o imóvel em que residia com o falecido, se veio a fundar nova família, mormente se o dito bem era o único daquela natureza existente no espólio. O interesse dos parentes do de cujus deve, também, ser observado. Enfim, o art. 1.831 do CC precisa ser modificado para prever que o direito personalíssimo do cônjuge sobrevivente, neste caso, é resolúvel, extinguindo-se, se a viúva ou o viúvo voltar a casar ou constituir união estável[7].

Por essa mesma linha de pensar, Roberto Senise Lisboa destaca que “o direito real de habitação conferido ao convivente é vitalício, desde que o companheiro não constitua nova união estável e nem celebre casamento civil”[8].

Em âmbito jurisprudencial, referida corrente é adotada em diversas Câmaras do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

DIREITO DE HABITAÇÃO. Pretensão de condômina à extinção do condomínio e arbitramento de aluguel pelo uso exclusivo do imóvel pelas rés, viúva e filha da segunda união do falecido. O direito de habitação persiste enquanto o cônjuge sobrevivente viver ou não constituir nova união ou casamento, incidindo sobre o imóvel de residência da família, independentemente da existência de outros herdeiros, ainda que filhos exclusivos do falecido, como ocorre no caso em exame. O que tem relevância para a decisão da lide é o fato de que o imóvel pertencia exclusivamente ao cônjuge quando ocorreu a sua morte, de forma que recai sobre ele integralmente, independentemente do direito sucessório sobre o bem, o direito de habitação do cônjuge sobrevivente, não se olvidando que esse direito de habitação também tem natureza sucessória. Ainda que pese sobre o imóvel o direito de habitação, poderá ocorrer a alienação judicial do bem. Isto decorre do direito potestativo que tem o condômino de ver extinto o condomínio, segundo disposto no art. 1.320, do Código Civil. Recurso parcialmente provido a fim de que seja extinto o condomínio pela alienação judicial da coisa comum, respeitado o direito de habitação incidente sobre o imóvel. (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 10ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°.1001534-50.2014.8.26.0008, Partes: Luciana Priscilla Lopes e Neusa Maria do Nascimento Lopes. Relator: Des. Carlos Alberto Garbi. São Paulo. Data de Julgamento: 09/06/2015. Data de Registro: 25/06/2015).

Reivindicatória. Imóvel titulado em nome da autora. Ré que diz ter sido companheira do filho da proprietária, em favor de quem firmado, originariamente, compromisso de venda do bem. Ajuste, porém, nunca registrado e que, ausente qualquer demanda ou comando anulatório da aquisição pela autora, não daria à ré mais que pretensão indenizatória, se reconhecida a comunhão dos direitos aquisitivos. Posse da ré, ademais, porque já vivendo nova união, que não se justificaria nem mesmo à luz do 7º da Lei 9.278/96, posto admitido ainda vigente. Cerceamento, neste contexto, inocorrido. Sentença de procedência mantida. Recurso desprovido (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 1ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°.9124534-82.2008.8.26.0000, Partes: Joseane Chiaradia da Silva e Irene De Souza Carvalho, Relator: Des. Claudio Godoy. Data de Julgamento: 26/02/2013. Data de Registro: 27/02/2013).

Há ainda interpretação que vai mais longe. Defende, nesse rumo, a vertente encabeçada por Cristiano Chaves que, uma vez constatado que o direito de habitação se encontra maculado pelo abuso de direito, independentemente deste abuso ser relacionado à constituição de nova união no imóvel habitando ou outra forma de exercício inadmissível da posição jurídica, deve-se reconhecer a derrotabilidade (legal defeasibility) da regra protetiva ao habitador:

Imagine-se, agora, que a viúva, inclusive, possui um imóvel, que tinha antes da relação, e que está alugado, uma vez que passou a residir no imóvel do falecido, quando se estabeleceu o relacionamento. Nessa hipótese, torna-se um drama próximo ao absurdo: a viúva, que possui um imóvel residencial próprio, alugado, permanecerá residindo no bem que servia de lar para o casal, enquanto os filhos (legítimos proprietários) ficam privados do exercício de seu direito, enquanto ela estiver viva, mesmo que constitua uma nova relação afetiva (...)

Para a solução dessa hipótese, a razoabilidade e o natural senso de justiça distributiva (lembrando a máxima “dar a cada um o que é seu”) sinalizam para a derrotabilidade da regra que estabelece o direito real de habitação, permitindo, então, uma solução adequada e casuística. Não significaria uma recusa peremptória e definitiva de reconhecer e aplicar a regra do direito real de habitação em favor de pessoas viúvas, em relação ao imóvel que serviu de lar para o casal. Trata-se, episódica e casuisticamente, de superar, derrotar, a norma-regra, garantindo o império dos valores almejados pelo sistema (nessa hipótese, proteção integral e prioridade absoluta da criança e do adolescente) (CHAVES, 2014, p. 318).

