4. O Direito Penal Clássico e o Direito Penal Econômico, ou Moderno
O direito penal clássico – Pode-se afirmar a existência de uma unanimidade acerca de que o movimento iluminista provocou o nascimento do Direito Penal moderno, em substituição às formas precedentes de justificação do ius puniendi, o que de maneira fundamental vem enobrecer tal movimento para o desenvolvimento da ciência penal. Alguns autores vão identificar tal nascimento no movimento artístico, literário e político, que veio a ficar conhecido como renascimento, da Itália do século XV, movimento este em que, artistas, cientistas e filósofos, de forma efetiva, criaram e desenvolveram novas idéias fundadas nas culturas grega e romana. Muito além de uma provocação direta exercida sobre a música, a pintura, a literatura, a escultura, a arquitetura, o movimento renascentista exerceu uma influência fundamental quanto ao viver e enxergar o novo mundo.
Os pensadores humanistas desenvolveram idéias de forma a questionar os ditames do poder eclesiástico, colocando o homem como o ente mais importante nas relações humanas. O renascimento alcançou seu apogeu no século XVIII, que ficou conhecido como o século das luzes, tendo como principal acontecimento a Revolução Francesa de 1789, com a conseqüente edição da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão. Pois, as legislações penais da Europa de meados do século XVIII, pautavam-se em procedimentos de crueldade, de castigos corporais e da pena de morte. "O Direito era um instrumento gerador de privilégios, o que permitia aos juízes, dentro do mais desmedido arbítrio, julgar os homens de acordo com a sua condição social. Inclusive os criminalistas mais famosos da época defendiam em suas obras procedimentos e instituições que respondiam à dureza de um rigoroso sistema repressivo".
Tal cenário veio justificar a intervenção de alguns filósofos que em uma verdadeira reunião configurando um movimento de idéias voltadas para a razão e a humanidade, deram início as idéias iluministas e humanitárias, mais precisamente os pensadores franceses VOLTAIRE, MONTESQUIEU e ROUSSEAU, em defesa da liberdade, igualdade e justiça. Para o Direito Penal se pode afirmar como autores das primeiras idéias penais BECCARIA, HOWARD e BENTHAM. O primeiro se caracterizando como o principal autor contestador dos sistemas repressivos, inspirado nas idéias dos pensadores franceses, em especial de MONTESQUIEU e ROUSSEAU. Tais conquistas do renascimento provocaram a substituição da razão da autoridade pela autoridade da razão e, nesse brocardo, fundou-se o Direito Penal moderno. A partir de BECCARIA, com sua obra fundamental Dei Delitti e delle Pene (1764), objetivou-se humanizar o direito penal, procurando-se uma identificação – conseqüentemente uma amenização, ou reparação – para alguns preceitos, dentre eles: a origem da pena, para o poder/dever ou direito de punir, para a finalidade da pena, para uma análise da proporção entre delitos e penas, para uma divisão dos delitos, para as formas de julgamento, para uma revisão da prisão, para a pena de morte, para a interpretação e obscuridade das leis etc.
O movimento iluminista, que propugna uma reforma dos sistemas penais repressivos que teve sua maior repercussão com o trabalho de BECCARIA recebeu o nome de humanitário, por alguns motivos, dentre eles, por sua ênfase a idéia de respeito à dignidade humana, a concepção de piedade e compaixão às pessoas submetidas as mais diversas formas de penas cruéis. Mais precisamente, sobre a pena privativa de liberdade, cabe ressaltar os trabalhos (dos que poderiam ser chamados de: os últimos iluministas) de JOHN HOWARD e JEREMIAS BENTHAM. O primeiro, com uma preocupação voltada para as questões penitenciárias, no sentido de proporcionar o cumprimento de uma pena de prisão em estabelecimentos condizentes. O segundo, com a idéia de utilidade da pena, contribuiu com a ciência penal no campo da penologia, com a edição de idéias que vigem até os dias atuais, entendendo a pena como um sacrifício necessário e a prevenção como a finalidade que proporciona a legitimidade da pena.
No entanto, com a chegada do século XIX ocorreu a criação dos suportes ideológicos do Direito Penal, que proporcionaram a codificação do Direito Penal, caracterizando uma reformulação ou redefinição das relações existentes entre os indivíduos e o Estado. "Pode-se afirmar que a base do sistema legal está dada por quatro vetores fundamentais. Em primeiro lugar pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege. Em segundo, pela fundamentação racional da pena, da qual se deduz a necessidade de proporcionalidade da mesma ao fato cometido. Em terceiro, a concepção do delito como algo diferente do pecado e, conseqüentemente, um tratamento diverso dos delitos contra a religião e contra a moral e bons costumes. Por fim, a humanização das penas sob a preponderância da pena privativa de liberdade".
O marco da codificação do Direito penal legislado no século XIX, se encontra na fórmula do Código Penal francês de 1810, que representava a passagem de página da ciência penal medieval. Mais a frente surgiu, então, as concepções de ligação (já que durante um bom tempo perdurou um paralelismo) entre a Constituição Federal e o Direito Penal. Apontamentos no sentido de uma ligação umbilical entre o Direito Penal e o Direito Constitucional, sendo ambos ramos do Direito Público, chegando-se a afirmar as mais diversas relações de diálogos existentes, num sistema positivista, residindo sempre numa visualização de hierarquia de valores, que funciona como suporte de validade (legalidade) das leis penais. Por tal razão alguns autores passaram a afirmar que "o Direito Penal se legitima formalmente mediante a aprovação das leis penais conforme a Constituição".
Não se pode negar que o Direito Penal legislado e operado na era medieval era um direito desumano e sua finalidade era exatamente essa, a prática de tortura, atos cruéis e de efetivação das penas: perpétua e capital. Com o iluminismo ocorre a identificação do embrião humanitário nas ciências penais. No entanto, a lembrança real é a de que tal movimento não passou de uma revolta burguesa, que não mais satisfeita com o sistema vigente propugnou pela sua queda. É verdade que, também, não há de ser esquecido os trabalhos de todos os filósofos da época, franceses, italianos, alemães, ingleses, etc., porém, o iluminismo teve sua limitação em si mesmo. Há de ser reconhecido um avanço nas relações humanas a partir de tal movimento, um avanço nas relações entre o cidadão e o Estado. Nos dias atuais resta pouco do encanto daquele movimento, de lá para cá o mundo sofreu diversas transformações, e as lições do iluminismo foram sendo deixadas de lado, pouco a pouco, o embrião humanitário identificado nas ciências penais foi morrendo. E hoje, a constatação de sua morte.
