5. A JUSTIFICAÇÃO EXTERNA DA DECISÃO JUDICIAL
A interpretação e aplicação do Direito não são atividades simples. Muitos problemas podem daí advir. Muitas vezes, a lei não fornece as respostas específicas para os conflitos e dramas humanos vividos em sociedade, o que realça a importância do juiz como mediador lúcido entre o Direito e a realidade. Adite-se a isso a existência de ambiguidade e vagueza das palavras, tanto daquelas que constam dos textos legais, como das que integram princípios, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados. Além do mais, há a debilidade do instrumento processo em reproduzir nos autos, com perfeição, o fato que está sendo examinado.
Atento a isso, Neil MacCormick, em postura taxonômica, elencou 4 (quatro) principais problemas na elaboração da decisão judicial. Segundo o jurista escocês, tais problemas são: a) problema de interpretação; b) problema de pertinência; c) problemas de prova; e, d) problema de qualificação.[18]
O problema de interpretação emerge quando não há dúvida a respeito de qual norma será aplicada à espécie, no entanto existe mais de uma interpretação aceita para esta norma. É comum em casos em que a jurisprudência ainda não sedimentou entendimento sobre a matéria.
O problema de pertinência ocorre quando o fato ocorrido difere, em essência, do fato disposto no texto legal. Paira dúvida se há possibilidade de subsunção, dada a divergência sutil entre o fato ocorrido na vida real e o fato previsto no texto legal. Karl Larenz nomina esta situação de “lacuna oculta”.[19]
Nos problemas de prova a dúvida não incide na premissa maior (Direito), mas na premissa menor (fato). Ocorre quando o fato não fica demonstrado de maneira satisfatória pela prova judicial. Vale ressaltar que não se trata aqui de falta de provas, e sim de situação em que a prova se apresenta antagônica entre si e, por isso, suscetível de mais de uma interpretação.[20]
Por fim, os problemas de qualificação, os quais se verificam quando não existe controvérsia em relação a determinado fato, e sim em relação à sua qualificação jurídica. Para elucidar esta circunstância, MacCormick recorda o caso “MacLennan vs. MacLennan”. Neste, o senhor MacLennan propôs ação de divórcio em face de sua esposa, sob o argumento de adultério, uma vez que ela deu à luz a um bebê após o casal não manter mais relações sexuais entre si. A esposa, em defesa, sustentou que utilizou técnica de inseminação artificial com sêmen de terceiro para engravidar, o que motivou a discussão se inseminação artificial implicava, ou não, em adultério. Tratava-se de problema de qualificação jurídica, pois.[21],[22]
As anotações tecidas até aqui reafirmam a complexidade da atividade julgadora. Para decidir determinada lide, o juiz deve construir as premissas, jurídica e fática, da decisão. Foi neste sentido que Kelsen asseverou que a atividade do juiz, enquanto intérprete autêntico, importa em criação do Direito.[23] Sucede que este ato “criativo” não é realizado de maneira aleatória ou intuitiva. Existem critérios para tanto. O juiz não inventa o Direito. O juiz, ao edificar a premissa maior da decisão, vale-se da matéria prima do Direito e, a partir da norma hipotética condicional; geral e abstrata, constrói a norma individual e concreta apta a eliminar o litígio. O mesmo raciocínio se aplica em relação à construção da premissa menor. Para delimitar o fato respectivo a ser justaposto ao Direito, o juiz deve se apoiar na teoria das provas, a qual estabelece uma série de diretrizes e parâmetros a orientar sua atuação.[24]
Nesta conformidade, por não ser a decisão judicial algo destituído de referenciais; algo intuitivo e/ou fruto de inspiração metafísica; para enfrentar os problemas de interpretação, de pertinência, de prova e de qualificação jurídica é que emerge a ideia de justificação externa da decisão judicial ao lado da justificação interna.
Mas o que vem a ser justificação externa?
Aqui cabe um parêntese antes de avançar.
Ao discorrer sobre argumento (item 4), foi dito que o argumento será válido ou inválido, desde que seja possível a inferência entre as premissas. Logo, um argumento nunca será verdadeiro ou falso. Um argumento – repita-se – será válido ou inválido. O que poderá ser verdadeiro ou falso será o teor das premissas (jurídica e fática). De consequência, se o argumento for válido e as premissas verdadeiras, o argumento, além de válido, será consistente.
