Artigo Destaque dos editores

O impacto dos fatores históricos para o atual problema da guerra fiscal do ICMS

Leia nesta página:

O ICMS é um imposto enormemente impactante na economia do Brasil e vem catalisando graves problemas ao pacto federativo, ocasionados pela chamada guerra fiscal. Essa situação decorre diretamente de fatores históricos.

O ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação), da competência dos Estados e do Distrito Federal, é um imposto totalmente impactante na economia do Brasil e riquíssimo em peculiaridades próprias que o tornam diferente de qualquer outro previsto em outros países.

A escolha do Legislador brasileiro na divisão das competências quanto à tributação sobre bens e serviços trouxe sérias consequências. A prática comum entre os países é a adoção do chamado imposto sobre o valor agregado ou adicionado (IVA), tributando o valor acrescentado em cada transação efetuada pelos agentes econômicos. Esse tipo de imposto, por suas características, é eminentemente nacional, sendo razoável que fique a cargo do Governo Central.

No entanto, no Brasil, a tributação sobre bens e serviços ficou dividida em três impostos, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), da competência federal, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços (ICMS), da competência estadual, e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), da competência municipal (ALEXANDRE, 2015).

O ICMS é o “tributo de maior arrecadação no Brasil” (ALEXANDRE, 2013, p. 578), sendo de imensa relevância para economia do país como um todo. No entanto, muito embora suas características e a experiência vivenciada em outros países com o IVA indicassem que o ICMS ficasse a cargo da União, estabeleceu-se que esse imposto faria parte da competência dos Estados e do Distrito Federal, principalmente devido a questões políticas (ALEXANDRE, 2015).

Os fatores que culminaram nesse resultado são muito bem descritos por Sacha Calmon, então, com base nos seus ensinamentos, passa-se a expor os eventos históricos que resultaram na atual sistemática do ICMS no Brasil.

Na época do movimento militar de 1964, existia no Brasil, desde a Constituição de 1934, o imposto sobre vendas e consignações (IVC), o qual era duramente criticado por economistas e juristas. Essas críticas voltavam-se principalmente para sistemática ultrapassada do IVC, que previa uma tributação “em cascata”, isso, entre outros problemas, acarretava o efeito verticalizador da atividade econômica, propiciava a inflação, sendo um impeditivo do desenvolvimento da Federação e incorreto do ponto vista técnico. Dessa forma, com a Emenda Constitucional 18, de 01 de dezembro de 1965, optou-se por substituir o IVC, tributo cumulativo, pelo imposto sobre circulação de mercadoria (ICM), tributo não cumulativo, que tinha “como fatos jurígenos não mais ‘negócios jurídicos’, mas a realidade econômica das operações promotoras da circulação de mercadorias e serviços, no país, como um todo.” (COÊLHO, 2015, p. 314).

Essa mudança tinha como paradigma seguir o modelo de tributação feito na Europa com os impostos sobre os valores agregados ou acrescidos (IVAs) incidentes sobre bens e serviços de expressão econômica. No entanto, surgiram dois grandes entraves. Primeiro, o fato de que esses impostos, na Europa, estavam presentes em nações que, regra geral, eram de organização unitária, onde inexistiam Estados-Membros, e nos casos excepcionais de países onde existia essa divisão em entes descentralizados a competência para operar o IVA ficava sempre a cargo do Poder Central. Segundo, no Brasil (uma Federação), os Estados-Membros estavam habituados a tributar o comércio de mercadoria (utilizando o IVC), a União, os produtos industrializados, e os municípios, os serviços (COÊLHO, 2015, p. 314).

Esses problemas atrapalharam as ideias reformadoras e modernizantes. Criou-se um receio de que os entes federados, surpreendidos com a reforma tributária, demorassem a se adaptar com a nova estruturação, principalmente devido ao despreparo de sua estrutura fiscal e, em decorrência dessa mudança, fosse ocasionada uma considerável perda de receitas, ocasionando, também, problemas políticos e sociais. Então seguiram apenas em parte os ideais reformistas, estabelecendo um sistema distorcido e cheio de “aberrações jurídicas”. Esta foi a “semente” dos problemas atuais do ICMS que assolam toda a Federação (COÊLHO, 2015).