Infelizmente o iluminismo não sobreviveu as intenções do Estado e da classe que o controla. Os acontecimentos revolucionários da economia no século XIX, os Estados totalitários, as guerras e as ditaduras (principalmente latino-americanas) do século XX, e, os eventos (11 de setembro) do início do século XXI, sepultaram o que ficou conhecido como o movimento humanitário das ciências penais.
O Estado se utiliza do poder/dever de punir – como política fundamental de controle social –, através do Direito Penal e do Sistema Penal. Daí surgirem as indagações: O que é o Direito Penal? O que é o Sistema Penal? Torna-se imprescindível realizar tal distinção para compreensão tanto de um quanto do outro. Tem-se por Direito Penal, a priori, um conjunto de normas jurídicas penais que delimitam as condutas denominadas (crimes) criminosas, imputando-lhes sanções, assim como, um controle de validade das referidas normas, a criação e manutenção da estrutura geral de tais condutas e, finalizando com a aplicação e execução das (penas) sanções cominadas. No entanto, pode-se constatar outros conjuntos de normas integrantes do Direito Penal, que se encontram na esfera forense, são eles: o Direito Processual Penal, a Organização Judiciária, a Lei de Execução Penal e os Estatutos Penitenciários. Para a efetivação de ambos os conjuntos, ou seja, a prevenção da criminalidade, pode-se dizer que existem "as polícias militares que exercem uma atividade preventiva, encarregadas do policiamento ostensivo e da preservação da ordem pública. O exercício da polícia judiciária e a apuração das infrações penais é atribuição adequada ao perfil da polícia civil, igualmente órgão integrante da estrutura constitucional da segurança pública (...) Um e outro têm por vertedouro obrigatório o Poder Judiciário, a quem incumbe o controle da legalidade de todas as detenções. Intervém obrigatoriamente, como titular exclusivo na maior parte dos casos e como custos legis nesses e nos demais, o Ministério Público (...)".
Portanto, diante dos referidos conjuntos de normas que formam o Direito Penal, pode-se afirmar que o indivíduo autuado – até ser submetido ao cumprimento de uma sanção criminal – percorre as seguintes etapas: policial, judiciária, Ministério Público e penitenciária. Atribui-se ao conjunto dessas instituições, que têm por finalidade a efetivação do Direito Penal, a denominação de Sistema Penal. No entanto tal descrição não se apresenta de forma unânime, existindo aqueles que lecionam com base em outras regras, para identificar o que seja o sistema penal. "Entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado, concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que não sejam estritamente legais. Isso lhe permite incluir no conceito de sistema penal casos de ilegalidade estabelecidas como práticas rotineiras, mais ou menos conhecidas ou toleradas".
Há, ainda, no campo da criminologia e da sociologia, diferentes conceituações do significado do sistema penal. Para alguns, tratam-se de mecanismos de seletividade, no exercício de atividades arbitrárias, em que ocorre o fenômeno – para utilizar a expressão de BARATTA – da clientela do direito penal, ou seja, o recrutamento dos mais débeis, numa forte criminalização, de maneira a estabelecer uma lição implícita do espaço social de cada um. Já em outra definição – assumida pelos autores marxistas – o sistema penal tem por finalidade realizar a missão de hegemonia de um setor sobre o outro. O que não pode ser negado é que se tem buscado uma legitimação do Direito Penal nos diplomas constitucionais, a priori, uma legitimidade formal das normas penais, como etapa de desenvolvimento. O Direito Penal se caracteriza como ciência subsidiária e fragmentária, faz parte de toda a ordem jurídica, estabelece relação com todos os outros ramos, mas, principalmente, presta obediência ao Direito Constitucional. O que não quer significar sua legitimidade. No máximo efetiva sua legalidade. É diante da obediência ao diploma constitucional, para adquirir sua legalidade estatal, que o Direito Penal assume os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Daí se cria as mais diversas formas de diálogos entre o diploma constitucional e o Direito Penal, primeiramente, numa concepção do sistema positivista, depois na elaboração e prática de uma política criminal, em seguida colocando a Constituição como estrutura fundante, como fonte, como filtro, e, finalmente, como fator de evolução do Direito Penal. O movimento constitucional penal, que acelera seu desenvolvimento a partir de meados da segunda metade do século XX, procura fundar sua legitimidade num discurso de evolução chamado de sensibilidade constitucional da ciência penal". É verdade que as idéias constitucionais penais, não representam as idéias dominantes no Direito Penal, mas, porém, estas são utilizadas de forma inteligente por aqueles que não pertencem à clientela do direito penal, pois, os recrutados pelo Direito Penal não têm a oportunidade de uma defesa conhecedora de tais idéias. O exercício da defesa no Direito Penal, apenas não é desproporcional é, realistamente, inconstitucional e injusto.
O direito penal econômico – A lição é antiga e fundamental, para uma pretensão do estudo do Direito Penal Econômico, faz-se necessário antes uma análise acerca do Direito Econômico, que para uma maioria doutrinária traz em seu bojo o significado de que a parte penal seria um ramo qualificado. O Direito Econômico moderno nasce do intervencionismo estatal do século XX no domínio econômico. "Ora essa intervenção e mediação não poderia ser feita ad libitum, carecendo de normas limitadoras de direitos e deveres. Assim aconteceu, surgindo as leis regulamentadoras da política econômica do Estado, em confronto com os interesses públicos e particulares equacionados. A especificidade dessas normas as distinguia das demais regras comuns do Direito civil, como a simples compra e venda; do Direito comercial, como o mero contrato de transporte marítimo; do Direito administrativo, como a realização de concorrência e do Direito penal, como a tipificação do furto ou da falsidade documental".
