Multipropriedade imobiliária

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O presente trabalho trata da multipropriedade, também chamada de time sharing, e suas peculiaridades no ordenamento jurídico brasileiro.

RESUMO: Um dos principais campos do Direito Civil, com certeza, são os direitos reais. Os direitos reais outorgam ao sujeito a real condição de dono legítimo da coisa, portanto, dando maior segurança e protegendo o patrimônio de cada um. Com o passar do tempo, surgem novos institutos, os quais devem ser analisados minuciosamente pelo Direito, mantendo, portanto, paz e ordem social. Nesta toada é que se apresenta a multipropriedade imobiliária, ou time sharing, condição dada àquela coisa que possui múltiplos donos legítimos. Nesse ínterim, o presente trabalho vem levantar alguns pontos relevantes deste novo instrumento da sociedade, que ainda não possui regulamentação pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Multipropriedade Imobiliária. Time Sharing. Condomínio.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Antes de adentrarmos no assunto específico deste artigo, qual seja, a multipropriedade imobiliária, é de extrema importância fazermos uma análise geral e histórica do desenvolvimento da propriedade no decorrer dos séculos até se chegar à conotação jurídica que tem hoje.

A propriedade está inerente à condição de vida humana desde o princípio da sociedade: o uso, o gozo e a disposição das coisas são perceptíveis nas civilizações primitivas. Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa: “Antes da época romana, nas sociedades primitivas, somente existia propriedade para as coisas móveis, exclusivamente para objetos de uso pessoal, tais como peças de vestuário, utensílios de caça e pesca”. O autor ainda menciona que a propriedade do solo era de toda a coletividade e isso se dava pelas condições sociais dos povos de então que viviam em tribos.

Com o passar do tempo, a propriedade foi ganhando mais importância, a ponto de ser um dos ideais preconizados pela classe burguesa à época do liberalismo e ganhar o status de direito natural nas ideias de John Locke (Locke dizia que todos os homens, ao nascer, tinham direitos naturais - direito à vida, à liberdade e à propriedade). Nessa fase, em que a burguesia, que estava se tornando uma classe cada vez mais forte, viu a necessidade de se opor à arbitrariedade do sistema feudal que era contrário ao livre desenvolvimento da economia. Desse modo, o liberalismo buscava a limitação do poder do Estado em prol dos direitos individuais, com a participação social ativa. As ideologias de John Locke no que tange à propriedade foram de extrema importância para essa corrente:

Segundo Locke, um dos fundadores do pensamento liberal, a falta de recursos para a sobrevivência seria a mais importante questão que colocaria em risco a convivência harmônica entre os homens. A sobrevivência, sendo uma questão primordial na relação do homem e o mundo exterior, seria possível na medida em que o trabalho proporcionasse o seu sustento. Assim, no momento em que o homem adquirisse algo por meio do trabalho, as riquezas trazidas alcançadas pelo seu esforço seriam de sua propriedade.

Estendendo essas concepções para o campo econômico, o pensamento liberal, principalmente em Adam Smith, pregou uma idéia de que a conservação das liberdades é primordial para o bom funcionamento da economia. Assim, a livre concorrência de mercado, a quebra dos monopólios e o fim das áreas de exploração colonial seriam pontos importantes para o desenvolvimento saudável da economia.

Atualmente, foi atribuído à propriedade o requisito de atender à função social do Estado. Isso se deu devido às políticas de socialização que aconteceram por volta do século XX, em que com o declínio do sistema liberal, visto ao exagerado individualismo desse sistema, gerando grandes desigualdades sociais, se viu a necessidade da intervenção estatal em favor dos menos favorecidos frente a classe capitalista dominante.


2. O DIREITO DE PROPRIEDADE – PROPRIEDADE CONVENCIONAL

No campo do direito real, a pessoa tem sobre o bem algumas prerrogativas que dão segurança jurídica nas relações negociais como o direito de sequela, o seu caráter absoluto (erga omnes), a determinação do objeto, a vinculação à coisa, diferentemente do que ocorre no campo obrigacional.

O Código Civil de 2002 dispõe em seu art. 1225 a lista taxativa dos direitos reais, e em seu inciso I está a propriedade. Em tópico anterior, dispomos sobre a importância do instituto da propriedade durante as fases político/sociais da história. Desse modo, no presente tópico falaremos do conceito de direito de propriedade previsto no Código Civil.

