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Inversão do ônus da prova no CDC:

momento processual e adequação aos princípios constitucionais e processuais

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21/03/2004 às 00:00
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"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."

(Rui Barbosa).

SUMÁRIO: 1- Introdução; 2 – O ônus da prova no CDC e no CPC ; 3- A inversão do ônus da prova e o seu momento processual; 3.1 – Na sentença; 3.2 – Antes da sentença: 3.3 – O momento processual mais adequado; 4 – A posição da jurisprudência; 5 – Considerações finais; 6 – Bibliografia.


1 – Introdução:

Tema dos mais polêmicos, a distribuição do ônus probatório tem merecido aguçada análise dos maiores estudiosos do direito, sempre provocando diversos debates diante da dificuldade de uma melhor forma de efetivação e aplicação destas regras em cada caso concreto.

Denomina-se prova, todo elemento que contribui para a formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinado fato. É tudo aquilo que for levado aos autos com o fim de convencer o juiz que o fato ocorreu. Portanto, a colheita de provas é fundamental, pois será o material com base em que o julgador formará o seu juízo de valor acerca dos fatos da causa.

A regra geral de distribuição do ônus da prova, trazida pelo art. 333 do CPC, é, conforme posicionamento assente em doutrina, regra de julgamento, a ser observada por ocasião da sentença, quando não produzida a prova necessária à comprovação dos fatos alegados pelas partes.

Em Roma, era facultado ao Juiz recusar-se a proferir sentença nos casos em que não se convencia pela procedência ou não da ação. Desta forma, as aplicações das regras inerentes ao ônus probatório eram tratadas de forma mais objetiva e sem maiores polêmicas, já que o juiz poderia escusar-se em proferir o mandamento sentencial - o non liquet.

Cite-se, ainda, a época em que vigia o sistema de apreciação das provas das ordálias ou do juízo de Deus, adotado pelos germanos antigos. Neste sistema, não existia um ônus de prova atribuído especialmente a autor e réu, mas uma vinculação destes a testes com determinadas pessoas e de cujo resultado se extrairia veracidade ou não dos fatos discutidos ou a culpa ou não do acusado. (1) A religião influenciava fortemente a prova dos fatos.

Atualmente, o nosso ordenamento veda o non liquet, assim como não mais prospera a influencia da religião sobre a atividade probatória, pelo que à verificação da incumbência do ônus da prova é concebida grande importância, uma vez que, ainda não existindo nos autos prova que convença ao juiz da procedência ou não do pedido, não poderá este se valer do não julgamento ou apelar para o juízo de Deus, devendo proferir o comando sentencial e julgar a causa em desfavor daquele que não desincumbiu do ônus da prova, consoante a regra predisposta no art. 333 do CPC.

Ao longo dos séculos, civilistas e processualistas debruçaram-se sobre o tema, evoluindo-se para a teoria na qual o ônus da prova deve ser repartido entre as partes do processo, em detrimento do quanto vigia no direito romano onde o dever de provar era sempre do autor.

Diante deste quadro, ensina a doutrina mais autorizada que, "à luz da efetividade do processo, do instrumentalismo substancial e do processo civil de resultados, a ação deve garantir o direito ao devido processo legal e colimar o acesso à ordem jurídica justa. Para tanto, não basta assegurar o acesso formal e protocolar ao juiz ou ao tribunal: é de rigor garantir direito à tutela jurisdicional qualificada, ao devido processo legal, com respeito ao contraditório e ampla defesa, à igualdade de tratamento das partes, ao juiz natural, à proibição das provas ilícitas" (2)

Assim, inegável e indiscutível que o direito de prova, o qual faz jus ambas as partes, é de grande valia para a consecução de uma prestação jurisdicional adequada, assegurando-as, de todas as formas, o direito de provar suas alegações trazidas a juízo, garantindo a efetividade do processo e a sua justeza.


