Resumo: Este artigo tem como objetivo ponderar sobre a necessária separação do Estado de conceitos religiosos e de fé. O Estado, como detentor dos poderes de controle e administração de uma nação, deve se manter aparte das convicções religiosas do seu povo, promovendo o respeito e a tolerância entre os seus cidadãos. O Estado ateu, ao contrário do Estado laico, é uma variação de um “Estado teocrático” ainda que caminhe no sentido da descrença de um ser superior. As perseguições mantidas pelo governo da Coréia do Norte e seu intenso controle das religiões presentes em seu território, demonstram que a separação da consciência individual do controle do Estado, defendida por John Locke, ainda precisa ser efetivada nos dias atuais.
Palavras-chaves: Liberdade Religiosa; Ateísmo de Estado; Direitos Humanos.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Ateísmo de Estado do Sistema Comunista; 2.1. A Ideologia Juche e a Perseguição Religiosa na Coreia do Norte; 3. A Liberdade Religiosa como Direito do Homem; 4. Conclusão; Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
Desde os primórdios das civilizações, os homens procuram buscar razões e explicar os fatos vistos como superiores ao seu controle, atribuindo estes fatos à seres divinos com poderes mais elevados que o de um ser humano comum. Com a sedimentação das sociedades e a necessidade do homem de dominar e conquistar novos territórios nasce a religião, que passou a ser um modo de supremacia de um determinado povo sobre o outro conquistado, em uma verdadeira batalha de deuses.O deus mais forte e poderoso, comandante de um determinado povo, subjuga todas as outras nações e seus respectivos deuses, à sua vontade. Manuel Bancaleiro (2005) afirma que “a causa do surgimento da religião está inequivocamente ligada, desde o seu inicio à exploração do Homem pelo Homem”.
Com o surgimento do conceito de Estado e das problemáticas sociais, decorrentes da sua ligação com a religião ao longo dos séculos, inclusive o preconceito e intolerância da crença oficial sobre as outras minoritárias, a laicidade do Estado passou a ser fortemente defendida e requerida nos meados do século XVIII.
O Estado laico, onde o poder do Estado é oficialmente imparcial em relação às questões religiosas, não se apoia ou se opõe a nenhuma religião ou descrença religiosa, mas entende ser, a neutralidade religiosa de um Estado, a base essencial para a segurança da liberdade de opção religiosa individual. Se um país não é laico, ele é teocrático ou confissional, no mesmo sentido ele poderá ser ateu, impondo concepções de crença ou de descrença aos seus cidadãos.
É importante afirmar que, o Ateísmo de Estado surgiu juntamente com a teoria de Karl Marx(1834) de que as classes sociais dominantes inculcam nas massas, convicções religiosas de um paraíso post mortem, para assim manter-se no poder e gerar um sentimento de conformação com a subjugação que vivem. Desta forma, far-se-ia necessário a sua completa eliminação, para que assim o homem pudesse viver sem ilusões.
Entretanto, o conceito de liberdade religiosa, adotado após a Segunda Guerra Mundial, na Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, comporta a teoria politica de governo de Karl Marx, que prega a abolição, pelo Estado, das faculdades religiosas de um povo? Esta é a questão que se propõe resolver neste trabalho.
2. O ATEÍSMO DE ESTADO DO SISTEMA COMUNISTA
Karl Marx, propulsor do sistema político e econômico socialista/comunista, afirmava que a luta de classes era responsável pela nossa realidade social. Essa luta de classes era evidenciada não somente no contexto econômico, mas também no social em todos os seus aspectos. Marx, como já dito anteriormente, acreditava ser a religião, um dos meios mais efetivos, utilizado pelas classes dominantes, para manter as massas em um regime de abnegação e sujeição às circunstâncias sociais indignas, com a promessa de posterior recompensa divina post mortem.
Em sua obra “Critica da Filosofia do direito de Hegel” de 1844, Marx afirma ser a religião o “ópio do povo” e que esta deveria ser abolida, sendo este, o adágio maior da ideologia marxista sobre a crença na existência de um poder superior, do qual depende o destino do ser humano e ao qual se deve respeito e obediência[1].
“A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola.” (Marx, Karl. 1844)
A política de ateísmo de Estado fora imposta por todos os países que implantaram o regime socialista-comunista no mundo, entre eles, a URSS, a China, o Camboja e a Coreia do norte. A URSS utilizou-se de maciços recursos estatais não só para evitar e suprimir a implantação de crenças religiosas, mas também para alavancar o número de não-crentes e erradicar os restos “pré-revolucionários” existentes. David Kowalewski (1980) assegura:
“The regime is not merely passively committed to a godless polity but takes an aggressive stance of official forced atheization. Thus a major task of the police apparatus is the persecution of forms of religious practice. Not surprisingly, the Committee for State Security (KGB) is reported to have a division dealing specifically with “churchmen ad sectarians”.