O artigo 1228 do Código Civil disciplina que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha. Dessa forma são direitos do proprietário o uso, o gozo e a disposição da propriedade. Nos ensinamentos de Sílvio de Salvo Venosa, usar é colocar a coisa a serviço do titular sem alterar-lhe a substância. Gozar do bem significa extrair dele benefícios e vantagens. A faculdade de dispor envolve o poder de consumir o bem, alterar-lhe sua substância, aliená-lo ou gravá-lo.

A aquisição da propriedade imóvel se dá por usucapião, por acessão e por registro de título, enquanto que a propriedade móvel se dá também por usucapião, ocupação, achado do tesouro, tradição, por especificação e por confusão, comissão e adjunção. A perda da propriedade por sua vez se dá por alienação, renúncia, abandono, perecimento do objeto, desapropriação.

Muito ainda poderíamos discorrer sobre o direito de propriedade, porém optamos por mencioná-lo em linhas gerais, por não ser objeto específico do presente trabalho, apesar de essencial importância para este.


3. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA: CONCEITO

O conceito tradicional de propriedade vem deixando de ser o único existente na sociedade. A evolução social, e até mesmo o crescimento populacional e habitação dos centros urbanos, faz com que novas formas de direito e convivência surjam. E neste ponto é preciso que o Direito se molde às reais necessidades da população. Neste viés surge a multipropriedade imobiliária, instituto este, que indica uma única propriedade sob o domínio de vários proprietários.

Nas palavras de Gustavo Tepedino, "o termo multipropriedade designa-se, genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua".

No mesmo sentido, Maria Helena Diniz, conceitua:

O sistema time sharing ou multipropriedade imobiliária é uma espécie condominial relativa aos locais de prazer, pela qual há um aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento), repartido, como ensina Gustavo Tepedino, em unidades fixas de tempo, assegurando a cada co-titular o seu uso exclusivo e perpétuo durante certo período anual.

A fração ideal do imóvel não é dada de acordo com proporção do solo que cada um ocupa, como num condomínio tradicional, mas sim em função do tempo. Isso significa que cada proprietário tem legitimidade para exercer os atributos de real proprietário, de forma plena, porém, em uma fração de tempo, ajustada no ato da compra.

O instituto da multipropriedade também é conhecido no meio jurídico como sistema time sharing, ou tempo compartilhado, haja vista que periodicamente, os proprietários se revezam na posse do bem, que por sua vez é plena. Imagine que uma casa de praia é comprada por 12 pessoas na modalidade time sharing. Cada comprador poderá exercer seu poder de proprietário, durante um dos meses do ano, por exemplo, se assim for ajustado.

Sob tal ótica, percebe-se que durante a fração de tempo, que um dos proprietários está fruindo de tal bem, ele é o responsável pelas obrigações, proteção, zelo, etc., sobretudo porque, todo o imóvel é de uso comum dos demais co-proprietários. Apenas não há simultaneidade no uso, contudo, muito próximo a ideia condomínio.


4. COMPARAÇÃO DA MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA COM O CONDOMÍNIO

O instituto da multipropriedade se afasta um pouco dos conceitos clássicos que conhecemos de propriedade. Quanto ao condomínio, diferencia-se deste justamente na questão de tempo. Isso significa dizer que no condomínio temos vários proprietários usando, gozando, e dispondo de sua fração territorial, geralmente em m², ao mesmo tempo, simultaneamente, ao passo que na multipropriedade, o direito de propriedade será exercido exclusivamente pelo proprietário em uma fração de tempo, de forma plena.

Condomínio se dá quando à mesma coisa tem vários proprietários em sua posse de maneira concomitante. A cada um dos proprietários é atribuído direito igual, e ideal sobre a coisa (quota ideal), e não a fração material e, portanto se tem direito da mesma qualidade e igualdade sobre o bem, ou a titularidade em comum sobre o bem.

Desse modo, mesmo que se discuta acerca de natureza jurídica da multipropriedade sob a ótica de direitos reais em contraponto com a relação jurídica é fato sua existência e não podendo, portanto, ser negada.