Assim ocorrera o surgimento do Direito Econômico, como ciência nova. Um direito novo face uma nova realidade estatal econômica, possuidor de características próprias e de alcance intervencionista declamado. Os acontecimentos fundamentais (a Primeira Grande Guerra 1914-18; a crise econômica de 1929 com a quebra da bolsa de New York, e a Segunda Grande Guerra 1939-45), marcaram a superação do sistema capitalista do século XIX com o conseqüente abandono dos seus princípios diretores. "Novas relações entre o capital e o trabalho, a revolução dos meios de produção e de transporte, o nascimento das empresas, com investidores anônimos, as novas posições do mercado financeiro, a complexa interação dos fatores do mercado econômico, do trabalho e do mercado financeiro, dos preços dos salários e das rendas, tudo isso tornou necessária a ajuda do Estado com medidas de proteção, surgindo paulatinamente a intervenção estatal com o dirigismo econômico".
As novas relações complexas entre o capital e o trabalho exigiam uma nova formulação das normas jurídicas, que não aquelas do direito comum. O surgimento do Direito econômico, então, com status de ciência nova e um significado irrefutável, qual seja, o de instrumento eficaz de intervenção estatal no domínio econômico, instrumento o qual o legislador recorreria ordinariamente. Com a espada do argumento da defesa da ordem pública econômica e social. Então, o Direito Econômico se caracterizou como um arsenal de técnicas jurídicas, a serviço do Estado, para a realização de suas diretrizes econômicas. Passou a significar o instrumento normativo da base de sustentação do sistema econômico do Estado pós-moderno e contemporâneo.
Essa participação direta e ativa do Estado no sistema econômico, utilizando-se de um conjunto de dispositivos normativos destinados a uma regulamentação e efetivação dos objetivos políticos econômicos estatal, podem não receber o mesmo significado de leis econômicas propriamente ditas, para MIRANDA GALLINO, a economia "es un hecho, un fenómeno cultural y social, en su expresión primaria, ella puede existir con escasa, o aun sin protección jurídica, abandonada al buen criterio de los hombres en sus operaciones de cambio y producción, en el seno de una sociedad ideal". Enquanto SABAS ARIAS conceitua o Direito Econômico como sendo "el conjunto de normas que tienen por objeto regular las relaciones humanas en la medida en que son económicas, es dicer, en que persiguen eficientemente la satisfacción de las necesidades individuales y colectivas". Ou, ainda, como "el conjunto de normas que se refieren a la regulación de las relaciones económicas, sea que dichas normas se encuentren en las leyes civiles o comerciales generales, o en las leyes económicas específicas".
Diante de todos os acontecimentos narrados, a doutrina pátria, estrangeira e comparada, passou a viver a dicotomia da conceituação e a questão do status de disciplina autônoma do Direito Penal Econômico. Quanto a sua conceituação, os acontecimentos políticos, econômicos e sociais do final do século XX determinaram a impossibilidade da formulação de um conceito estático para o Direito Penal Econômico. Já, quanto a sua autonomia como ramo do Direito, os acontecimentos avassaladores no campo das relações humanas e da diplomacia entre as nações, apontam para uma separação definitiva entre o Direito Penal Clássico e o Direito Penal Econômico. A problemática não reside mais na autonomia, mas, sim, nas possibilidades de conversações, que têm recebido da doutrina às terminologias de: expansão sem freios da intervenção penal; expansão moderada da intervenção penal, função exclusiva de proteção subsidiária aos bens jurídicos fundamentais e defesa dos direitos, liberdades e garantias das pessoas; ou ainda a ordenação social.
Toda essa celeuma surge da origem quando se pode identificar que "em sua maioria, os textos penais, particularmente fragmentários em matéria econômica, são desconhecidos, imprestadios, tecnicamente mancos. Convive-se, em função das leis vigentes, com um passado de amenidades, no qual era o delito um hóspede indesejável, embora eventual, quando mais importante é viver o presente, o tempo que passa, em que a criminalidade, notadamente a econômica, transpõe impunemente as pautas dos diplomas penais, olhando-os à maneira dos antigos invasores que, acostumados às vitórias, contemplavam do alto e dos longes as ruínas da cidadela irremediavelmente conquistada".
Pois bem, em questão de direito penal econômico, a frase atribuída a ENRIQUE AFTÁLION, de que este seria um subúrbio imprestável do direito penal, foi corroída pelos acontecimentos humanos do final do século e começo do novo milênio. Assim como o pensamento daqueles que imaginavam ser o delito econômico – num suposto estudo criminológico que, pelo menos no Brasil, nunca houve – um tipo de injusto exclusivo da criminalidade de (White-collar) colarinho branco (E. SUTHERLAND). As previsões dos criminológos do início do século XX, acerca do surgimento de uma nova espécie de criminalidade fundada no enredo das complexidades do mundo dos negócios, com a inerente substituição do emprego da violência pela inteligência e astúcia, encontrou no cenário da século XXI e do terceiro milênio, o ambiente perfeito. É a delinqüência econômica com a substituição da vítima-indíviduo pela vítima-coletivo, ou vítima-sistema, ou vítima-mercado.
Referindo-se às previsões lançadas por NICEFORO e FERRI, acerca do novo tipo de criminalidade, com a conseqüente diminuição da criminalidade tradicional, que se confirmou em parte, pois, os delitos contra a vida e o patrimônio não sofreram uma diminuição, PEDRO PIMENTEL já escrevia ao início dos anos setenta "a outra parte das previsões se concretizou integralmente. A criminalidade refinada, técnica hábil, se desenvolveu paralelamente com o aumento da complexidade da vida moderna, especialmente no campo da economia. Disfarçada, aqui, em grupo de homens de negócios, ali em empresa de vulto, acolá em sociedade comercial, a criminalidade prosperou largamente, impunemente, valendo-se das falhas da legislação, das deficiências do sistema, da corrupção, da pressão política, da exploração das mais diversas formas de prestígio social".
