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O moderno Direito Penal Econômico.

A Ciência Criminal entre o econômico e o social

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18/02/2004 às 00:00
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As exigências inerentes da sociedade pós-moderna para proteção dos seus valores fundamentais apontam para a criação de um sistema penal econômico constitucional, lastreado pela efetivação de uma conseqüente política criminal e dogmática jurídico-penal.

Sumário: 1. Considerações introdutórias. – 2. A crítica ao processo de globalização da economia. – 3. Uma nova espécie de criminalidade: a delinqüência (moderna) econômica. – 4. O Direito Penal Clássico e o Direito Penal Econômico, ou Moderno. – 5. Considerações conclusivas. – 6. Indicações bibliográficas.

Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário,

é o seu ser social que determina sua consciência.

Karl Marx, O Pensamento Vivo, São Paulo : Martin Claret, 1990


1. Considerações introdutórias

Fala-se da crise enfrentada pelo direito penal, no entanto, a crise não é apenas do direito penal, trata-se da crise vivida pelo Direito, não pelo direito como ciência, mas a crise vivida pelo direito como sistema de normas, já que o direito como ciência deixou de ser estudado desde o inicio da segunda metade do século XX. A crise tão prolatada é a da credibilidade da norma jurídica como instrumento de regulação social, trata-se de uma ausência total de credibilidade da lei, ou de sua aplicação pela autoridade competente, e, de seu cumprimento pelos destinatários. É a materialidade da clientela do sistema de justiça criminal, que não é admitida pelo modelo de Estado Social e Democrático de Direito Material reivindicado pela sociedade pós-moderna e contemporânea.

O direito penal é afetado principalmente no campo da sua dualidade, numa indefinição material das possibilidades de conversações entre o que é conhecido como sendo Direito Penal Clássico e Direito Penal Econômico, ou Moderno. A luta travada pelo sistema dualista da ciência criminal é por uma busca de fundamentos constitucionais (em direito pátrio, legislação estrangeira e comparada e direito comunitário) para uma organização do Direito Penal (Moderno) Econômico, com a finalidade de reformulação das estruturas clássicas do Direito Penal comum em seu novo perfil. A interação dos valores constitucionais na proteção dos bens jurídicos individuais e supra-individuais.

As exigências inerentes da sociedade pós-moderna e contemporânea no campo da proteção dos seus valores fundamentais apontam para a criação de um sistema penal econômico constitucional, que requer como núcleo ético de sua formulação a Constituição do Estado, lastreado pela efetivação de uma conseqüente política criminal e dogmática jurídico-penal. Um sistema de caráter transnacional numa sociedade da integração e supranacional, com a característica fundamental da interdisciplinaridade envolvendo: a história, a antropologia, a criminologia, a psiquiatria, a psicologia, a sociologia, a ciência política, o serviço social etc.. E, fundamentalmente, o ressurgimento da filosofia aliada a teoria e a sociologia do direito. Uma ciência da apropriação.


2. A crítica ao processo de globalização da economia

O final do século XX e o início do novo milênio apresentam à humanidade uma nova forma de poder hegemônico: a globalização. Um poder hegemônico sedutor pelas suas características – que veremos em seqüência – superficiais e efêmeras, e devastador pela sua própria essência. Esta, de dominação plena e de forma irreversível. A busca é por um pensamento contra-reformador que, até então, parece não existir. Mas, existe. Assim veremos.

Esse novo poder hegemônico que ZAFFARONI batizou de poder planetário, representado no fenômeno da globalização como forma de poder e pensamento único existente, como discurso de legitimação de uma nova ordem internacional, de um novo modelo social pós-moderno e contemporâneo, apresenta-se numa relação de um poder geral e outro particular. "El fenómeno general es la globalización. Pero globalización es una expressión ambigua, porque se emplea tanto para designar el hecho de poder mismo como también la ideologia que pretende lagitimarlo. Es indispensable no confundir ambos conceptos y, por ello, preferimos illamar globalización al hecho de poder en sí mismo, y denominar fundamentalismo de mercado o pensamiento único a la ideologia legitimante. En este entendimiento, la globalización no es un discurso, sino nada menos que un nuevo momento de poder planetario. Se trata de una realidad de poder que ilegó y que, como las anteriores, no es reversible. La revolución mercantil y el colonialismo (siglos XV y XVI), la revolución industrial y el neocolonialismo (siglos XVIII y XIX) y la revolución teconológica y la globalización (siglo XX), son tres momentos de poder planetario".