2 – O Ônus da prova no CDC e no CPC:

É cediço em doutrina que o ônus da prova é uma carga e não uma obrigação ou dever. Desta forma, à parte a quem a lei atribui o ônus de provar tem interesse em dele se desincumbir. Mas se não o fizer, nem por isso será automaticamente prejudicada.

O não atendimento ao ônus de provar, poderá colocar a parte em posição de desvantagem para obtenção do ganho de causa.

O nosso CPC traz em seu bojo a repartição do ônus da prova, nos seguintes termos:

"Art. 333. O ônus da prova incumbe:

I – Ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II – Ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".

Em linhas gerais, recairá sobre ambas as partes o ônus de provar as suas alegações. Nesse linear, o ordenamento vigente estabelece, objetivamente, as regras para atribuição do ônus da prova no procedimento ordinário, cabendo ao autor provar o fato constitutivo de seu direito, e ao réu os fatos extintivos, impeditivos e modificativos do direito do autor.

A Lei 8.078/90, a qual regula as relações de consumo, inovou ao trazer determinações próprias e particulares que tratam especificamente das questões em que fornecedores e consumidores integram a relação jurídica, principalmente no que concerne a matéria probatória.

Neste sentido, inovou ao facultar ao magistrado a determinação da inversão do ônus da prova em favor do consumidor, excepcionando aquela regra geral trazida no art. 333 do CPC.

Cumpre, neste momento, transcrever o quanto prescreve o CDC em seu Art 6º, VIII:

"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...) Omissis

VIII- A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência". (Grifamos)

Da simples leitura deste dispositivo legal, verifica-se, sem maior esforço, ter o legislador conferido ao arbítrio do juiz, de forma subjetiva, a incumbência de, presentes o requisito da verossimilhança das alegações ou quando o consumidor for hipossuficiente, poder inverter o ônus da prova.

Andou bem o legislador ao introduzir este dispositivo em nosso ordenamento. Isto porque o consumidor é, indubitavelmente, o pólo mais frágil da relação firmada com os fornecedores e carece de proteção contra os possíveis abusos perpretados por estes.

Ressalte-se que esta vulnerabilidade do consumidor foi reconhecida pelo próprio CDC, em seu art. 4º, que, per si, já ampara a proteção do consumidor nesta questão da prova.

Conquanto merecedor de aplausos o legislador ao permitir a inversão do ônus da prova, conferindo ao magistrado o poder-dever para, presentes os requisitos da verossimilhança das alegações ou hipossuficiencia do consumidor, decidir pela inversão do ônus da prova em favor do consumidor, o mesmo não se diga quanto à instrumentalização procedimental da referida medida.

Ao omitir-se quanto ao momento processual no qual deverá ser declarada a inversão, a lei provocou uma incerteza quanto a este aspecto. Conseqüentemente, após a entrada em vigor da multimencionada lei, surgiram divergências na doutrina e jurisprudência acerca do momento processual mais adequado para aplicação do quanto disposto no art. 6º, VIII do CDC.


3 – A inversão do ônus da prova e o seu momento processual:

Inicialmente, urge afirmar que a lei 8.078/90 constitui-se em um sistema autônomo e próprio, sendo fonte primária para o intérprete. Contudo, deverá ser interpretado em consonância com o disposto em nossa carta Magna, aplicando-se, ainda que de forma subsidiária, as disposições do CPC.

Nesse sentido, afirmou acertadamente Bortowski, em sua obra acerca da carga probatória no CDC, que "... O Código é um microssistema, autônomo e independente, mas instrumentalmente se socorre das regras e princípios gerais que norteiam o CPC, exceto quando diferentemente regule, tal como nos casos de intervenção de terceiros, coisa julgada e etc..." (3)

A omissão do legislador quanto ao momento processual mais adequado para em que o magistrado deverá decidir a respeito da inversão causou divergências na doutrina e jurisprudência. Contudo, consoante restará demonstrado, estas se dão somente em virtude da carência de uma correta exegese da norma contida no Art. 6º do CDC, desatreladas dos princípios constitucionais e processuais que regem as relações jurídicas e o processo civil.