Então, como formular uma definição para o Direito Penal Econômico? A dinâmica do mundo atual não autoriza uma conceituação estática para um fenômeno jurídico-penal-econômico que em pouquíssimas ocasiões fora submetido a um exame da criminologia. Os delitos econômicos são concretos e reais, cabendo ressaltar, que sua existência não se resume a uma concepção unitária. A questão reside, fundamentalmente, no exame minucioso dos interesses envolvidos merecedores de uma formulação da tutela penal. É de ser dito que a principal dificuldade encontra-se em situar o fenômeno dos preceitos legais existentes, de maneira a eleva-lo a categoria de estudo científico, já que o crime é um fato punível, e a pena uma sanção correspondente determinada. "O que ocorre, todavia, com o delito econômico é que, em termos normativos, muitas das suas modalidades não foram ainda albergadas como violações a uma lei preexistente e, ex consequentia, não se pode cogitar da legitimidade de uma sanção, à falta de prévia cominação legal. Se a tipicidade fática, a antijuridicidade e a culpabilidade são notas determinantes que devem ser apreciadas, de modo analítico e sintético, ‘como elementos distintos de uma unidade estrutural’, tal unidade estrutural pode e deve ser objeto de um estudo histórico, lógico e dogmático, a fim de que possa ser proposta uma adequada legislação, reclamada pela consciência social, vale dizer, por quantos assistem ao crescimento das novas manifestações delinqüenciais. Pensar de outro modo seria, erroneamente, defender uma dogmática petrificada e esquecer o compromisso da ciência criminal com o mundo da realidade, com o polotische Umwelt, de que Exner tanto nos falou, em páginas magistrais".
No caso brasileiro, além de diversas disposições no Código Penal (Dec.-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1.940), inúmeras outras leis interferem na conformação do sistema legislativo do Direito Penal Econômico. Há diversas comissões, formais e informais, promovendo estudos sobre a reforma da Parte Especial do Código Penal e praticamente todas elas buscam uma nova disciplina para o Direito Penal Econômico, mas apenas no campo normativo especial, sem qualquer referência a uma nova concepção do instrumental clássico do Direito Penal, a Parte Geral. Assim, fala-se apenas em restruturação dos tipos incriminadores, mas o processo de transformação deveria começar pela fixação de princípios para uma nova Teoria Geral do Direito Penal Econômico, desvinculando-se o Direito Penal Econômico do Direito Penal Clássico.
De outro lado, o ingresso do Brasil num sistema de relações econômicas internacionais em zona contínua e embrião de modelo comunitário obriga-o, e aos demais Estados Partes que compõem essa zona econômica, a encetar um processo de unificação do sistema repressivo a essa delinqüência como condição indispensável ao equilíbrio das relações entre seus membros. Apresentando-se, de forma imprescindível, para o alcance de tal objetivo a figura do Parlamento do Mercosul, e um estudo sobre a instituição do Tribunal de Justiça (Supranacional) do Mercosul, que vem sendo objeto de proveitosos debates, graças, especialmente, aos estudos da Escola Nacional da Magistratura e Jurisul.
Daí a necessidade irrefutável de alinhamentos para uma restruturação do instrumental clássico do Direito Penal, em quatro momentos distintos: num primeiro, com o intuito de demonstrar A racionalidade da Teoria Geral do Direito Penal Econômico, de forma a identificar uma teoria para o Direito Penal Clássico e uma outra para o Direito Penal Econômico; num segundo, a demonstração da existência de uma especial legalidade dos delitos econômicos, mediante o estudo da aceitação das normas penais em branco, a parcial ruptura do princípio da taxatividade, e a admissão dos tipos penais abertos como integração analógica; num terceiro, a definição das estruturas clássicas do Direito Penal (legalidade, ilicitude, culpabilidade, relação de causalidade, concurso de pessoas, penas e seus substitutivos) em seu novo perfil, mediante um conceito dinâmico, atual e próprio em face da especialidade do Direito Penal Econômico; e, num quarto e último momento, a Restruturação do Sistema de Penas para o Direito Penal Econômico, face a ineficácia (comprovada) da pena privativa de liberdade, com o propósito de estudo de um sistema alternativo que represente: prevenção, reparação e repressão.
Ao início dos anos sessenta (1963), JIMÉNEZ DE ASÚA, lecionando sobre a sua formulação peculiar do Direito Penal Econômico, já levantava todas, ou quase todas as questões discutidas nos dias atuais, falando da sua divisão em princípios especiais e por disposições de Direito Penal Clássico, mencionando acerca das proporções alcançadas pelos delitos econômicos, que para ele figurava como merecedores da atenção dos legisladores e estudiosos do Direito. Porém, não admitindo a autonomia do Direito Penal Econômico, face a sua origem totalitária. "Derecho penal económico. En los países de régimen autoritario, e incluso en aquellos de economia ‘dirigida’ o ‘encauzada’ por el Estado, surgió la idea de reunir todos los preceptos penales que a ese objetivo se refieren, bajo el título de Derecho penal económico, formado – en el sentir de SIEGERT – en parte por princípios especiales y en parte por disposiciones de Derecho penal común. Aunque es cierto que el delito ‘económico’ ha tomado grandes proporciones y que, por ello, tiene que merecer la atención de legiladores y juristas como han señalado muchos autores, entre los cuales se encuentra MANHEIN, ello no supone ni la primacia y proliferación de especies delictivas que se contempla en ciertos Códigos de épocas autoritarias, como el italiano de 1939 y el brasileño de 1940, ni tampoco que nos decidamos a constituir un Derecho penal económico autónomo, olvidando el origen totalitario de ese supuesto ‘Derecho’ que parecía condenado al ostracismo al imperar los regímenes democráticos. No ha sido así, sin embargo, pues parece salvarse, como parte del Derecho penal administrativo, por el empeño de EBERHARD SCHMIDT, de cuvas convicciones democráticas nadie duda, y por la ley de 26 de julio de 1949 (Wirtschaftsstrafrechtsgesetz) dictada en la Alemania occidental, cuya aparente democracia ha hecho pensar que sus leyes han abjurado de toda tendencia totalitaria. Por eso, de buena fe, pero acso con ingenuidad, ha hablado QUINTANO RIPOLLÉS de ‘nueva dogmática del Derecho penal económico’. Con harta razón habla MAURACH de que es preciso evitar que proliferen excesivamente las leyes penales y del retroceso, que considera saludable, de esas disposiciones de Derecho penal económico, hijas de las restriciones de post-guerra que crearon el ‘mercado negro’". Diante do fenômeno da globalização como modelo social de poder hegemônico, o magistério de JIMÉNEZ DE ASÚA afirmando a salvação do Direito Penal Econômico como parte do Direito Penal Administrativo, encontra-se em cheque.