A globalização como novo modelo social ou poder hegemônico se inicia de forma incisiva como fenômeno econômico de maximização dos mercados. Num primeiro momento, com a expansão do sistema de comunicação funcionando como instrumento de dominação, numa sistemática de oferecimento da informação e notícia como os principais produtos de consumo da nova era, provocada por uma conseqüência inerente, que é a da evolução tecnológica. E, num segundo, de completude e materialidade, de forma a realizar o fechamento do poder hegemônico, o surgimento da integração, em regime de blocos econômicos discutindo a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente. É a existência de um poder hegemônico centrado e planificado num espaço integrado e homogêneo.

Trata-se de um poder designador de um processo de uniformização entre as nações e os povos, com a conseqüente transformação dos Estados em Super-Estados e Nações em Sociedades. Apresenta-se, assim, na figura de um processo avassalador nunca antes visto – em termo de velocidade dos acontecimentos –, na história da humanidade. As transformações impostas pelo processo de globalização são ferozes e ininterruptas. Daí, em virtude de suas características, surgirem as mais diversas conseqüências. Podendo ser apontadas as conseqüências de ordem social e política. Quanto a primeira, a relação escravocrata contemporânea (disfarçada na extinção gradual do instituto do emprego, na política de baixos salários, nas dificuldades intencionais em escala crescente do aperfeiçoamento profissional, na negação do acesso tecnológico etc.), pautada no vínculo explorador e explorado; e uma relação de inclusão e exclusão. Quanto a segunda, a figura impotente do Estado Soberano no exercício do seu poder político diante de um poder econômico global, numa situação de substituição da economia real pela economia financeira, como se funcionasse como um Estado virtual.

Ao falar das características da globalização surge um discurso unânime, a existência de uma congruência inequívoca entre os pensadores. Por um lado, ZAFFARONI procura realizar uma síntese das características do novo poder planetário com a assinalação de onze itens pontuais: "a) la revolución tecnológica es, ante todo, comunicacional: la velocidad de comunicación aumenta hasta limites insospechados hace poços años; b) se produjo una reducción del poder regulador económico de todos los estados, aunque en diferente medida, invocando la necessidad de favorecer un mercado mundial; c) se acelera la concentración de capital, con evidente predominio del financiero; d) se desplazan los capitales con costo cero hasta donde se hallan mayores rentas, por lo general a costa de redución de costos por recortes de personal; e) el poder politico compite por atraer esos capitales, o sea que los políticos compiten por reducir su poder, especialmente en los países periféricos; f) el uso del salario y del empleo como variable de ajuste provoca creciente desempleo y deterioro salarial; g) como resultado de todo lo anterior, los estados perdieron su capacidad de mediación entre capital y trabajo; h) los sindicatos carecen de poder para reclamar contra esa situación; i) la especulación financiera adopta formas que cada vez tornan más borrosos los límites entre lo lícito y lo ilícito; j) los refugios fiscales para capitales de origen ilícito son conocidos por todos y nadie los obstaculiza; k) el afán de atraer capitales ileva a reduciones de la recaudación fiscal, que no alcanzan a compensar los crecientes impuestos al consumo, pagados por los de menor renta". Por outro, semelhante é o ensinamento de SILVA SÁNCHEZ "La globalización – como salto cualitativo de la internacionalización – es, como antes se indicaba, una de las características definitorias de los modelos sociales postindustriales. En esa medida, se trata, obviamente, de un fenómeno, en principio, económico, que se define por la eliminación de restriciones a las transaciones y la ampliación de los mercados. Cuestion distinta es que, a partir de esta consideración de la economia, otro importante fenómeno, cual es el de la la globalización de las comunicaciones, como consecuencia de las inovaciones técnicas. Pero, en última instancia, la globalización de las comunicaciones no es sino un correlato de la globalización de la economia, que hace preciso abaratar los costes de transacción (y requiere, por tanto, esa mayor rapidez de comunicaciones). Por su parte, también la integración es básicamente uns noción económica. La integración aparece inicialmente guida por la idea de conseguir un mercado común de varios países, con libre tráfico de personas, capitales, servicios y mercancías y la consiguinte eliminación de las barreras arancelarias internas y otros obstáculos al libre cambio. La integración regional no es, pues, sino un aspecto de la general globalización, que da cuenta de una especial intensidad de las relaciones".