Nessa trilha, para que uma decisão judicial contenha um argumento válido e consistente será necessário a inferência entre as premissas (jurídica e fática), mas também a veracidade destas. Ou seja, as premissas que o magistrado emprega na decisão devem ser verdadeiras. Dessa forma, o juiz, além de apontar as premissas (jurídica e fática) (silogismo interno), deverá justificar a “veracidade” destas premissas. A isto se dá o nome de justificação externa da decisão. Para Robert Alexy: “o objetivo da justificação externa é a fundamentação das premissas usadas na justificação interna.”[25],[26]
O que interessa para o Direito, quando se trata de aferir a fundamentação da decisão judicial, é saber se foi demonstrada a validade ou não dos argumentos, a partir de premissas verdadeiras.
Para melhor compreender isto, afigura-se conveniente recorrer a novo exemplo. Para tanto, passa-se ao exame de decisão proferida pela Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Paraná, em 24/03/2015, a fim de examinar se esta atendeu aos requisitos da justificação interna e externa, nos moldes aqui alinhavados.
Referido caso versou sobre pedidos de indenização por danos morais e materiais, proposto por “A” em face de “B”.[27] A ação de indenização foi proposta porque “B”, na qualidade de advogada, teria procurado associados da pesca da região de Guaratuba-PR, informando-lhes que teriam direito à indenização em decorrência de acidente ocorrido com o navio Vicunha, em 2006. Com o acidente houve contaminação de toda a Baía do Litoral paranaense, causando prejuízos aos pescadores locais, dentre eles o autor (“A”). Na ocasião, “B” teria colhido instrumentos de mandato dos supostos lesados, inclusive de “A”, contudo deixou fluir o prazo previsto em lei para ingressar com a ação de indenização nos termos assumidos, o que teria gerado prejuízo para “A”. Por conta disso, “A” promoveu ação de indenização perante “B”, com base na teoria da perda de uma chance.
Pois bem. Como a teoria da perda de uma chance é algo recente no Brasil, vez que oriunda basicamente do Direito Italiano e Francês; como não há previsão legal expressa sobre o assunto por aqui, sendo suas fontes assentadas, de modo geral, pela doutrina e jurisprudência, pode-se constatar que se trata de caso peculiar. Esta peculiaridade, a seu turno, pode suscitar certa dificuldade acerca de quais pressupostos jurídicos são exigidos para caracterizar a perda de uma chance de maneira a deflagrar os efeitos da responsabilidade civil. Enfim, a dificuldade reside em como justificar a premissa jurídica para que esta possa ser considerada verdadeira.
Veja como o relator do caso, o juiz Leo Henrique Furtado Araújo, procedeu ao elaborar sua decisão: “(para a) aplicação da teoria da perda de uma chance, segundo entendimento do STJ, exige-se que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no espectro da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável”. (...). “a chance perdida deve ser real e séria, que proporcione ao lesado efetivas condições pessoais de concorrer à situação futura esperada.”
Em continuação, o magistrado transcreveu trecho de julgado em que fora registrado: “A teoria da perda de uma chance incide em situações de responsabilidade contratual e extracontratual, desde que séria e real a possibilidade de êxito, o que afasta qualquer reparação no caso de uma simples esperança subjetiva ou mera expectativa aleatória.”
Para finalizar a construção da premissa maior (Direito), o juiz ainda ressaltou: “No caso em análise é necessário determinar se existiam probabilidades sérias e objetivas de sucesso na demanda pretendida pelo autor e, em caso afirmativo, qual o dano experimentado.”