Realmente não se pode dizer que seja fácil a definição do Direito Penal Econômico. Interessante estudo fazem FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, procurando uma definição no sentido etimológico de forma a efetuar um plano demarcatório ou delimitado abdicando do que seria uma ambiciosa conceituação, diante da constatação de que o Direito Penal Econômico e sobretudo o conceito correspondente de crime contra a economia são apresentados de maneira diversa na criminologia, na criminalística e na dogmática jurídico-penal. Descartando, de imediato, a definição criminológica pautada no conceito do White-collar crime (E. SUTHERLAND), colocando o delito econômico como um tipo de injusto praticado por pessoas de escalões sociais superiores, ou por agentes de determinadas profissões numa atuação específica no âmbito da empresa (F. H. BERKAUER). Para os pensadores lusos, ambas as conceituações são insuficientes e inadequadas, principalmente, à luz de uma perspectiva jurídico-penal ou político-criminal. Assumem a idéia de KLAUS TIEDEMANN quando lecionam que "sem esquecer ainda que a criminologia, mais concretamente a fenomenologia criminal, é pressuposto de uma definição de delito económico com um mínimo de segurança. Enquanto não houver idéias seguras sobre as formas, freqüência etc. da criminalidade econômica, todo o conceito de Direito Penal Econômico será, pelo menos, provisório".
Os representantes da Escola de COIMBRA, falam da pretensão de conceituação dos delitos econômicos através da criminalística, em virtude da identificação da complexidade em que estão envolvidos, o que ensejaria numa questão de competência, em que os mesmos só poderiam ser investigados e julgados mediante procedimentos especiais, envolvendo corporações policiais e magistrados detentores de conhecimentos apurados acerca da economia e da vida moderna, sempre em apurações envolvendo quantias vultuosas. Seria uma forma qualificada dos crimes patrimoniais, e se apresenta de maneira insatisfatória para uma formulação dogmática e político-criminal. Uma perspectiva, totalmente, inadequada. No entanto, falam que "a não adopção dum critério criminalístico ou criminológico não exclui, porém, o reconhecimento de que, em certos casos, tais critérios assumem grande relevância. É o que acontece, como TIEDEMANN recorda, com os chamados subjectivos, certas qualidades do autor. Assim nos tipos que exigem, v.g., que o agente exerça profissionalmente o comércio, pertença à administração ou conselho fiscal duma empresa ou, inclusivamente, seja uma sociedade comercial".
Ainda, falam sobre a utilização de um critério que vai trazer preocupações à criminologia, que é o critério da violação da confiança. Critério este, que coloca a vida econômica como imprescindível para a existência do delito econômico. De igual forma inadequado. Dessa maneira realizam uma crítica direta a GUNTER KAISER, que coloca a confiança como um valor fundamental da vida econômica merecedora de tutela penal. Apresentando-se como um critério plausível, os estudos dos autores (B. R. RIMANN, B. NIGGERMEYER e W. ZIRPINS), que dão uma definição ao delito econômico de forma a entender na violação de confiança uma ofensa ao bem jurídico denominado vida econômica ou ordem econômica. Reconhecem que os critérios criminológico, criminalístico ou ecléctico, desempenham uma importante função nessa construção da definição do Direito Penal Econômico, de maneira a realizar uma aproximação com a realidade que se torna objeto do estudo. No entanto, apontam um outro caminho, "parece-nos, porém, que só numa perspectiva jurídica lograremos uma definição que, além do mais, seja útil num plano de política criminal e de reforma legislativa".
A perspectiva jurídica como ponto de partida para a realização de tal definição, não quer significar uma convergência de opiniões. Pois, o pensamento inicial reside no campo do Direito Econômico, disciplina de construção conceitual ampla e extensa, por demais, excessiva. FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE preterem o conceito fornecido ao Direito Econômico como caminho para se chegar a definição de Direito Penal Econômico, por entenderem que "um conceito que já vimos definir: ora como direito da empresa, ora como o conjunto de normas que conformam a economia e regulam o seu processo, ora como direito da direcção da economia do Estado, ora como um simples espírito particular de tratamento do direito, como um meio méthode d’approche e não como qualquer ramo ou domínio específico do direito". O que se pode entender de tal recusa é que se faz necessário uma conceituação, também, mais delimitada do Direito Econômico, "não veríamos quaisquer reservas fundadas em remeter para o Direito Econômico desde este se definisse claramente e em termos de tutela de valores fundamentais duma colectividade organizada, valores tão importantes que o próprio Estado se torna o seu portador e promotor. Desde que, em suma, se desse ao Direito Económico o sentido e o conceito tradicional na doutrina germânica. Nesta doutrina, de há muito é pacífico considerar o Direito Econômico como o direito da direção da economia, pelo Estado, como o conjunto das normas através das quais se traduz juridicamente a intervenção do Estado na economia – direcção e promoção (v.g. por meio de subvenções). No recurso ao direito penal para tutela destes mesmos valores se traduziria o Direito Penal Económico como defesa penal ‘da economia nacional no seu conjunto ou das suas instituições fundamentais’. Seriam assim delitos económicos os ‘que danificam ou põem em perigo a ordem económica como um todo’. Concretizando, pertenceriam ao Direito Penal Económico todas as normas incriminadoras que se inserem ‘na direcção por parte do Estado dos investimentos, no controle de mercadorias e serviços, no controle dos preços, na luta contra cartéis e práticas restritivas da concorrência e, a partir sobretudo de 1950, na promoção da economia através, principalmente, das subvenções".
A problemática da definição do Direito Penal Econômico é, por demais, árdua e complexa, tendo de maneira direta como fonte do seu surgimento, o Direito Econômico. E, tal complexidade, também, tem raízes na dicotomia do caráter secundário do direito penal e na autonomia das normas e dos valores jurídico-penais. O que quer significar que, a adoção doutrinária tanto de um quanto da outra, resultaria num retrato muito parecido do campo jurídico-penal repressivo. A questão é que no Direito Penal Econômico se está diante de bens jurídicos superindividuais, o que significa um nítido conflito com os bens jurídicos individuais do Direito Penal Clássico. Aparentemente a identificação de uma distinção irrefutável dos bens jurídicos poderia facilitar uma definição completa para o Direito Penal Econômico, mas a aparência é falsa. Pois, é esta identificação que provoca na doutrina uma restrição ou expansão do Direito Penal Econômico.