O novo modelo social do poder hegemônico tem por intenção realizar a fusão entre o capital e a democracia, de forma que a segunda figure a serviço do primeiro, situação na qual se possa implantar na mente humana a idéia de que a democracia continua a impor formas plurais de organização da sociedade, com a manutenção da multiplicidade de institutos, só que agora num ambiente macro, transnacional, de integração. É a democracia servindo como instrumento virtual para encobrir o processo de uniformização das nações e dos povos. É a humanidade da diversidade da uniformidade. É como se os humanos entrassem num túnel em que na entrada são todos diferentes e diversos, e na saída já se encontrassem uniformizados.

O que surge desse novo modelo social – para ser constatado durante o século XXI –, é uma intensificação da diplomacia do canhão dirigida àqueles (idéia construída) que ameaçam o modelo democrático global, com a conseqüente ampliação do conceito de terrorismo; o mercado como a mão invisível que tudo pode e determina, sem nenhum controle a não ser o do próprio, sem nenhum exame de legitimidade, mas apenas uma análise da legalidade; o domínio do valor de uso pelo valor de troca imposto por uma política de armamento nuclear; o capital comandando o metabolismo social humano; o parlamento como instituição (mas em perigo de extinção) democrática, controlada pelo capital; a modernização como uma fantasia, a idéia de que o mundo (o globo terrestre) por completo se encontra modernizado; a falsa idéia de que a igualdade de oportunidade exterioriza a igualdade de resultado; e, o voto como liberdade imaculável, mesmo às vezes de forma obrigatória, maquiando a legitimidade da democracia. Todo esse processo determinando o falecimento da igualdade e fraternidade.

Esse modelo social de poder hegemônico econômico global avassalador gera resultados como "indústrias inteiras que são brutalmente arruinadas, em todas as regiões. Com os sofrimentos sociais que delas resultam: desemprego maciço, subemprego, precariedade, exclusão. Cinqüenta milhões de desempregados na Europa, um bilhão de desempregados e de subempregados no mundo (...) Exploração de homens, de mulheres – e mais escandalosa ainda – de crianças: trezentos milhões delas estão em condições de uma grande brutalidade (...) A mercantilização generalista das palavras e das coisas, dos corpos e dos espíritos, da natureza e da cultura, provoca uma agravação de desigualdades. Quando a produção mundial de produtos alimentares de base representa mais de 110% das necessidades, trinta milhões de pessoas continuam a morrer de fome a cada ano e mais de oitocentos milhões são subalimentadas. Em 1960, 20% da população mais rica do mundo dispunha de uma renda 30 vezes mais elevada do que a dos 20% mais pobres. Hoje a renda dos ricos é 82 vezes mais elevada! Dos 6 bilhões de habitantes do planeta, apenas 500 milhões vivem confortavelmente, enquanto que cinco bilhões e quinhentos milhões permanecem na necessidade. O mundo caminha de cabeça para baixo, às avessas".

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Diante do quadro pintado, qual a opção do século XXI? A opção aponta para uma convergência e uma elevação da convivência na vida humana. No século XXI, preparar-se-á a civilização do universal, um sistema em que as partes são interdependentes, numa constante discussão de ideários, valores etc. É a busca por um ideário homogêneo, para se alcançar uma comunidade de partilha de ideários, numa formação de grupos interdependentes, a predominância do homem como finalidade única e nunca como meios ou instrumentos, uns dos outros.