Entre essas “aberrações” estatuídas, Sacha Calmon destaca: A supressão significativa da competência dos Estados-Membros da Federação para dispor sobre o ICM. Tendo em vista que o ICM é, na verdade, uma derivação do IVA, ele é um imposto nacional, cujos efeitos atingem todo o território do país, sobretudo por causa do seu caráter não-cumulativo (assunto detalhado adiante). Dessa maneira, esse imposto, que seria mais adequado, caso fizesse parte da competência da União, foi “retalhado em termos de competência impositiva entre os diversos Estados-Membros da Federação” (COÊLHO, 2015, p. 314). Outro ponto importante levantado é que o Brasil nesse período apresentava uma terrível desigualdade de desenvolvimento entre suas regiões. Os países precursores desse sistema adotado pelo ICM eram desenvolvidos e, regra geral, unitários. Já no Brasil, esse imposto foi adaptado para essa realidade de discrepância e de luta desesperada pelo crescimento dos estados. Assim sendo, “o ICM, já esparramado sobre um mapa de 23 estados e mais de 4 mil municípios, foi logo agarrado pelas unidades federadas como urna ferramenta hábil para partejar o desenvolvimento econômico” (COÊLHO, 2015, p. 314).

No ano de 1987, com a Assembleia Nacional Constituinte, faz-se “a construção do maior conglomerado tributário de que se tem notícia na história do país, com a adesão de deputados ‘expertos’ em tributação” (COÊLHO, 2015, p. 316). Grupos com ideologias distintas pressionavam fortemente de todos os lados. Entre esses grupos de pressão, destacaram-se, de um lado, os que lutavam pelos ideais dos Estados-Membros (que buscavam maior força política para esses entes e defendiam a ampliação da competência tributária desses entes) e, de outro lado, os que seguiam as posições dos juristas nacionais, que, “já caldeados pela vivencia de 23 anos de existência do ICM” (COÊLHO, 2015, p. 316), pregavam seguir a linha dos IVAs europeus. As pressões eram enormes de ambos os lados, só que prevaleceu a posição dos primeiros, criando-se, então, o ICMS da competência dos Estados e do Distrito Federal, apesar de todos seus previsíveis efeitos negativos futuros que eram alertados por juristas e economistas (COÊLHO, 2015).

Outro ponto importante é que a ideia era, seguindo o exemplo dos IVAs europeus, criar um imposto que englobasse o ICM estadual e o ISS municipal. Mas o ISS continuou mantido na competência dos Municípios. Em contrapartida, acrescentou-se ao fato gerador do ICM os que eram previstos anteriormente em três diferentes impostos da competência da União, cada um incidindo especificadamente sobre (a) energia elétrica, (b) combustíveis e lubrificantes líquidos e gasosos e (c) minerais do país. A tese argumentada foi a de que esses bens eram “mercadorias” que “circulavam”. No entanto, essa escolha também foi muito criticada pelos estudiosos, tendo em vista se trataram de bens muito peculiares, que mereciam um tratamento específico ao invés de serem aglomerados em um único imposto (COÊLHO, 2015).

Além de acumular as hipóteses de incidência desses antigos impostos federais, “o ICM acrescentou-se dos serviços de (a) transporte e (b) comunicações em geral, ainda que municipais, antes tributados pela União, tornando-se ICM + 2 serviços = ICMS” (COÊLHO, 2015, p. 316). Criando-se, na verdade, o ICMS como um aglomerado de 6 impostos.

