4.0 - A ligação entre homossexualidade Direitos Humanos
Um dos Direitos Humanos de primeira geração, o qual já era posto a salvo das intromissões estatais desde a Magna Charta Libertatum de João Sem Terra em 1218 é o Direito à Liberdade.
É possível perceber os traços básicos do moderno direito de liberdade analisando-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de agosto de 1789, onde no artigo 4º, declara-se que qualquer indivíduo pode fazer tudo o que não afete a liberdade dos demais.
Quanto ao direito à liberdade, escreveu João Baptista Herkenhoff: "O direito à liberdade é complementar do direito à vida. Significa a supressão de todas as servidões e opressões. A liberdade é a faculdade de escolher o próprio caminho, de tomar as próprias decisões, de ser de um jeito ou de outro, de optar por valores e idéias, de afirmar a individualidade, a personalidade. A liberdade é um valor inerente à dignidade do ser, uma vez que decorre da inteligência e da volição, duas características da pessoa humana. Para que a liberdade seja efetiva, não basta um hipotético direito de escolha. É preciso que haja a possibilidade concreta de realização das escolhas." (Direitos Humanos: uma idéia, muitas vozes, pág. 108).
O direito à liberdade, que no ordenamento jurídico brasileiro está presente na Constituição Federal desde o seu preâmbulo, constituindo-se um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, I da CF/88), e garantido a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, através do caput do artigo 5º da Carta brasileira, está, também, intimamente ligado ao princípio da legalidade, também estabelecido pela atual Constituição Federal, no inciso II do artigo 5º, o qual estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Este "princípio" da legalidade é a consagração jurídica do que Bobbio chamou de "Norma Geral Exclusiva", que é uma das premissas do pensamento kelseniano, segundo a qual "tudo o que não está expressamente proibido, está implicitamente permitido", e que constitui uma maneira "fácil" de se evitar lacunas no ordenamento jurídico.
Uma vez que o legislador é impossibilitado, pela própria natureza intrínseca de ser humano, de prever todas as possibilidades de ações, este mesmo legislador preferiu, implicitamente, reconhecer que tudo o que não for expressamente normatizado através do ordenamento jurídico positivo, enquadra-se na categoria de ações "facultativas", as quais, podem, ou não, ser realizadas, de acordo, única e exclusivamente, com a vontade do indivíduo diretamente interessado, posto que é um princípio intimamente ligado com o da liberdade.
A Constituição Federal, além de trazer – como visto – a liberdade como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, na tentativa de "construir uma sociedade livre" (artigo 3º, inciso I), traz ainda, em vários momentos a idéia de liberdade; como é por exemplo – além do já visto caput do artigo 5º – o caso do artigo 5º que apresenta o direito à "livre manifestação do pensamento" (artigo 5º, inciso IV), da "liberdade de consciência e de crença" e do "livre exercício dos cultos religiosos" (artigo 5º, inciso VI), da "livre expressão da atividade intelectual" (artigo 5º, inciso IX), do "livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão" (artigo 5º, inciso XIII), da "livre locomoção no território nacional" (artigo 5º, inciso XV), da "plena liberdade de associação para fins lícitos" (artigo 5º, inciso XVII). Isto apenas para apresentar-se alguns exemplos, ficando, apenas, com alguns direitos do artigo 5º. Fica claro, desta forma, que a Constituição Federal de 1988, traz expressamente o princípio da liberdade como fazendo parte dos "direitos [...] individuais e coletivos".
Com relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito à liberdade está presente, especialmente, no preâmbulo, nos artigos I a III.
Assim, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, "todos os homens nascem livres", tendo a "capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração", e tendo, ainda, "direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal".
Ora, o direito à liberdade afirma que toda pessoa humana pode fazer o que bem lhe aprouver desde que, com suas ações, não prejudique ninguém. Uma vez comprovado que a união homoafetiva não prejudica ninguém, trata-se, portanto, de parcela, nitidamente, ligada à liberdade pessoal de cada indivíduo.
Assim, a homossexualidade é, indiscutivelmente, parte do Direito de Liberdade, do qual todos os indivíduos são – por força internacional e constitucional – portadores, não sendo possível que o Estado crie, ou imponha limites a referido direito, exceto em situações extremas, ou de choques com outros direitos fundamentais como se verá logo adiante.