Sábia é a lição de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE lecionando com base na doutrina de KLAUS TIEDEMANN e ENRIQUE BACIGALUPO quando dizem que, "esta idéia leva a dogmática jurídico-penal para um espaço sensivelmente coincidente com aquele a que se chega a partir dum conceito estrito de direito económico. Não que com isto fiquem definitivamente superadas todas as dificuldades de definição. O critério encontrado permite, na sua aplicação prática, a identificação dum núcleo fundamental e geralmente reconhecido como Direito Penal Económico – direito penal dos preços, das subvenções, do comércio externo – mas não resolve – à margem de toda dúvida – certas zonas cinzentas. É o que acontece, entre outros casos, com a protecção da concorrência: será Direito Penal Económico enquanto defesa da instituição como tal, e já não enquanto punição de formas desleais de concorrência em detrimento dos demais concorrentes. São estas hesitações que permitem que autores, colocados na mesma perspectiva e adoptando o mesmo critério – o da intervenção do Estado –, restrinjam o Direito Penal Económico a um mínimo ou o alarguem exageradamente, de modo a incluir nele a maior parte do direito patrimonial do Código Penal". O entendimento dos pensadores lusitanos, é o de reconhecer um qualitativo de caráter econômico das normas sancionadoras. No entanto, ressalvam que a proteção de tais bens ou interesses não pode restringir-se ao uso do Direito Penal.
Porém, o que não pode ser deixado de lado é a idéia de se construir um sistema penal econômico, que encontre seu fundamento e legitimidade na Constituição do Estado (em capítulos como: Da Tributação e do Orçamento; Da Ordem Econômica e Financeira; e, Da Ordem Social), que é um núcleo ético próprio da condição peculiar de Estado Social e Democrático de Direito Material. É a idéia da construção do conceito de bem jurídico no Direito Penal Econômico, pela busca por um sistema penal econômico fundado na Constituição do Estado, que represente instrumento limitador do ius puniendi que, fundamentalmente, passa pelo momento de afetação desse bem jurídico (envolvendo a tipicidade e a concepção de antijuridicidade) como caracterizadora do injusto. A intenção é buscar uma harmonização concreta da dupla função do bem jurídico, o equilíbrio do referencial pessoal e social, e a condensação de acontecimentos em devir, as chamadas posições finais tão exigidas pelo Estado Social e Democrático de Direito Material. O que caracteriza a ordem econômica (seja na sua manifestação estrita ou ampla), como objeto de proteção do Direito Penal Econômico.
O resultado da construção de tal idéia, é a demonstração da Ordem Econômica como bem jurídico fundamental tutelado pela lei penal. Para isso, faz-se necessário traçar um histórico temático da ordem econômica que possibilite a melhor compreensão da criminalidade econômica, enfocando tanto o aspecto criminológico como normativo. Tal propósito poderá – a idéia está longe ser unânime – possibilitar uma definição do delito econômico satisfazendo, assim, a tutela da ordem econômica. A intenção é colher subsídios para apontamento de uma política criminal para o Direito Penal Econômico, diante de uma coordenação da atividade econômica nacional e transacional. É a identificação da desregulação ou desregulamentação como forma de um novo modelo de Estado, ao mesmo tempo a constatação de mudanças nas sociedades, nas cadeias produtivas, na ciência e na tecnologia, com atenção especial para o que se denomina de corpo empresarial globalizado que não se satisfazendo mais com sua posição nacional ou internacional, amplia sua atuação objetivando uma atividade econômica planetária.
A análise dessas categorias de bens jurídicos não pode ser produzida de modo desvinculado, qual fossem situações estanques, desplugadas de um macro-sistema político, ideológico, social e econômico determinante de um particular modelo de intervenção estatal através daquela que – na esfera do direito tradicional –, é a mais incisiva demonstração do poderio estatal sobre o indivíduo, a pena criminal. Ocorre que a criminalidade individual (na sujeição ativa e/ou passiva) é muito mais severamente reprimida do que a de índole econômica (na qual existe necessariamente uma sujeição passiva coletiva e uma despersonalização individual no pólo ativo), o que, por certo aponta para a existência dos grandes paradoxos do direito punitivo.
Devem ser outras as regras para determinação do princípio da legalidade pela maior profusão das leis penais em branco e da parcial ruptura da taxatividade de sua estrutura normativa. Outras também devem ser as regras no que tange ao estabelecimento da relação de causalidade, da tipicidade e da própria culpabilidade, com reflexos na participação e co-autoria delitiva. Igualmente, o sistema de penas exige profunda análise de amoldação dos meios às finalidades. As penas privativas de liberdade são absolutamente inadequadas como molde repressivo para a delinqüência econômica, mormente nos casos de reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Imperioso estabelecer um novo modelo sancionador.