Entre os fatores que enfatizam a necessidade do ICMS ser controlado pelo Governo Central, destaca-se o seu caráter nacional, tendo em vista que os seus fatos geradores e a operacionalização desse imposto comumente transcendem os limites dos Estados e do Distrito Federal e os seus efeitos são difundidos por todo o território do país. Isso está diretamente relacionado com seu caráter plurifásico e com o princípio da não-cumulatividade. Cite-se também o impacto que esse imposto tem na economia, devido aos valores vultuosos arrecadados com ele (VASCONCELLOS, 2014), dessa forma, é previsível que os entes federados passem a usar cada vez mais desse tributo com intenções extrafiscais, aviltando as relações entre esses entes federados e enfraquecendo o pacto federativo.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Assim sendo, o mais recomendado para evitar a tensão interna existente entre os entes federados é seguir o sistema já existente em boa parte do mundo (o qual apresenta resultados positivos), criando-se o IVA nacional, da competência da União, englobando o IPI, o ICMS e o ISS. No entanto, essa mudança é muito difícil de ocorrer no Brasil, sobretudo devido à negativa dos Estados e Distrito Federal em abrir mão da competência do tributo que mais arrecada e que é sua principal fonte de recursos (VASCONCELLOS, 2014) - representa cerca de 80% da arrecadação dos Estados (SABBAG, 2015) -, mesmo que os valores arrecadados com o ICMS fossem repassados a estes. Isto porque a perda de competência tributária equivale a perder o controle dos objetivos indiretos que podem ser alcançados com a tributação, ou seja, perda de poder político. Exatamente nessa linha de pensamento escreve Ricardo Alexandre:

Por óbvio a criação de um IVA federal, com a extinção do ICMS, do IPI e do ISS resolveria todos esses problemas. Mas a solução tecnicamente perfeita é politicamente impossível, pois mesmo que se garanta o integral repasse dos recursos arrecadados com o sonhado IVA federal, os Estados e o Distrito Federal não vão assentir na perda do poder político que o tributo representa nas negociações para atração de investimentos para os seus territórios. (ALEXANDRE, 2015, p. 609)

O autor fundamenta seu entendimento destacando que é nos tributos não nacionais derivados do IVA (ISS e ICMS) que se torna possível a propagação da guerra fiscal de maneira intensificada, sendo esse problema mais acentuado ainda quando se trata do ICMS, tributo de maior arrecadação no país. Pois o IVA utilizado de forma nacional, sob o controle do Governo Central, já está testado e aprovado em boa parte do mundo. Por isso o IPI brasileiro não causa problemas de tamanha magnitude, justamente por ser, entre os tributos correspondentes ao IVA, o da competência nacional. Dessa forma, não há o que se falar em guerra fiscal interna referente a um tributo da competência da União (ALEXANDRE, 2015).

Ressalta também o autor que foi exatamente por esse motivo que o ICMS foi o tributo mais contemplado com regras contidas diretamente na Constituição. Isso porque o objetivo do legislador constituinte era estabelecer certa uniformidade entre as vinte e sete legislações do tributo (26 Estados e o Distrito Federal) e possibilitar mecanismos para combater as controvérsias entre os sujeitos possuidores da competência para instituir esse imposto, minorando os efeitos de uma previsível guerra fiscal anunciada com a promulgação da Constituição Federal (ALEXANDRE, 2015).

Nesse diapasão, buscando essa uniformidade, e visando evitar o conflito fiscal, a Constituição Federal de 1988 atribuiu um grande papel à lei complementar nacional de regulamentar os aspectos gerais do ICMS, no seu art. 155, § 2.º, XII; estabeleceu a regra de celebração de convênios entre os entes federados como condição para a concessão e revogação de incentivos e benefícios fiscais, no seu artigo 155, § 2.º, XII, g; e delegou ao Senado importantes competências relativas à fixação de alíquotas do tributo, principalmente no que se refere a operações interestaduais (ALEXANDRE, 2015).


REFERÊNCIAS:

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado / Ricardo Alexandre. – 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013.

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado / Ricardo Alexandre. – 9. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.

SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário / Eduardo Sabbag. – 8. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro, 1940- Curso de direito tributário brasileiro/ Sacha Calmon Coêlho – 14° ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.

VASCONCELLOS, Mônica Pereira Coelho de. ICMS: distorções e medidas de reforma/ Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos – Vol XIII -  São Paulo: Quartier Latin, 2014

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fernando Robério Passos Teixeira Filho

Advogado. Consultor. Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas de Pernambuco. Auditor Fiscal de Garanhuns (2017-2021). Graduado em Direito e Gestão Financeira. Graduando em Ciências Contábeis. Pós-graduado em Direito Tributário, Direito Público e Direito Administrativo. Pós-graduando em Direito Previdenciário, Direito Privado e Direito consultivo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Fernando Robério Passos Teixeira. O impacto dos fatores históricos para o atual problema da guerra fiscal do ICMS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4712, 26 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48885. Acesso em: 21 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos