Na edição do dia 24 de abril do jornal Folha de São Paulo, o Procurador-Geral da República escreveu um artigo cujo título é "A razão, o STF e o senso comum".
O ensaio trata da decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº. 126.292. Como se sabe, no dia 17 de fevereiro, ao julgar o Habeas Corpus nº. 126292, sete dos onze Ministros do Supremo Tribunal Federal entraram (mal) para a história do Direito brasileiro. Todos sabem o que foi ali decidido e quais foram os sete Ministros que votaram pela modificação da jurisprudência do Tribunal que, desde 2009, no julgamento da Habeas Corpus nº. 84078, condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação. Até então, o Supremo Tribunal Federal entendia que a presunção da inocência não impedia a execução de pena confirmada em segunda instância. Houve um absurdo retrocesso, portanto.
O relator do processo, ao votar, afirmou que a "manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena." Para ele, "até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito."
Também respaldou-se no Direito Comparado, para afirmar que não há “país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”. Esqueceu (?), porém, de dizer que as Constituições dos Países cujas legislações foram consultadas não tratam os recursos constitucionais como a nossa, quando tratam. A Constituição da República Federativa do Brasil é diferente. Ponto. Se não serve, muda-se (como propôs o Ministro César Peluso, ao defender a Proposta de Emenda à Constituição 15/2011 que estabelecia os recursos constitucionais como verdadeiras ações rescisórias). Mas quem pode fazê-lo não é o Supremo Tribunal Federal, pois não tem legitimidade popular para isso. No máximo, pode interpretá-la. E interpretar não é rascunhá-la, aditá-la, borrá-la. Isso é de uma desonestidade funcional absurda e inadmissível.
Agora temos uma verdadeira execução provisória da pena ou, se quisermos dar outro nome, uma prisão provisória automática decorrente do acórdão condenatório. Óbvio que não é possível (ou não era). E se o acusado vier a ser absolvido no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal? Se, por exemplo, no Recurso Especial ou no Recurso Extraordinário interposto contra o acórdão condenatório for reconhecida uma nulidade e, posteriormente, vier a ser prolatada no Juízo a quo uma sentença extintiva da punibilidade pela prescrição? Quem irá remediar o “mal” causado pela prisão (verdadeira pena antecipada) já cumprida?
Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois ainda não condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal.
Assim, uma prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade. Neste sentido, o art. 387, parágrafo único, do Código de Processo Penal. Se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento provisório. A prisão somente será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que for cabível a prisão cautelar, medida excepcional.
Descurou-se o Supremo Tribunal Federal, inclusive, da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pelo menos em dois casos: Herrara Ulloa versus Costa Rica (2004) e Mohamed versus Argentina (2012).
É muito possível, inclusive em razão de algumas colocações feitas pelos Ministros, que a decisão da Suprema Corte tenha sido bastante influenciada por um receio de desagradar a opinião pública e a imprensa. Aliás, neste ponto, as transmissões ao vivo das sessões da Corte estão prestando um desserviço à Justiça, pois, ao contrário do que deveria servir (à publicidade absoluta dos julgamentos), está sendo utilizado como verdadeiro palco para aulas dos Ministros, alguns sem capacidade para ensinar nada! Basta observarmos a leitura dos cansativos votos, três, quatro horas de blá-blá-blá. Às vezes, matéria já decidida pela maioria, como foi o caso do Ministro Gilmar Mendes quando, séculos depois, trouxe o voto-vista (panfletário) relativo ao financiamento privado de campanhas políticas.
Também não foi apenas desta vez que a Suprema Corte mudou radicalmente a sua jurisprudência como em um passe de mágica. Enquanto outras Cortes Constitucionais levam décadas com o mesmo entendimento (mesmo mudando a sua composição e em respeito à própria Instituição), aqui troca-se de entendimento com uma enorme facilidade, conforme seja do agrado da sociedade, muita vez. Ora, mas não é um ônus de uma Corte Constitucional ser contramajoritária? Ademais, como ouvir a maioria, se esta não tem conhecimento técnico a respeito da matéria. Quem tem, ou deveria tê-lo, são os Ministros. Mas, não sendo contramajoritários (por falta de coragem), eles usam a sua prerrogativa constitucional de intérpretes da Constituição contra a própria Democracia. Uma lástima.
Pois bem.
Voltando ao artigo publicado na Folha de São Paulo, disse o chefe do Ministério Público da União que esta questão jurídica está ligada "intimamente ao fenômeno da impunidade", o que foi o primeiro grande equívoco do articulado. Se o Brasil fosse, efetivamente, o País da impunidade não teríamos esta enormidade de presos. Falar em impunidade no Brasil é de uma ignorância inconcebível! Só um burocrata poderia fazê-lo.
O Procurador-Geral da República procura justificar a decisão do Supremo Tribunal Federal, de forma falaciosa (falácia aqui usada no sentido em que os escolásticos aplicaram ao "silogismo sofista" de Aristóteles), ressaltando, "a importância do recurso extraordinário para o "status libertatis" dos réus condenados em instâncias ordinárias. Ou seja, percentualmente falando, quantos recursos julgados pelo STF alteram a condição do condenado?"
Para isso, ele solicitou um "levantamento dos recursos extraordinários, em matéria penal, julgados pelo STF entre 2009, ano em que o tribunal decidiu não ser possível a execução provisória da pena, e 2016", como o "objetivo de saber quantos foram providos e, desses, quantos afetaram o "status libertatis" dos réus."
Após indicar uma série de números, ele próprio admite que "muitos dirão que esses números são irrelevantes para o debate jurídico, pois se a Constituição não permite o início de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado definitivo, não será com o argumento estatístico que se vai alterar essa regra." Portanto, ele próprio respondeu aos seus números.
Aliás, não me venham com estatísticas de quantos recursos são providos nos tribunais superiores, pois para estas tenho tantas outras. Ademais, muitas decisões erradas dos tribunais são modificadas ou anuladas por outros meios, não recursais. E, ainda que tal argumento não fosse falacioso, bastava um só recurso provido que já não se justificaria a decisão.
Disse Dr. Rodrigo Janot, com raro acerto, que "as estatísticas não mudam a Constituição". Porém, ao contrário do que ele escreveu, o princípio da presunção de inocência impede o cumprimento provisório da pena. Se, como afirmou o articulista, "existem prisões antes do trânsito em julgado que são constitucionais", estas devem ser sempre justificadas (do ponto de vista de sua necessidade), nunca automáticas.
Afirma Dr. Janot, quase inacreditavelmente, que "as pessoas comuns compreenderam a importância social da decisão, suas implicações práticas e, principalmente, sua relação com o estado de impunidade que impera." Ora, então, voltemos à guilhotina ou à fogueira. Certamente as pessoas comuns vão compreender a "importância social" da pena de morte. Basta uma pesquisa de opinião. Uma estatística. Números!
Olhe a afirmação seguinte: "Ao trazer esses números à luz, a intenção é demonstrar que, dessa vez, não só o direito como também as estatísticas estão ao lado do senso comum." Ah, o senso comum, que perigo Dr. Janot! O senso comum levou tantos à fogueira e às câmaras de gás. Devemos sempre repudiar o senso comum. Ao contrário do que o senhor escreveu, nem sempre a "Suprema Corte e a opinião pública estão absolutamente certas."
Também muito pelo contrário do que o senhor pensa, meu caro colega do Ministério Público, "apostar na chicana" é rasgar a Constituição Federal, o que jamais poderia ser feito pelo chefe do Ministério Público da União. Lamentável o seu artigo.