A Coreia do Norte, seguindo os passos do maior exemplo de Estado socialista da história da humanidade, promoveu a completa eliminação da religião e sua substituição pelo ateísmo universal. Apesar da Constituição Socialista da Coreia do Norte dispor em seu artigo 68 que os cidadãos têm a liberdade de crenças religiosas, isso não se traduz na verdade vivenciada pelos milhares de norte-coreanos no país.
2.1. A IDEOLOGIA JUCHE E A PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA NA COREIA DO NORTE
A perseguição promovida pelo Estado Norte-coreano como em outros sistemas comunistas implantados, busca firmemente o controle, repressão e eliminação da religião. Em contrapartida, o estabelecimento pelo governo da ideologia Juche ou Kimilsugnismo, equivalente ao marxismo-leninismo ocidental, propõe não só autossuficiência humana e a independência de seres superiores, como também a adoração aos líderes, à família Kim, como verdadeiros deuses.
Esta é a representação de um verdadeiro contrassenso. Como é possível ao regime comunista norte-coreano apregoar o ateísmo, a descrença a um ser superior do homem, tendo como base a ideia de ser a religião uma forma de dominação do “homem pelo homem”, e ao mesmo tempo, obrigá-los à adoração a um ser humano, que controla a este mesmo Estado Comunista? Entretanto, esta é a realidade existente no país.
Em entrevista a norte-coreana Yeonmi Park, que fugiu da Coreia do Norte aos 13 anos de idade, relata como a ideologia Juche fez os cidadãos norte-coreanos acreditarem que o seu líder político era na verdade um deus encarnado.
“Quando (o líder norte-coreano) Kim Jong-il morreu (em 2011), eu morava na Coreia do Sul com minha mãe e não conseguíamos acreditar. Minha mãe disse: 'como pode ser que Deus morreu?' E vivíamos na Coreia do Sul!Na Coreia do Norte não acreditam que ele tenha morrido. Estão certos que seu espírito vive entre nós, como Jesus, e que ele lê mentes e sabe tudo o que fazemos, como no filme O Show de Truman." (BBC Brasil. 2016)
O Juche é a religião politica da Coreia do Norte que mescla o stallianismo, o maoísmo e o nacionalismo, com a adoração a Kim II Sung e ao secretario Kim Jong II e tem, atualmente, ganhado seguidores e espaço nas universidades para apresentação das suas ideias como “la fuente de vida que revigoriza el espíritu de todos los pueblos, de cualquier parte del mundo, son consideradas por la humanidad como la verdad de la verdad". [2]
A Coreia do Norte é um exemplo claro de um país governado por paranoia ditatorial. Por causa deste culto à família Kim, não há espaço para qualquer outra religião, e ninguém tem autorização de desafiar ou questionar isso. Servir a outro Deus senão aos líderes da dinastia Kim é visto como traição e ameaça ao Estado.
Para os norte-coreanos, expressar a sua fé em outras crenças que não seja a ideologia do Estado é altamente perigoso. Seus livros e materiais sagrados devem ser cuidadosamente escondidos e tentar reunir-se com outros para culto é um grande risco, assim como falar sobre a sua fé com outras pessoas. Tudo isso porque caso tenham a sua fé em um ser divino descoberta, os cidadãos norte-coreanos correm o risco de perder os seus poucos bens, serem interrogados, levados para longe de suas famílias e enfrentar anos de miséria nos campos de trabalhos forçados. Nessas circunstâncias, se envolver em atividade religiosa clandestina pode ter como consequências drásticas como a discriminação, prisão, desaparecimento, tortura e execução pública.
Segundo informações do “Open Doors”, agência internacional de ajuda a cristãos perseguidos no mundo, a Coreia do Norte é o país com o mais alto de nível de perseguição religiosa no planeta, estando em primeiro lugar na classificação de países de maior intolerância religiosa por 14 anos consecutivos. Estima-se que hoje 50 a 70 mil cristãos estão presos em campos de trabalhos forçados no país.
Os olhos do mundo voltaram-se para o país e para as violações cometidas pelo governo norte-coreano, após a prisão do norte-americano Jeffrey Fowle em 2014, quando o mesmo esqueceu uma bíblia em um hotel na cidade de Chongjin.
Escondendo-se em uma postura de autoexílio, o país tem escapado ileso de graves crimes contra a humanidade. O governo promove a existência de alguns grupos religiosos para criar a ilusão de liberdade religiosa, mas a realidade vivenciada pelos crédulos é totalmente diferente das mostradas pelo governo às entidades internacionais.