No mesmo rumo é o entendimento de Daniel Blikstein (2011, p. 212-213), para quem deve-se garantir o direito real de habitação enquanto não houver a presença dor abuso de direito:

É certo que, nesse particular, deve ser analisado também se o direito real de habitação está servindo ao fim a que se destina ou se o habitador, casado com novo cônjuge, por exemplo, passa a ter outros imóveis para residir e não o faz por singela má-fé ou abuso de direito, ou seja, para prejudicar, claramente, o direito dos proprietários do bem gravado. Não se pode privilegiar a má-fé ou o abuso de direito em claro prejuízo aos proprietários do bem que, muitas vezes, têm necessidade de ocupar o imóvel onerado.

O mesmo autor prossegue citando o jurista português José de Oliveira Ascensão, que chega a elencar uma nova causa de extinção do direito real de habitação, qual seja a “cessação da necessidade pessoal” (ASCENSÃO, 1993, p. 481, apud BLIKSTEIN, 2011, p. 213):

Pelo contrário, temos de entrar em conta pelo menos com mais uma causa de extinção do direito de uso, além das de extinção do usufruto: a cessação da necessidade pessoal que justificou a constituição do direito. Se o morador usuário deixar de viver na localidade onde se encontra a habitação, extingue-se automaticamente o direito de habitação. Também quando a desnecessidade for originária deve considerar-se inválida a constituição desses direitos.

Neste particular é também o ensinamento de Sílvio Venosa[9]:

Tal direito só se extingue com a morte do cônjuge, ou quando sobrevier novo casamento. É claro que eventual fraude, como, por exemplo, uma relação concubinária que evite o casamento, para não perder o benefício legal, pode inibir o direito. Contudo, a lei não é criada para ser fraudada. O desvio de finalidade da norma deve ser analisado em cada caso.

Derradeiramente, de valor trazer como remate as palavras de Francisco Loureiro, para quem “o direito real de habitação deve ter interpretação funcional e sistemática, jamais literal (ou gramatical), pois constitui direito fundamental de moradia do cônjuge sobrevivente” (JUSTIÇA ESTADUAL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 6ª Câmara de Direito Privado. Embargos Infringentes n°.0000038-40.2012.8.26.0471, Partes: Luciene Pereira Bedin e Ivania Aparecida de Camargo Nunes, Relator: Des. Francisco Loureiro. Porto Feliz, Data de Julgamento: 14/08/2014. Data de Registro: 15/08/2014).

Dessa forma, examinadas as conclusões adotadas por grandes expoentes do direito, possível concluir que apesar de ter evoluído substancialmente, o direito de habitação ainda carece de ajustes de forma a contemplar a solução mais justa a cada caso concreto enfrentado.

De todo modo, os elucidativos estudos da doutrina de escol adrede referidos, bem assimilados pela remansosa jurisprudência pátria, evidenciam a possibilidade de adoção de exegese que viabiliza a materialização do direito de habitação com incessante foco em seu escopo teleológico, de modo a permitir o irrestrito afastamento da benesse nas hipóteses que não sejam afinadas à funcionalidade do instituto, adotando-se como pedra de toque a identificação de abuso de direito como circunstância capaz de por termo à sua vigência.

 


[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas. 42. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 3 v. P. 114.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves. Derrotabilidade das normas-regras (legal defeasiability) no Direito das Famílias: alvitrando soluções para os extreme cases (casos extremos). Revista do Conselho Nacional do Ministério Público/ Comissão de Jurisprudência. Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília, n. 4, 2014. Disponível em <http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Revista_CNMP_WEB4e.pdf>. Acesso em 02 set. 2015. P. 318.

[3] BLINKSTEIN, Daniel. O direito real de habitação na sucessão hereditária. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. P. 211.

[4] ANTONINI, Mauro. PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 9. ed. rev. e atual. Barueri, São Paulo: Manole, 2015. P. 2110.

[5] WALD, Arnoldo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 14. ed. reform. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 94.

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 7 v. P. 125.

[7] VELOSO, Zeno. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Direito Sucessório dos Companheiros. Família e Cidadania - O Novo CCB e a Vacatio Legis - Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. P. 287-289.

[8] LISBOA, Roberto Senise Manual de direito civil, direito de família e sucessões. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 4 v. P. 166.

[9] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. 7 v. P. 134.

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Sobre o autor
Marcio de Carvalho Valente

Assistente Jurídico no Gabinete dos Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Civil (Universidade Presbiteriana do Mackenzie), Direito Civil (Escola Paulista da Magistratura) e Direito Público (Complexo de Ensino Damásio de Jesus).

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