Os direitos à intimidade e à vida privada são meros corolários do direito à liberdade. Não seria possível falar-se em liberdade sem as garantias do direito à intimidade e/ou vida privada.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, estão previstos no artigo XII que estabelece que "ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada [...] Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques"
Quanto ao conteúdo do direito à vida privada, esclarece José Adércio Leite Sampaio que: "No centro de toda vida privada se encontra a autodeterminação sexual, vale dizer, a liberdade de cada um viver a sua própria sexualidade, afirmando-a como signo distintivo próprio, a sua identidade sexual, que engloba a temática do homossexualismo, do intersexualismo e do transexualismo, bem assim da livre escolha de seus parceiros e da oportunidade de manter com eles consentidamente, relações sexuais..." (José Adércio Leite Sampaio, op. cit., pág. 277).
"Integra a liberdade sexual a faculdade de o indivíduo definir a sua orientação sexual, bem assim de externá-la não só de seu comportamento, mas de sua aparência e biotipia. Esse componente da liberdade reforça a proteção de outros bens da personalidade como o direito à identidade, o direito à imagem e, em grande escala, o direito ao corpo. De Cupis define identidade sexual, no desdobramento do direito à identidade pessoal, como o ‘poder’ de aparecer externamente igual a si mesmo em relação à realidade do próprio sexo, masculino ou feminino, vale dizer, o direito ao exato reconhecimento do próprio sexo real, antes de tudo na documentação constante dos registros do estado civil." (Op. cit., pág. 313).
Nota-se que o direito à vida privada, e à intimidade, são, a muito tempo, considerados como direitos fundamentais do Homem, de maneira que, atualmente é mundialmente reconhecido este direito, inclusive – como já visto – pela Constituição Federal de 1988, além de que: "A Corte européia de Direitos do Homem reconheceu como atentatória ao direito ao respeito da vida privada a incriminação pela legislação da Irlanda do Norte das relações entre homens maiores de 21 anos de idade, pois feria "uma manifestação essencialmente privada da personalidade humana", não sendo a proteção da moral motivo suficiente para sustentar a existência de uma tal lei. Não há como negar que a chamada preferência sexual ou, na dicção estadunidense, a sexual orientation também se instale no âmbito das decisões de foro íntimo, embora haja certa vacilação jurisprudencial não só nos Estados Unidos como em outros países nesse sentido..." (José Adércio Leite Sampaio, op. cit., pág. 310).
Frente ao que foi exposto sobre intimidade e vida privada está claro que o indivíduo tem o direito de ser homossexual, pois esta é uma escolha que apenas a ele diz respeito, faz parte de sua vida mais íntima, e ninguém tem o direito de dizer como este ou aquele indivíduo deve viver sua privacidade.
Não parece, por outro lado, contraditório o fato de um indivíduo ter direito de ser homossexual e não poder "exercer" esta homossexualidade através de união – juridicamente reconhecida – com outro indivíduo homossexual, contrariando o que afirmou João Baptista Herkenhoff sobre as reais possibilidades de exercício do direito à liberdade?
Por outro lado ainda sobre o direito à liberdade, cumpre lembrar o ensinamento – aparentemente esquecido – da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, que, em seu artigo 5º estabelecia, entre outras coisas, que "a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade". E, assim sendo, a lei não poderia proibir – por não ser nocivo à sociedade – o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas.
A igualdade é estabelecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos nos artigos I e II, sendo que, afirma João Baptista Herkenhoff quanto ao artigo II: "O artigo consagra assim a absoluta igualdade de todos os seres humanos para gozar dos direitos e das liberdades que a Declaração Universal assegura. O artigo II, neste seu primeiro parágrafo, completa o artigo I. [...] A cláusula "sem distinção de qualquer espécie", no início do parágrafo, e a cláusula "ou qualquer outra condição", no final do parágrafo, são cláusulas generalizadoras da maior importância. Essas cláusulas, a meu ver, proíbem todas as discriminações, mesmo aquelas não enunciadas no texto. Assim, atentam contra os Direitos Humanos as discriminações contra o homossexual, contra o aidético, [...] Todas as discriminações, mesmo veladas, que visem a rotular pessoas afrontam os Direitos Humanos. Nenhuma exclusão ou marginalização de seres humanos pode ser tolerada." (Direitos Humanos: uma idéia, muitas vozes, págs. 84 e 85).
Na Constituição Federal, o direito à igualdade é previsto, também, desde o preâmbulo, estando presente, ainda, dentre os objetivos da República Federativa do Brasil – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV) – além, é claro do caput do artigo 5º que começa estabelecendo que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".