A falta de regularização acerca da multipropriedade gera conflitos e abre precedente para descaracterização do instituto. Sem a exigibilidade de adquirir a propriedade de forma plena e exclusiva, mas mantendo a condição de perpetuidade, possibilitando, por óbvio, economia de gastos e maior satisfação da função social da propriedade.

Acaso definido como contratos, esses não podem ser comparados com locação e nem com comodato, pois na multipropriedade, o proprietário utiliza-se de turnos e tempos, o que não ocorre com os institutos acima citados.

É importante dizer que o conceito de propriedade vem se modificando em virtude das necessidades e da evolução sociológica temporal, conforme anteriormente relatado.

Para que a multipropriedade imobiliária seja reconhecida de maneira independente, é preciso o reconhecimento da sua finalidade e utilidade, como mais uma forma de aquisição de propriedade. Embora o atual Código Civil regule taxativamente os direitos reais em seu art. 1.225, segundo a ideia de Márcio Ricardo Staffen e Paulo de Tarso Brandão:

Não se pode perder de vista que, embora não previstos a propriedade resolúvel e a propriedade fiduciária são considerados abertamente direitos reais.

Nota-se que o instituto em epígrafe, se utilizado para fins turísticos, é bem interessante, como é regulado em outros países, como França, Itália, Áustria, Inglaterra, Portugal, Espanha e Estados Unidos.

Vendo a necessidade de regulamentação, em virtude de sua crescente exploração, que como dito pra fins de recreação e turismo, não pode se pautar somente em doutrinas, mesmo com ordenamento atual e seus múltiplos institutos não se apresentam suficientes, em virtude das particularidades do tema.

Nas palavras de Staffen e Brandão:

O conjunto de consequências jurídicas decorrentes da instituição de multipropriedades reclama medidas legais específicas à matéria. (...). Há que se construir um tratamento específico à responsabilidade civil, administrativa e tributária dos multiproprietários. De igual forma para os reflexos produzidos com a abertura da sucessão e demais causas relativas à personalidade de um dos proprietários.

Desta forma, o viés da imutabilidade deve vir a ser reconsiderado. Para se adequar as necessidades da sociedade e do direito de regular o conteúdo de relevante importância. Até que haja regulamentação específica, percebe-se que o instituto do condomínio, pode ser aplicado, analogicamente, a este instituto, com ressalva da característica de simultaneidade, não contemplada pelo instituto.

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5. REGISTRO CIVIL DA MULTIPROPRIEDAE E SEUS ATRIBUTOS

Conforme relatado anteriormente, o regime jurídico presente no Código Civil de 2002, que melhor se coaduna com o instituto da multipropriedade, que ainda não tem previsão legal em nosso ordenamento, é o condomínio. Nesse aspecto Sílvio Venosa entende que a multipropriedade “na situação material, na realidade, apresenta-se como condomínio especial, no qual os condôminos dividem, isto é, compartilham a mesma unidade habitacional, em frações de tempo diversas. Nesse sistema, todos os multiproprietários são condôminos, mas esse condomínio somente será exclusivo na unidade autônoma no tempo fixado no pacto”.

Assim, para se proceder com o registro civil desse imóvel uma solução proposta é registrar o bem no nome de uma pessoa denominada centralizadora do negócio, no qual vai lhe ser incumbido a responsabilidade de organizar a utilização periódica da multipropriedade, este será uma espécie de síndico. Pensando nessa possibilidade de registro, a relação de todos os multiproprietários com o centralizador do negócio é uma relação obrigacional.

Outra solução é constar na escritura a aquisição de todos os co-proprietários determinando suas respectivas frações de tempo no imóvel.

Assim, apesar de não termos regulamentado essa modalidade de propriedade em leis relativas ao condomínio, resta evidente sua proximidade analógica com este instituto, e pensando na realidade fática da multipropriedade, poder-se-ia utilizar das normas relativas ao instituto do condomínio, naquilo que for compatível, para possíveis conflitos entre os multiproprietários e destes com terceiros. Algumas decisões jurisprudenciais podem ser citadas nesse aspecto.

DESPESAS DE CONDOMÍNIO. EMBARGOS DE TERCEIRO. REVELIA NÃO CONFIGURADA. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TEMPO COMPARTILHADO OU TIME SHARING). PENHORA DOS IMÓVEIS SOBRE OS QUAIS INCIDE A MULTIPROPRIEDADE. MANUTENÇÃO. CESSÃO DE DIREITOS. RELAÇÃO OBRIGACIONAL. A revelia do réu não enseja necessariamente a procedência total da pretensão do autor. Empreendimento, objeto de tempo compartilhado, registrado em nome de pessoa centralizadora, que concede e organiza sua utilização periódica, gera relação de direito obrigacional com os multiusuários. Recurso desprovido.