3. A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO DO HOMEM
A Organização das Nações Unidas (ONU) em seu artigo 18, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral na Resolução 217ª, de 10 de dezembro de 1948, proclama:
“Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”.
O desprezo aos direitos do homem conduziu a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem, como disposto no preambulo da CIDH e deve ser defendido por todas as nações da terra.
A laicidade de um Estado traduz a busca da liberdade religiosa mundial, é o estado leigo, do povo, neutro. As crenças de um indivíduo, assim como a de um povo, traduzem a essência daquilo que o faz ser quem é. A imposição, pelo Estado, de qualquer tipo de religião ou ideologia viola a dignidade da pessoa humana.
A liberdade religiosa abrange não só a liberdade de crença, como também a liberdade de culto e de organização religiosa, bem como os seus desdobramentos como o direito ao ateísmo, a prestação de assistência religiosa, a proibição do Estado de interferir na religião e vice-versa, a liberdade de escolha, bem como de mudança de religião, entre outros.
A repressão da religião é um verdadeiro tiro que sai pela culatra, e isso é possível verificar nas consequências das ações promovidas pela URSS. Em seis décadas de regime, o mesmo provou ser mal sucedido em cortar as massas de cidadãos soviéticos de suas identidades religiosas. Na verdade, não só grande número manteve o seu apego à religião, mas em sua última década houve um renascimento do interesse na religião, o que supreendera o regime, observadores estrangeiros, e crentes.
A Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas em religião ou crença (ONU, 1981) assegura em seu artigo primeiro: "Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer crença de sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto em público quanto em particular" e adverte:
"A discriminação entre seres humanos por motivos de religião ou crença constitui uma ofensa à dignidade humana (...) e deve ser condenada como uma violação dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos."
A violação dos direitos humanos e das liberdades individuais, dentre estas a violação da liberdade de pensamento, de consciência, de religião é responsável, direta ou indiretamente por gerar conflitos e guerras instigando o ódio entre povos e nações e trazendo inúmeros sofrimentos à humanidade.
4. CONCLUSÃO
A religião ainda é um dos propulsores de guerra no mundo, mas a sua exterminação por meio da imposição do ateísmo de Estado não modifica em nada esta condição, pelo contrario, só torna pior esta situação. É possível verificar, através da análise histórica que ao invés de trazer paz ao mundo, a supressão de direitos individuais de crença e de liberdade de pensamento religioso somente trouxe malefícios aos Estados comunistas.
O Estado, entendido como entidade com poder soberano para governar um povo, dentro de um determinado território, deve protegê-lo, inclusive dos desmandes e abusos deste mesmo governo. Assumir a máxima de trabalhar para o bem comum do povo, não importando qual seja o regime político-econômico em que esteja inserido, é assumir também que a interferência do Estado deve se limitar a esfera social do cidadão, onde ele se encontra com outros cidadãos e com o bem público comum a todos. A invasão à consciência pessoal do indivíduo pelo seu Estado configura um abuso à dignidade da pessoa humana, já preceituada nas Cartas e Declarações dos Direitos dos Homens, e estabelecida na Organização das Nações Unidas. Entender que, os delírios ditatoriais de um governo não devem sobrepor aos direitos humanos deve ser o axioma que governa toda a comunidade internacional.
A separação da religião do Estado, decorrente de uma árdua luta dos antigos filósofos políticos, não pode descambar em uma nova escravidão e uso da máquina estatal para manipulação das massas, dessa vez da crença à descrença.
A neutralização do Estado e a sua laicidade é um objetivo que deve ser buscado por todos os países do globo, entendendo que, ainda que professem uma fé, seja ela na crença ou na descrença, pois é racionalmente impossível que todos se “ocidentalizem”, a liberdade religiosa deve ser uma realidade mundial.
BIBLIOGRAFIA
Bancaleiro, Manuel. (2005). O Surgimento da Religião. Recuperado em 23/04/2016, de http://manuel-bancaleiro.blogspot.com.br/2005/11/o-surgimento-da-religio.html
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Marx, Karl. (1844). Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
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Pires, Mauricio. (2015). A Religião e o Estado Laico. JusBrasil. Recuperado em 23/04/2016, de http://mauriciopiresadvogado.jusbrasil.com.br/artigos/167709988/a-religiao-e-o-estado-laico
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[1] Conceito de Religião segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2015.
[2] JM. (2010). El "kimilsunismo": la religión política de Corea del Norte. Cartagena, Espanã. Recuperado em 25/04/2016 de http://seminariodepoliticasocial.blogspot.com.br/2010/11/el-kimilsunismo-la-religion-politica-de.html