A proposta pode parecer ingênua, romântica e utópica, mas para utilizar uma expressão atribuída a EDUARDO GALEANO, um outro mundo é possível. A alternativa colocada para o século XXI, tem sido chamada por KONDER COMPARATO de civilização capitalista versus civilização comunitária, o que quer significar "o confronto histórico entre, de um lado, o movimento iniciado em fins da Idade Média européia, caracterizado pela concentração do poder em todos os níveis, com a conseqüente dissociação da humanidade, e, de outro lado, o esforço de institucionalização do sistema de direitos humanos. A comunidade é o espaço social de realização da liberdade, da igualdade e da solidariedade, princípios cardeais do sistema de direitos humanos. Ela é, por conseguinte, uma sociedade aberta, em que os indivíduos e os grupos sociais não se fecham sobre si mesmos, mas abrem-se, não só uns para os outros, mas sobretudo para o futuro, não justamente um futuro acabado, que é a sua própria negação (‘o fim da História’), mas sim uma abertura para o infinito (o ‘ponto ômega’) (...) Além disso, do mesmo modo a sociedade comunitária é um permanente projeto, ou seja, ela se lança sempre para o futuro (pro + jectum, particípio passado do verbo latino projicio = lançar para longe, arremessar, estender)". A construção teórica dos princípios diretores de uma civilização comunitária realizada pelo representante das Arcadas, é fundada na noção de princípio em filosofia e na teoria jurídica, que são eles: o princípio da comunhão, o princípio da solidariedade e o princípio do amor.

O que também não deixa de significar, que no século XXI estar-se-á a assistir a substituição da cidadania pela dignidade da pessoa humana. Não que a cidadania seja menos importante, mas é que, em função de um processo avassalador de ordem econômica e política, a luta pela dignidade humana se apresenta de forma mais utópica. No caso brasileiro – face o processo de integração do cone sul –, o auferir dessa dignidade humana vai residir numa nacionalidade latino-americana e na manutenção da cidadania brasileira. A luta agora é para impor os limites de atuação do Estado, ou das Organizações Supranacionais, ou Organizações Internacionais num Estado Global.


3. Uma nova espécie de criminalidade: a delinqüência (moderna) econômica.

Toda e qualquer análise elaborada para a origem do Direito Econômico, como ciência jurídica surgida no início do século XX, leva a conclusão da crescente intervenção do Estado no domínio Econômico, diante das diversas transformações presenciadas pela humanidade a partir do acontecimento da Primeira Grande Guerra. O intervencionismo estatal, então, passou a ser uma realidade na economia do Estado Moderno. Lembra KARDEC DE MELO que, "o planejamento de setores fundamentais da economia levou o Estado a exercer atividades nitidamente econômicas e a estabelecer políticas destinadas a direcionar tais atividades, cuja regulamentação jurídica passou a constituir arcabouço do Direito Econômico".

A partir da efetivação de tais atividades estatais, iniciara o surgimento de normas penais objetivando a criação de um sistema protetor desse intervencionismo estatal. E, um ponto principal – paralelo a essa atividade econômica estatal –, foi a estruturação de grandes empresas, detentoras de um forte poder econômico, que provocou o Estado a formular um sistema jurídico eficaz de proteção aos interesses de uma sociedade de massas, foi quando acontecera o fenômeno da norma legal como instrumento de proteção da economia nacional e popular.