Como se pode verificar, atendeu-se não só a justificação interna (Direito – Perda de uma chance), como se procedeu à sua justificação externa, vale dizer, apontou-se, de forma transparente e expressa, o que se entende por perda de uma chance, quais os requisitos necessários à sua incidência, bem como a fonte jurídica de onde extraiu suas assertivas. Note-se que perda de uma chance não é o que o magistrado entende, supõe ou presume. Perda de uma chance é o que doutrina e jurisprudência têm entendido sobre o tema (verdade consensual). Note-se, mais, que, ao agir assim, o magistrado possibilitou que se conhecesse, de modo evidente, qual a premissa jurídica foi adotada no julgado, como também que se pudesse aferir se os elementos apontados como constitutivos do instituto jurídico respectivo estão em conformidade com as diretrizes jurídicas vigentes. Significa dizer: permitiu investigar se a premissa jurídica por ele formulada é “verdadeira” em cotejo com as fontes formais do Direito.
Em suma, no caso, houve não só indicação da premissa jurídica (justificação interna), assim como a explicitação de seus elementos caracterizadores e constitutivos (justificação externa) na decisão.
Passa-se, agora, ao exame da premissa menor (fatos). Neste aspecto, observa-se que o juiz averbou que, de acordo com o “laudo técnico (evento 20.2), realizado pelo Instituto Ambiental do Paraná, órgão oficial e imparcial, ficou concluído que a Baía de Guaratuba não foi atingida pelo vazamento decorrente do Navio Vicunha.” (...). “Assim sendo, resta ausente qualquer evidência que ampare a indenização pretendida, já que ainda que a ação fosse proposta pela recorrida, a probabilidade de procedência seria praticamente inexistente.”
Neste ponto, por igual, observa-se que a decisão judicial deixou claro que a situação fática que deveria ter sido objeto de ação indenizatória, a ser proposta pela ré (“B”), como advogada, remotamente ensejaria reparação civil ao autor. Esta circunstância, por sua vez, elide a pretensão indenizatória formulada por “A” em face de “B”, com base na perda de uma chance. Para dizer isto, o juiz não se valeu de especulações imaginativas, intuitivas etc. Pelo contrário, tomou por base o laudo pericial do Instituto Ambiental do Paraná, o qual concluiu pela inexistência de nexo causal entre o vazamento do Navio e o suposto dano aos pescadores. Nestas condições, a conclusão daí resultante não poderia ser outra senão a improcedência dos pedidos indenizatórios.
O que deve ficar claro nesta sede é que a explicitação da justificação interna e da justificação externa da decisão franqueia a verificação da veracidade das premissas e da validade e consistência do argumento jurídico, o que torna a decisão judicial não só fundamentada, como razoável.[28]
Ao examinar referido julgado do Paraná, outra importante conclusão pode ser firmada: para o preenchimento dos requisitos da justificação interna e externa da decisão não se torna necessário fazer da peça decisória uma peça acadêmica. Basta que se indique, de modo expresso, as premissas jurídica e fática na decisão e que se justifique a veracidade de cada uma delas. Se isto estiver presente, a decisão judicial estará calcada em dois componentes essenciais para a concretização da razoabilidade da prestação jurisdicional: a racionalidade e o empirismo.
A racionalidade decorrerá da inteligibilidade da decisão. O empirismo na possibilidade de propiciar um exame comparativo entre as premissas fixadas, seja em relação ao Direito, seja em relação às provas carreadas aos autos, evitando equívocos ou retificando-os se for o caso.
De se sublinhar, por derradeiro, que o mesmo raciocínio se aplica em relação aos princípios jurídicos, aos conceitos jurídicos indeterminados e às cláusulas gerais quando figurarem como premissas jurídicas na estrutura decisional. O juiz, além de indicar o princípio jurídico, a cláusula geral ou o conceito jurídico indeterminado (justificação interna), deverá apontar em que consiste sua essência; deverá densificar seu conteúdo (justificação externa).
Assim, ao se decidir questões de natureza contratual e for necessário recorrer à principiologia específica sobre a matéria, caso, por exemplo, dos princípios da boa-fé objetiva ou da função social dos contratos, não se deve conduzir a significação destes mediante ilações genéricas e vagas. Deve-se, em vez disso, calcar as significações em consonância com as fontes do Direito, as quais irão conduzir a decisão judicial para a solução adequada do conflito e em simetria com os padrões jurídicos vigentes.
Nesse vértice, boa-fé objetiva será aquilo que doutrina e jurisprudência significaram e continuam a significar sobre o tema. E será com base nesta significação jurídica consolidada no cenário jurídico que o magistrado deverá decidir a causa.