Tal idéia pode representar um núcleo de critérios qualitativos, de maneira a provocar o ressurgimento da discussão envolvendo o Direito Penal e um Direito de mera ordenação social, discussão esta que sempre foi vista como tradição doutrinal de enormes subsídios para uma distinção definitiva. "Com o que nos afrontamos com o problema, já aflorado, da distinção entre o Direito Penal (Económico) e um Direito de mera ordenação social (Económico). Problema que tem vínculos históricos muito estreitos com este setor do direito, porquanto foi no domínio da legislação económica que o problema surgiu e tem sido (quase exclusivamente) no seu âmbito que ele se tem desenvolvido. Este problema da distinção entre um Direito Penal e um Direito de mera ordenação social assenta numa tradição doutrinal que tem acumulado contributos dirigidos à descoberta duma linha clara de distinção. Tais contributos situaram-se durante muito tempo na perspectiva duma diferença qualitativa entre os dois domínios. Perspectiva que tem as suas raízes nos esforços de GOLDSCHMIDT e WOLF e culminaram nos trabalhos de E. SCHMIDT. Falou-se, assim, dum direito que tinha a seu cargo uma função legitimista de proteção de interesses ou bens jurídicos essenciais; falou-se duma ordem da administração ao serviço do bem-estar público – contraposta a uma ordenação jurídico-material ao serviço da segurança duma esfera individual; falou-se dum ilícito eticamente indiferente – contraposto a um ilícito penal radicado na censurabilidade ética; falou-se ainda dum ilícito construído e positivo, sem fundamentação ética, contraposto a um ilícito preexistente e meramente reconhecido pelo legislador. Todas estas notas, de inequívoco valor tendencial, foram porém perdendo a capacidade como critério qualitativo separador de duas realidades essencialmente distintas. E hoje, assiste-se a uma certa tendência para abandonar ou esquecer esta distinção qualitativa (radicada na essência dos dois tipos de ilícitos) e trazer ao primeiro plano diferenças formais, processuais etc. (diferenças reveladas no direito positivo) que inequivocamente separam os dois ordenamentos. Aceita-se que se trata de dois regimes jurídicos profundamente diferentes, mas dá-se prevalência na sua distinção a critérios como as sanções, entidades competentes para a sua aplicação, formas processuais. O que significa reconhecer que a inclusão duma infracção num ou noutro dos domínios passa necessariamente pelo critério – e discricionariedade – do legislador. Aceita-se uma distinção de caráter qualitativo ou antes, formal, o que não pode esquecer-se é que o Direito de mera ordenação social é, na expressão de E. CORREIA, um aliud, uma coisa diferente do Direito Penal. Diferença que emerge em pontos fundamentais como a possibilidade de sancionamento das pessoas colectivas, o caráter específico do processo, o seu sistema de reacções, a natureza aberta de muitas de suas tipificações, as instâncias encarregadas da promoção processual e da decisão (...). Este abandono – não sabemos se definitivo –, dum critério qualitativo não colide, porém – como já acentuamos –, com o reconhecimento do Direito de mera ordenação social como uma realidade juridicamente diferente, com um conjunto significativo de especialidades em relação ao Direito Penal e com a recepção adaptada de algumas, das exigências fundamentais daquele direito – legalidade, culpa etc.".
O que não pode ser negado é que, assim como a separação prolatada entre a Constituição do Estado e o Direito Penal Clássico – durante épocas –, provocou o surgimento e a efetivação da arbitrariedade exercida pelo poder estatal através dos maus tratos, das penas cruéis, da tortura etc., a separação realizada entre a Constituição do Estado e o Direito Penal Econômico – fundamentalmente a partir do início do século XX até os dias atuais –, tem provocado a efetivação da impunidade e a manutenção do nepotismo, em que se constata uma vontade explicita, por parte da maioria dos integrantes do poder político, dos representantes do judiciário e dos estudiosos do Direito, em efetivar esta separação de maneira que se concretize em divórcio definitivo, para uma argumentação de inconstitucionalidade sempre acolhida. "Aliás, FERRI já apregoava menos justiça penal, mais justiça social. Trazido à nossa realidade, o aforismo ficaria melhor expresso nos seguintes termos: justiça penal para a grande criminalidade – a criminalidade econômica – justiça social para a criminalidade clássica – a criminalidade dos pobres. Portanto, não se pode olvidar que o ataque à ordem econômico-financeira, colocada, pela Constituição, nos seus artigos 170 e 192, a serviço da justiça social e dos interesses da coletividade, é causa de desajuste social (por sua vez causa da criminalidade enfurecida), obstáculo à consecução dos fins primordiais do Estado, registrados, através de normas-objetivo, no texto constitucional".
A propositura apresentada aqui é de natureza de transporte, uma transferência da teoria zafaroniana de uma resposta marginal. A finalidade objetivada com tal propositura é a sua realização em uma outra esfera, ou seja, uma resposta marginal econômica. Por se estar inserido no núcleo da marginalização do poder global econômico, para uma definição do Direito Penal Econômico, faz-se necessário uma resposta marginal econômica. "Evidentemente, em nossa região marginal não dispomos de ‘elites do pensamento’ pagas para elaborar respostas teóricas. Com a elaboração e a completitude lógica das respostas centrais, nossas respostas marginais sempre aparecerão como defeituosas. Como dependemos de referências teóricas centrais e de seus elementos, torna-se demasiadamente titânica a tentativa de criar algo semelhante a um marco teórico que permita uma aproximação da nossa realidade. Esta dependência nos obriga a lançar mão desses elementos, selecionando-os e combinando-os de acordo com algum critério que, em nosso caso, nos permita ‘ver’ os componentes teóricos – ou úteis –, necessários para hierarquizar e defender a vida humana e a dignidade do homem". Trata-se de uma necessidade inquestionável da formulação de um realismo marginal econômico, que não é de fácil construção, mas também, não é impossível.
A busca por uma definição do Direito Penal Econômico, não passa pela finalidade da realização de justiça, como sempre foi entendido no Direito Penal Clássico, e que já a partir da segunda metade do século XX fora abandonada. O próprio Direito Penal contemporâneo renunciou a busca pela justiça diante da constatação de um novo modelo social. A existência de um poder hegemônico global. As discussões acerca do poder/dever de punir – em matérias de biotecnologia; econômica; ambiental; consumidor; relações de trabalho; propriedade intelectual; concorrência: livre e desleal; formas de tráfico (órgãos, mulheres e crianças); sistemas de informação e transferência de dados; contra o Estado Democrático; crime organizado e transnacional etc. –, não reside no núcleo metafísico. A busca por um fundamento de punir no campo do Direito Penal Econômico tem de ser entendida como um imperativo social da continuidade da existência da humanidade.
Mesmo no campo do Direito Penal Clássico, numa visão contemporânea, antecipando-se ao seu tempo, já no século XIX – antes de qualquer um outro –, TOBIAS BARRETO formulara uma resposta marginal para o fundamento do ius puniendi, afirmando que o fundamento de punir não é filosófico, nem jurídico, mas político. Dissertando sobre o Fundamento do Direito de Punir, escreve o insigne representante da Escola do RECIFE, "há homens que têm o dom especial de tornar incompreensível as coisas mais simples deste mundo, e que ao conceito mais claro que se possa formar esta ou aquela ordem de fatos, sabem dar sempre uma feição pelo qual o axioma se converte de repente num enigma da esfinge. A esta classe pertencem os metafísicos do direito, que ainda na hora presente encontram não sei que delícia na discussão de problemas insolúveis, cujo manejo nem sequer tem a vantagem comum a todos os exercícios de equilibrística, isto é, a vantagem de se aprender a cair com certa graça. No meio de tais questões sem saída, parvamente suscitadas, e ainda mais parvamente resolvidas, ocupa lugar saliente a célebre questão da origem e fundamento de punir. É uma espécie de advinha, que os mestres crêem-se obrigados a propor aos discípulos, acabando por ficarem uns e outros no mesmo estado de perfeita ignorância, o que aliás não impede que os ilustrados doutores, na posse das soluções convencionadas, sintam-se tão felizes e orgulhosos, como os padres do Egito a respeito dos seus hieróglifos. Eu não sou um daqueles, é bom notar, não sou um daqueles, que julgam fazer ato de adiantada cultura científica, elidindo e pondo de parte todas as questões de caráter másculo e sério, sob o pretexto de serem outras tantas bolhas de sabão teoréticas, outros tantos quadros de fantasmagoria metafísica. É preciso não confundir a impossbilidade de uma solução com a incapacidade de leva-la a efeito. A metafísica não é, por si só, um motivo suficiente de menosprezo ou de indiferença para com certos assuntos (...). O direito de punir é um conceito científico, isto é, uma fórmula, uma espécie de notação algébrica, por meio da qual a ciência designa o fato geral e quase quotidiano da imposição de penas aos criminosos, aos que perturbam e ofendem, por seus atos, a ordem social (...). A indagação da origem do direito de punir é um fenômeno sintomático, de natureza idêntica ao da velha pesquisa psicológica da origem das idéias. E, coisa singular, estas duas manias tornaram-se epidêmicas numa mesma época, em tempos doentios de ilusões e divagações metafísicas (...). O direito de punir, como em geral todo o direito, como todo e qualquer fenômeno da ordem física ou moral, deve ter um princípio; mas é um princípio histórico, isto é, um primeiro momento na série evolucional do sentimento que se transforma em idéia, e do fato que se transforma em direito. Porém essa base histórica ou antes pré-histórica, considerada em si mesma, explica tampouco o estado atual do instituto da pena, como o embrião explica o homem, como a semente a árvore (...). Os criminalistas que ainda se julgam obrigados a fazer exposição dos diversos engendrados para explicar o direito de punir, o fundamento jurídico e o fim racional da pena, cometem um erro, quando na frente da série colocam a vindita. Porquanto a vindita não é um sistema; não é, como a defesa direta ou indireta, e as demais fórmulas explicativas ideadas pelas teorias absolutas, relativas e mistas, um modo de conceber e julgar de acordo com esta ou aquela doutrina abstrata, o instituto da pena; a vindita é a pena mesma, considerada em sua origem de fato, em sua gênese histórica, desde os primeiros esboços de organização social, baseada na comunhão de sangue e na comunhão de paz, que naturalmente se deram logo depois do primeiro albor da consciência humana, logo depois que o pithecanthropo falou... et homo factus est (...). A combinação binária da justiça moral com a justiça social, que se costuma dar como uma solução satisfatória do problema da penalidade, eu deixo aos metaquímicos do direito, que conhecem perfeitamente a natureza daqueles dois sais e as proporções exatas, em que eles devem ser combinados, a tarefa de explicá-la e demonstra-la perante os seus discípulos, dignos de melhores mestres (...). O conceito da pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político. Este ponto é capital. O defeito das teorias correntes em tal matéria consiste justamente no erro de considerar a pena como uma conseqüência de direito, logicamente fundada; erro que é especulado por um certo humanitarismo sentimental, a fim de livrar o malfeitor do castigo merecido ou pelo menos torna-lo mais brando. Como conseqüência lógica do direito, a pena pressupõe a imputabilidade absoluta, que entretanto nunca existiu, que não existirá jamais. O sentimentalismo volve-se contra este lado fraco da doutrina, combatendo a imputabilidade em todo e qualquer grau. Para isso lança mão de razões, psiquiátricas, históricas, pedagógicas, sociais e estatísticas; e todas estas razões é força confessar, são de uma perfeita exatidão. Mas isto na hipótese da pena regulada pela medida do direito, o que é de todo inadmissível, porque é de todo inexeqüível (...). Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra. Que a pena, considerada em si mesma, nada tem que ver com a idéia do direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que há mais alheio à vida jurídica. Em resumo, todo o direito penal positivo atravessa regularmente os seguintes estádios: primeiro, domina o princípio da vindicta privada, a cujo lado também se faz valer, conforme o caráter nacional, ou etnológico, a expiação religiosa; depois, como fase transitória, aparece a compositio, a acomodação daquela vingança por meio da multa pecuniária; e logo após um sistema de direito penal público e privado; finalmente, vem o domínio do direito social de punir, estabelece-se a princípio da punição pública (...). E ao concluir, para ir logo de encontro a qualquer censura, observarei que de propósito deixei de lado a questão do melhoramento e correção do criminoso por meio da pena, porque isto pertence à questão metafísica da finalidade penal, que é ociosa, além do mais, pela razão bem simples de que a sociedade, como organização do direito, não compartilha com a Escola e com a Igreja da difícil tarefa de corrigir e melhorar o homem moral. Aqui termino; o que deixo escrito é bastante para dar a conhecer o meu modo de pensar em tal assunto".
A discussão em que está envolvido o poder/dever de punir na esfera – de biotecnologia; econômica; ambiental; consumidor; relações de trabalho; propriedade: intelectual e industrial; concorrência: livre e desleal; formas de tráfico (órgãos, mulheres e crianças); sistemas de informação e transferência de dados; contra o Estado Democrático; crime organizado e transnacional etc. –, da nova criminalidade, discussão esta pautada na busca por uma definição determinada, infalível, uma fórmula matemática, para o exercício do ius puniendi, é o desejo mais profundo dos teoréticos positivistas, em revelar à humanidade (com um grau de certeza incontestável) quem é o pai de Deus. A definição do Direito Penal Econômico para o exercício do ius puniendi, com base nas determinações da Constituição do Estado – Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira; e, Título VIII – Da Ordem Social –, no atual momento da história da humanidade, o direito que a nação/sociedade exerce com a sua punição quer significar, justamente, o exercício do direito de legítima defesa.