Tal acontecimento ou acontecimentos remotos que deram origem ao intervencionismo estatal, em virtude das crises do liberalismo, parecem estar anos luz da lembrança e convivência social atual, preceito ou preceitos determinados a uma preservação da iniciativa privada – como postulado irrevogável do regime democrático –, significando a exteriorização de uma diretriz de proteção a determinados setores econômicos, também, como forma de criação de um escudo protetor da soberania nacional, com diplomas constitucionais trazendo títulos como da ordem econômica e social, sob o argumento da distribuição de justiça social, parecem não expressar, mais, o menor significado. O preceito que a iniciativa privada figura como pilastra do regime democrático lhe competindo a organização e a exploração das atividades econômicas, com uma devida premissa de liberdade não ilimitada, submetendo-se aos princípios e preceitos constitucionais, imbuída do desenvolvimento e fortalecimento da Ordem Pública, não mais existe. O fenômeno globalização pois um ponto final a esse ensinamento constitucional-econômico-penal-administrativo.

Definitivamente, a intenção estatal – pois não se pode chamar de política criminal um emaranhado de leis especiais criminalizadoras –, de ameaça coativa com sanções usando o poder supremo, ora por disposições administrativas, ora através de prescrições como forma de garantia preventiva, não transparece mais o menor significado, sem nem ressaltar a importância da eficácia. A criatura cresceu e agora engole o criador. Não há mais uma visão real da dimensão do problema. No caso brasileiro, as advertências contidas dos estudos originais de ROBERTO LYRA FILHO, MANOEL PEDRO PIMENTEL e GERSON PEREIRA DOS SANTOS, tiveram seu desenvolvimento acelerado a partir do final dos anos oitenta, com o retrato irrefutável da vinculação dos desajustes da economia com a criminalidade. No limiar dos anos noventa, a edição do pioneiro trabalho de MÁRCIA DOMETILA LIMA DE CARVALHO, seus escritos de tese nas Arcadas propugnando por uma fundamentação constitucional do Direito Penal, numa abordagem envolvendo: a influência dos valores constitucionais no conceito de delito; o princípio da legalidade formal e material; o exame da culpabilidade no Estado Democrático de Direito; a atribuição de relevância do crime econômico-constitucional; e, um exame da responsabilidade penal dos entes coletivos numa afirmação de realidade da criminalidade empresarial.

Um pouco mais a frente (meados da década de noventa), mas, não menos importante, os estudos de JOÃO MARCELO DE ARAÚJO JÚNIOR. Alertas no sentido de uma criminalidade ou forma de delinqüência sofisticada, de um poderio ofensivo ao extrato social de difícil reparação, de reprovação máxima, com uma necessidade irrenunciável de um exame criminológico e científico, diante de uma ausência latente de tipificação nos dispositivos penais econômicos. Ao final dos anos noventa, surge o competentíssimo trabalho de ELA WIECKO DE CASTILHO, com uma pesquisa empírica sobre o assunto poucas vezes vista no direito pátrio, confirmando o magistério dos referidos pensadores. Com uma radiografia acerca dos crimes contra o sistema financeiro de causar repugnância. É a ratificação – dentre tantas outras que serão referidas no presente trabalho dissertativo –, da existência de uma criminalidade que é fundada na conjugação de dois fatores fundamentais: a) a existência de um poder hegemônico global avassalador que imprime ao Estado um processo irreversível de minimização dos seus deveres com ressonância imediata na sua soberania; b) a incapacidade estatal de enxergar na Constituição o núcleo ético para a formulação de um sistema penal econômico constitucional, e sua conseqüente política criminal e dogmática jurídico-penal.

Como antes mencionado, a criatura cresceu e agora engole o criador, a criminalidade econômica é global, "de um lado, não se pode deixar de reconhecer que o modelo globalizador produziu novas formas de criminalidade que se caracterizam, fundamentalmente, por ser uma criminalidade supranacional, sem fronteiras limitadoras, por ser uma criminalidade organizada no sentido de que possui uma estrutura hierarquizada, quer em forma de empresas lícitas, quer em forma de organização criminosa e por ser uma criminalidade que permite a separação tempo-espaço entre a ação das pessoas que atuam no plano criminoso e a danosidade social provocada. Tal criminalidade, desvinculada do espaço geográfico fechado de um Estado, espraia-se por vários outros e se distancia nitidamente dos padrões de criminalidade que tinham sido até então objeto de consideração penal".