Assim, a igualdade implica no tratamento igualitário de todos os indivíduos, quer sejam hetero ou homossexuais.
Com esta afirmação não se pretende – como os opositores do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas acreditam – dizer-se que hetero e homossexuais são iguais, pois é obvio que não são. O que se quer afirmar com o princípio de isonomia é que todos os indivíduos, como seres humanos que são, têm o sacro direito de se unir com quem desejar, não importando a sua preferência sexual. Ou, por outras palavras, homossexuais possuem o mesmo direito que os heterossexuais de conviver com outro indivíduo, e ter esta união reconhecida e protegida.
Assim, o que se pretende é que ambos tenham o direito de reconhecimento jurídico das uniões estáveis a qual pertençam, uma vez que a razão jurídica do reconhecimento jurídico de uma união estável é, como lembra a Des. Maria Berenice Dias, a afetividade. Aqui está a razão maior para a analogia entre a união estável heterossexual e a união estável homossexual. Se ambos podem cumprir os requisitos para a constituição e reconhecimento de uma união estável – convivência, mutua assistência, notoriedade da relação, relação relativamente duradoura e estável – não há razões jurídicas plausíveis para excluir-se dos homossexuais a possibilidade de reconhecimento de suas uniões, sob pena de quebra do princípio da isonomia através da hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia – que se verá logo a diante.
Pode ser indicado, ainda, como diretamente ligado à homossexualidade o direito ao casamento, garantido pelo artigo XVI da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos seguintes termos: "Os homens e as mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família..."
O grande João Baptista Herkenhoff, sobre o artigo, escreveu: "O artigo 16 trata do casamento e da família. este artigo é subdividido em 3 parágrafos: o primeiro trata do direito ao casamento e à fundação da família e da igualdade de direitos de homens e mulheres; [...] A família é depositária da vida, e não só da vida biológica, mas da vida espiritual, afetiva, num plano existencial que suplanta definições limitadas, moralistas e preconceituosas. [...] A família não é somente, nem principalmente uma instituição jurídica. Daí merecer todo respeito a família que se forma sem casamento legal. Também é família, sagradamente respeitável, a da mãe solteira e do filho ou filhos que advenham em tal situação. E mesmo a união homossexual em clima de amor e respeito, tem a nosso ver direito de proteção. Não cabem nesta matéria julgamentos morais exclusivas. Não cabe atirar a primeira pedra, procedimento que Jesus Cristo condenou com tanta veemência. O amor tudo justifica e tudo santifica, como está escrito na célebre epístola de Paulo [...] A primeira afirmação do parágrafo consagra o direito que todas as pessoas têm de se casar e de fundar uma família. Em outras palavras: ninguém pode ser impedido de casar e de fundar uma família, se esse for seu desejo." (Direitos Humanos: uma idéia, muitas vozes, págs. 207 a 211).
Cumpre lembrar que as linhas principais deste direito estão asseguradas na Constituição Federal, quer seja através da liberdade – que garante o direito ao matrimônio, se assim o indivíduo desejar – da igualdade – onde todos, indistintamente, têm o direito de formar uma família – e do artigo 226, §3º, que estabelece a proteção à família fática, não constituída por casamento.
Assim, tanto pela Declaração de 1948, quanto pela Constituição Federal, o homossexual têm direito à se unir com quem quer que seja – dependendo, única e exclusivamente do consentimento de seu parceiro – e de, juntos, constituírem uma família digna de proteção pelo Estado, pois, onde o legislador não diferenciou, não cabe ao intérprete fazê-lo.
E mais, uma vez que não foi tal hipótese expressamente vedada pelo constituinte, cumpre concluir pela possibilidade jurídica do reconhecimento deste tipo de união, pois se trata de hipótese restritiva de direito onde não cabem interpretações extensivas (todos os autores que tratam de hermenêutica jurídica são unânimes em reconhecer tal impossibilidade).
Outro princípio que está ligado à homossexualidade é o da dignidade humana, que está presente em toda a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Reconhecer a dignidade humana implica em considerar o indivíduo como sendo um valor em si mesmo, é reconhecer-lhe todos aqueles direitos já analisados: a liberdade, intimidade, vida privada, igualdade, o matrimônio, além do princípio da legalidade. Não há falar-se em dignidade humana sem a estrita observância destes princípios.
A Constituição Federal consagra a dignidade humana de forma implícita no seu preâmbulo, além de, expressamente declarar este valor como sendo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), o que, por isso, deve ser fonte de interpretação de todo o ordenamento jurídico nacional.