Capa da publicação Injustiça extrema e o dilema moral em "A escolha de Sofia"
Capa: Universal Pictures
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A injustiça extrema e o dilema moral de Sofia

13/11/2016 às 13:08

Resumo:


  • O filme "A Escolha de Sofia" (1982) e o livro homônimo de 1979 abordam dilemas morais e jurídicos em meio ao terror do Nazismo, refletindo sobre a capacidade de escolha em situações de injustiça extrema.

  • A protagonista Sofia, enfrentando a brutalidade de Auschwitz, é forçada a escolher entre a vida de um de seus dois filhos, exemplificando as decisões impossíveis impostas pelo regime nazista.

  • O debate ético e jurídico em torno do filme e da história real do Holocausto levanta questões sobre o positivismo jurídico e a necessidade de um direito natural que previna injustiças extremas, como proposto por Gustav Radbruch.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Passados mais trinta anos desde a exibição dessa dramática história, a temática permanece acesa e continua a despertar caloroso debate sobre o direito e a moral vigentes ao tempo do Nacional Socialismo.

Uma escolha conflituosa, deflagrada nos horrores da Segunda Grande Guerra, impõe um dilema. Em uma Alemanha destruída pelo Nazismo, a arquitetura do terror despejava seus escombros sobre Sofia. A injustiça extrema se aviltava da forma mais impactante e o direito sequer dispunha de mecanismos capazes de frear a barbárie iminente. A moral não só padecia em suas próprias crises como também se revelava incapaz de solucionar aquela aporia que afligia a jovem mãe. Sofia tinha escolhas?

A Sofia a qual se faz alusão é aquela que protagoniza o longa metragem A Escolha de Sofia (Sophie’s Choice, 1982), baseado em obra literária homônima publicada por Willian Styron em 1979. O fato é que passados mais trinta anos desde a exibição dessa dramática história, a temática permanece acesa e continua a despertar caloroso debate sobre o direito e a moral vigentes ao tempo do Nacional Socialismo. Agora, no entanto, um questionamento sobre a injustiça extrema que circunda a narrativa se torna latente e já exige certa dose de reconhecimento.

Assombrada pelas marcas de um pretérito mais que imperfeito, recontado nas intermitências da guerra, a jovem polonesa Sofia Zawistowski (Meryl Streep), uma não judia filha de pai antissemita, atravessa o ano de 1947 afundada em profundo estado letárgico. Não bastasse sua relação com o temperamental e problemático Nathan (Kevin Kline), com quem vive em Nova Iorque, há ainda seu envolvimento com Stingo (Peter MacNicol), um novo vizinho aspirante a escritor. O que a princípio nos parece ser apenas um triângulo amoroso se transmuta em dramática narrativa, recontada a partir de peças do passado que se ajustam às singularidades dos tristes momentos outrora vividos. Um enlace sexual com Stingo e a conquista de uma confiança recíproca fazem com que verdades referentes à biografia da jovem moça sejam desenterradas. A partir daí, o pretendente escritor permanece atento aos fatos.

A narrativa viaja no tempo e alcança o período do holocausto nazista. Juntos mergulhamos nos detalhes narrados. Em algum lugar do passado lá vemos Sofia e seus dois filhos prisioneiros de Auschwitz, o maior campo de concentração utilizado pelo regime nacional-socialista. Como se sabe, não apenas de judeus se compunham aquele espaço; a jovem protagonista da história era uma dessas exceções, que por motivos antissemitas certamente ali não estava. Escravizada em meio a todos os demais prisioneiros, ela temia a segurança dos filhos. Moldada pela beleza e juventude, um dia chamou a atenção de um oficial; relatou a ele que ela e seus filhos eram poloneses cristãos. O homem, por sua vez, envolvido por uma mistura de ódio e ironia que parecia lhe ser inerente, concedeu-lhe um “prêmio” por sua crença em Cristo; mandou que ela escolhesse qual dos dois filhos iria morrer. A mãe, naquele instante, se vê diante do mais terrível dilema de sua vida; ela teria de realizar a escolha, pois do contrário ambos morreriam.

Sofia não tinha escolhas e ainda assim teve que optar pelo garoto de dez anos. A menina de oito anos morreria, enquanto a mãe, desolada, justificaria ter escolhido o filho porque era mais forte e teria mais condições de sobreviver. Seu subterfúgio era o desespero inclinado àquela opção considerada um mal menor. Diante de um desafio moral repentino que havia se lançado frente aos olhos dela, o argumento baseado no utilitarismo[1] foi o atalho encontrado. Daí adiante, os direitos humanos, já tão execrados pelos horrores do nazismo, reduzir-se-iam a um total esfacelamento e mais uma vez a saída utilitarista escancarava uma injustiça extrema.

Se maximizarmos o dilema moral da personagem a ponto de equipará-lo ao holocausto nazista, o argumento utilitarista mostrar-se-ia ainda mais agressivo. Aceitá-lo significaria aquiescer no massacre de uma minoria judia em favor de uma maioria antissemita que fazia de seus argumentos racistas um meio necessário à supremacia da “raça ariana”. Abraçar esta visão seria o mesmo que desconsiderar o indivíduo como um valor em si, tratando a humanidade tão apenas como meio e não como fim[2]. Radbruch sabia disso e, passada a guerra, criou um protótipo capaz de impedir que novas situações de injustiça extrema se impusessem.