No final do século XX e início do novo milênio, o binômio: poder hegemônico global e delitos macroeconômicos, passam a pintar um quadro aterrorizante para o sistema penal. Este se apresenta diante do fenômeno em estado de hipertrofia, suas estruturas clássicas não conseguem alcançar a nova criminalidade. TERRADILLOS BASOCO, ao se referir aos limites do domínio do Direito Penal Econômico, permite uma interpretação de tal elasticidade de seus contornos que se poderia perfeitamente dividir a teoria do Direito Penal em dois grandes rumos absolutamente distintos – nem tão antagônicos, nem tão complementares –, uma teoria para o Direito Penal Clássico outra para o Direito Penal Econômico. Na máxima abrangência que lhe dá o pensador da escola de CÁDIZ, enfeixa categoria de delitos determinada pela natureza do estatuto social da empresa (crimes societários e crimes falimentares) e outros que são determinados pela natureza das atividades perpetradas pela empresa. Estes poderão ser delitos contra outros sujeitos econômicos (crimes contra a propriedade industrial, concorrência desleal, consumidor, relações de trabalho, livre concorrência e os crimes ambientais), ou, de outra banda, crimes cometidos contra instituições (crimes financeiros, tributários e, eventualmente, contra a administração pública). Enquanto que, SILVA SANCHES lecionando sobre o fenômeno, relaciona os fenômenos econômicos da globalização e da integração econômica como algo a produzir uma nova esfera para a conformação de modalidades novas de delitos clássicos, bem como o aparecimento de novas condutas delituosas. "Así, la integración genera una delincuencia contra los intereses financieros de la comunidad producto de la integración (fraude al presupesto – criminalidad aarancelaria –, fraude de subvenciones), al mismo tempo que contempla la corrupción de funcionarios de las instituiciones de la integración. Por lo demás, generam la aparición de una nueva concepción de lo delictivo, centrada en elementos tradicionalmente ajenos a la idea de delincuencia como fenómeno marginal; en particular, los elementos de organización, trasnacionalidad y poder económico. Criminalidad organizada, criminalidade internacional y criminalidad de los poderosos son, probablemente, las expressiones que mejor definen los rasgos generales de la delincuencia de la globalización".

O que se nota é uma hipertrofia total do sistema penal em alcançar os sujeitos (pessoas física e jurídica) dessa nova espécie de criminalidade. A aparência é que existe uma barreira internacional invisível que impede uma agilização na formulação e criação de instrumentos e mecanismos de combate a criminalidade transnacional. Talvez essa barreira internacional invisível e intransponível seja "a inexistência de um Estado mundial ou de organismos internacionais suficientemente fortes que disponham do ius puniendi e que possam, portanto, emitir normas penais de caráter supranacional, a carência de órgãos com legitimação para o exercício do ius persequendi e a falta de concretização de tribunais penais internacionais agravam ainda mais as dificuldades do enfrentamento dessa criminalidade gerada pela globalização. Além disso, o Estado-nação, derruído na sua soberania e tornado mínimo pelo poder econômico global, não tem condições de oferecer respostas concretas e rápidas aos crimes dos poderosos, em relação aos quais há, no momento, um clima que se avizinha à anomia".

Essa nova espécie de criminalidade introduzida pelo processo de globalização da economia, desenvolvida em ambiente macro, mais especificamente, nos processos de integração econômica, tem como protagonistas personagens que sempre figuraram a frente do processo de desenvolvimento econômico das chamadas nações civilizadas. No entanto, nunca fora alcançada uma magnitude tão maléfica dos seus efeitos como a atual. Uma ofensividade de ordem econômica, política e social, nunca vista. É verdadeiramente a criminalidade dos poderosos. A realidade do novo poder hegemônico global é denunciada por ZAFFARONI, pela forma irracional em comparação com os modelos imediatamente anteriores de poder mundial, a constatação do atual modelo é que as condutas que antes eram tipificadas como delitos contra a economia nacional, como alterações artificiais de mercados, acesso à informações confidenciais, evasões impositivas, monopólios e oligopólios, incluindo condutas que norteiam as tipicidades nacionais de delitos menos sofisticados, como extorsão, são agora condutas licitas na economia mundial. Tudo isso é denunciado face a ausência de um poder regulador de amplitude internacional, é a materialização do foro internacional da impunidade, com uma prática reiterada em proporções inidentificáveis.