(Apelação Cível n.º 0159779-07.2008.8.26.0100. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 27ª Câmara de Direito Privado. Relator: Alexandre Bucci)

Posto isso temos, por exemplo, o dever do proprietário de concorrer com a divisão das despesas, como taxas de manutenção do imóvel (imposto sobre a propriedade (IPTU, por exemplo) água, iluminação, segurança, limpeza, etc.). Também pode-se criar um regimento interno entre os multiproprietários com normas relativas à utilização, gozo e disposição da sua fração de tempo na propriedade, regimento esse previsto em leis relativas ao condomínio.

5.1 DA INCIDÊNCIA DE GRAVAMES SOBRE O BEM E A EXECUÇÃO JUDICIAL

Um aspecto muito importante que deve ser observado, ao se tratar de multipropriedade, é a possibilidade de incidência de gravames sobre o bem, e a maneira com que será executada. Insta ressaltar que o Brasil ainda não firmou entendimento acerca do tema em comento, existindo apenas correntes doutrinárias e jurisprudenciais.

     Nesta toada, frisa-se, mais uma vez, que o instituto em análise, possui peculiaridades que o diferencia da propriedade convencional, pois, os múltiplos proprietários, possuem propriedade de tempo sobre o imóvel e não de solo, como ocorre nos casos clássicos, cuja previsão está no art. 1.228 e seguintes do Código Civil de 2002.

Pois bem, sabendo-se que cada co-proprietário é dono de uma fração, mesmo que no tempo, é legítimo a incidência de gravame sobre a coisa, vez que o sujeito figura como legítimo proprietário do bem. Desta maneira, considerando que se trata de direito real, é característica a gravação de ônus na coisa, com todas as suas consequências, inclusive direito de sequela, forte no direito real.

O ônus, porém, deve incidir apenas naquela cota parte do devedor, somente na fração ideal, pois, do contrário, será ferido o direito de propriedade dos demais co-titulares, insculpido na Constituição Federal, art. 5º, inciso XXII.

Nessa esteira, pode-se concluir que caso a ação de execução, onde fora determinado o registro do ônus, seja julgada procedente e determinado a transferência do bem para o exequente, passando este a posição de legítimo possuidor da coisa, este novo proprietário seguirá as mesmas regras do qual o antigo titular estava sujeito.

     Contudo, há correntes que se posicionam de maneira distinta do raciocínio acima explicitado, isto por que, entende possível a incidência de gravame sobre toda a coisa, independentemente da existência de multiusuários. Neste sentido:

Tenha-se presente que o condômino está obrigado a concorrer para as despesas comuns independentemente de se cuidar de condomínio tradicional ou edilício, de multipropriedade etc. (CC, arts. 1.315 e 1.336) e nada obsta, no último caso, que é o dos autos, a penhora da propriedade da totalidade do imóvel, registrado no registro de imóveis em nome do apelante, que, afinal, é o efetivo proprietário por força do art. 1.245, caput, também do Código Civil.

(Apelação 0159779-07.2008.8.26.0100. 27ª Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator Des. Gilberto Leme. Data de julgamento: 11 de fevereiro de 2014).

     Todavia, é muito importante destacar, que a penhora total do bem, no sistema time sharing, significa punir todos os demais titulares. Se aplicado de tal maneira, o que data vênia é equivocado, todas as demais pessoas que compõem a titularidade do bem seriam afetadas, com o risco de ver o esbulho do imóvel, tornando a ordem jurídica instável e insegura.

Conclui-se, portanto, que é perfeitamente admissível a incidência de gravames, tal como a penhora, hipoteca, etc., nos limites da fração do executado.

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Sobre os autores
João Paulo dos Anjos Lima

Advogado. Graduado em Direito pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD/MG).

Ana Luiza Carreira

Acadêmica do 9º período de Direito da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD/MG)

Recielly Bruna Aquino Ribeiro

Estudante do 10° período do curso de Direito da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais - FEAD/MG. Estagiária de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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