Radbruch considerou o excessivo formalismo jurídico a causa principal à manutenção do Nazismo. Com seu famoso brocado, “ordens são ordens, é a lei do soldado; a lei é a lei, diz o jurista” (RADBRUCH, 1974, p. 415), o jusfilósofo alemão daria origem a um conjunto de acusações que recairiam sobre o positivismo jurídico. As causas das atrocidades cometidas sob o pálio da lei não seriam outras senão um legalismo estrito que impediria a verificação de qualquer critério de justiça. A saída deveria ser clara e consistiria na ressuscitação de um direito natural que, em consonância com o direito positivo, garantiria um justo equilíbrio da ordem social.

A proposta radbruchiana longe está de se reduzir às pretensões de um jusnaturalismo dogmático; a denominada fórmula de Radbruch[3] é clara nesse sentido, afirmando que no conflito entre segurança jurídica e justiça, aquela deve prevalecer em detrimento desta. A situação, no entanto, será inversa sempre que tal relação conflituosa exibir uma injustiça extrema. Uma vez ultrapassado o umbral de injustiça tolerável socialmente, a justiça prevalecerá sobre a segurança jurídica. Obviamente, no caso do Nazismo, a aniquilação física e material de uma minoria fundamentada em argumentos racistas e religiosos era uma situação aviltante, de extrema injustiça, que deveria ser suprimida. Para Radbruch estava claro que uma lei ou uma ordem extremamente injusta não deveria ser cumprida e, sob essa perspectiva, a ordem do oficial nazista que impunha uma escolha à Sofia deveria ser rejeitada. Mas naquele momento - e mais uma vez a pergunta se repete - tinha Sofia uma real escolha?

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Sofia é a representação mais fidedigna de toda a comunidade judia dizimada nos campos de concentração. Sem escolhas, direitos ou garantias fundamentais, os judeus escolhiam sem escolher; eram a maioria mortos por oficiais que eximiam-se da culpa que por ventura poderiam sentir alegando estarem simplesmente cumprindo ordens. O dilema da jovem mãe e a saída utilitarista por ela apresentada não era uma opção, mas uma necessidade imposta por um sistema extremamente injusto. Se a lei nazista era dada para ser cumprida, não havia naquela situação qualquer direito de resistência. A ordem social ali estabelecida era incapaz de garantir um mínimo ético de objetividade, pois desconhecedora dos direitos humanos. Segundo Radbruch, teria sido esta concepção legal, intitulada positivismo jurídico, a responsável por deixar vulnerável o povo alemão diante das leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas (RADBRUCH, 1974, p. 415).

O erro do positivismo jurídico teria sido não estabelecer um mínimo ético de objetividade que fosse capaz de assegurar a manutenção da segurança jurídica. O não reconhecimento dos direitos humanos como direitos morais, universais, abstratos, passíveis de fundamentação e possuidores de um caráter prioritário[4], talvez tenha sido a peça faltante tanto ao povo judeu quanto à Sofia, na tentativa de impedir o uso arbitrário da força e a consequente redução do ser humano a um mero instrumento utilitário.

Se à Sofia fossem impostas ordens que respeitassem os direitos humanos, aquela escolha inimaginável jamais aconteceria. A mesma injustiça extrema que sobre ela foi despejada, foi em massa despejada sobre o povo judeu. Por falta de uma relação harmoniosa entre o direito e a moral, a barbárie se fez senhora, deixou cicatrizes e vazios inexplicáveis. A jovem Sofia, que em 1947 relata à Stingo seu dramático passado, revela sequer saber o paradeiro do filho escolhido para viver. Do mesmo modo, a comunidade judia se perde às reminiscências do passado sem sequer saber ter feito alguma escolha. 


REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004.

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito. Dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Martins Fontes, 2006.

RADBRUCH, Gustav. Cinco minutos da Filosofia do Direito. In: Filosofia do Direito. 5ª ed. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor Coimbra, 1974.

RADBRUCH, Gustav.. Leis que não são direito e direito acima das leis. Justitia, ano XXXVIII, vol. 93, 2º trim., 1976, p. 155-163


Notas

[1] O utilitarismo configura-se como uma doutrina ética fundada em fins do século XVIII e tem como principais representantes John Stuart Mill e Jeremy Bentham. De modo geral, é possível se dizer que o objetivo dos autores utilitaristas é buscar a correção de determinada ação com base em sua utilidade, ou seja, tomando como base os resultados ou as consequências produzidas.

[2] A necessidade de que a humanidade seja tratada não apenas como meio, mas também como fim em si mesma, é uma construção teórica kantiana denomina Princípio da Humanidade. Por ser este uma decorrência do próprio Imperativo Categórico, ele assim ordena: "age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio". Para mais informações, ver: Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 59.

[3] Esta fórmula é elabora pelo jusfilósofo alemão Gustav Radbruch e aparece pela primeira vez em seu polêmico artigo intitulado “Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht”, traduzido em língua portuguesa como “Leis que não são direito e direito acima das leis”.

[4] Estas cinco características dos direitos humanos aqui elencadas fazem parte de uma construção alexyniana explicitada na obra “Constitucionalismo Discursivo” de autoria de Robert Alexy.

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Sobre o autor
Charles Bahia

Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas. Graduando em Filosofia pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Charles. A injustiça extrema e o dilema moral de Sofia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4883, 13 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49113. Acesso em: 22 dez. 2024.

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