Por um lado, a síntese realizada por ZAFFARONI é de constatação do falecimento do direito positivo, a interpretação colhida de suas palavras é a de que se está acompanhando o enterro do positivismo jurídico dos séculos XIX e XX, quando leciona que "en el orden planetario puede afirmarse el claro efecto de la anomia generalizada, como dato objetivo. La realidad nunca coincide con la norma, porque el deber ser es un ser que no es o que, al menos, aún no es. Pero cuando la realidad se dispara respecto de la norma, deviene disparate, prescrible un ser que nunca será y la norma queda cancelada por inútil y le aguarda el destino de los desperdicios (anomia). La perspectiva de este proceso anómico de poder, proyectada sin contención hacia el futuro, se traduce: a) en el cresciente dominio del delito económico que tiene a adueñarse de la economia mundial, ante la impotencia de los estados nacionalies y de los organismos internacionales (cada dia más las actividades económicas a nivel planetário irán asumiendo mayor similitud con las prácticas criminales mafiosas); b) en el marcado deterioro del medio ambiente, que anuncia la producción de graves alterações en la biósfera". Por outro, FARIA COSTA leciona sobre a existência de uma teia criminosa que tece imbuída de um fio criminoso buscando o desencadeamento de lucratividade astronômica, tratando-se não de um processo artesanal, mas de um sistema que poderia ser chamado de projeto racional conectivo de dominação econômica criminosa internacional, fundado em três grupos de atuação independente, mas com ramificações e conexões ativas. "Fundamentalmente, os diferentes três grupos assumem-se funcionalmente da seguinte maneira: o grupo central ou nuclear tem como finalidade principal levar a cabo o aprovisionamento, o transporte e a distribuição dos bens ilegais. Ligam-se, aqui claramente, coação e corrupção para expansão de poder e lucro. Um outro grupo tem como propósito servir de proteção institucional a toda rede ou teia. É a tentativa de chamar à organização, de forma sutil ou direta, a política, a justiça e a economia, as quais através do estatuto dos seus representantes, permitem criar bolsas ou espaços onde a atuação política se torna possível. Finalmente, surge um terceiro grupo que tem como fim primeiro estabelecer a lavagem de todo o dinheiro ilegalmente conseguido. Operam-se, por conseguinte, ligações com instituições bancárias, com cassinos e ainda com outras sociedades legalmente constituídas. É o grupo que funciona como placa giratória entre o mundo criminoso e o normal e comum viver quotidiano. O que tudo demonstra a forma particularmente racional e elástica deste tipo de organização. Tão elástica e tão fluida que o fato de algumas vezes se destruir um grupo não quer de modo algum significar que toda a rede tenha sido afetada".

O cenário é de uma incerteza inegável, já que não se chega a uma conclusão acerca da convivência do sistema penal dualístico, com os seus modelos de convivência podendo ou devendo, ou não manter um diálogo permanente. Aqui serão feitas minúsculas incursões nos debates das possibilidades de conversações existentes no sistema dualista, seja a separação dos modelos, ou a migração de um modelo para outro. Assim como as proposituras de expansão máxima e moderada da intervenção penal e a doutrina de preservação do núcleo do direito penal.

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Sobre o autor
Luciano Nascimento Silva

professor universitário, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal), bolsista de Graduação e Mestrado da FAPESP e de Doutorado da CAPES, pesquisador em Criminologia e Direito Criminal no Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht – Freiburg in Breisgau (Alemanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciano Nascimento. O moderno Direito Penal Econômico.: A Ciência Criminal entre o econômico e o social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 225, 18 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4840. Acesso em: 5 nov. 2024.

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