3.1 – Na sentença.

Importante setor da doutrina, cujo posicionamento, data vênia, não coadunamos, defende ser por ocasião da sentença o momento mais propício para a decisão do juiz acerca da inversão. Cite-se, por todos, Nelson Nery, Kazuo Watanabe e Batista Lopes.

Fundamentam sua tese afirmando que as regras da inversão do ônus da prova são de julgamento da causa e que, somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará o juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de non liquet, sendo o caso ou não de inversão do ônus da prova. (4)

Ademais, alegam, ainda, que acaso o juiz declare invertido o ônus da prova antes de proferir a sentença, seria o mesmo que proceder ao pré-julgamento da causa, o que, para esta corrente doutrinária, é inadmissível. (5)

Para Nery, o ônus da prova é regra de juízo. Este renomado autor, ao manifestar-se acerca do tema em debate, afirma que a sentença é o melhor momento para a inversão. Sustenta este renomado jurista que "a parte que teve contra si invertido o ônus da prova (...) não poderá alegar cerceamento de defesa porque, desde o início da demanda de consumo, já sabia quais eram as regras do jogo e que, havendo non liquet quanto à prova, poderia ter contra ela invertido o ônus da prova." (6)

No mesmo sentido, leciona Batista Lopes:

"... é orientação assente na doutrina que o ônus da prova constitui regra de julgamento e, como tal, se reveste de relevância apenas no momento da sentença, quando não houver prova do fato ou for ela insuficiente". Conclui, ao final, que "... somente após o encerramento da instrução é que se deverá cogitar da aplicação da regra da inversão do ônus da prova. Nem poderá o fornecedor alegar surpresa, já que o benefício da inversão está previsto expressamente no texto legal". (7)

Aduzem, ademais, que ao se manifestar a respeito do ônus da prova anteriormente a sentença, poderia o magistrado incorrer em prejulgamento, parcial e prematuro.

Finalmente, argumentam que a isonomia prevista na constituição consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, reconhecendo, desta forma, a legalidade e constitucionalidade da inversão do ônus da prova em favor do consumidor na sentença, por ser este, ante a hipersuficeincia das grandes empresas fornecedoras, o pólo frágil e hipossuficiente da relação, merecendo o amparo da lei para seja alcançado um equilíbrio de forças.

Acrescente-se ao aqui já exposto, os ensinamentos perpetrados pela ilustre Promotora de Justiça Célilia de Matos (8) que, em seu trabalho, tantas vezes citado por aqueles que se debruçam no estudo deste tema, assim justifica a inversão do ônus da prova somente na sentença:

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"O fornecedor pode realizar todo e qualquer tipo de prova, dentre aquelas permitidas em lei, durante a instrução para afastar a pretensão do consumidor. Se o demandado, fiando-se na suposição de que o juiz não inverterá as regras do ônus da prova em favor do demandante, é surpreendido com uma sentença desfavorável, deve creditar o seu insucesso mais a um excesso de otimismo do que a hipotética desobediência ao princípio da ampla defesa".

Ainda quanto ao debate acerca do momento mais apropriado para seja determinada a inversão do ônus da prova, é necessário ressaltar que encontramos diversos escritos na doutrina atual, abonando, em sua maioria, a tese de que é a sentença o momento adequado para seja declarado invertido o ônus da prova.

Este é o pensamento de Cristina Gaulia (9), após afirmar que a inversão é ônus subjetivo do autor:

"Se a lei em questão veio a lume para proteger o consumidor, não podem restar dúvidas de que o Julgador tem o dever de inverter o ônus da prova no processo, presentes seus requisitos, independente de prévio alerta ao réu, que há de trazer aos autos as provas necessárias para ilidir sua responsabilidade objetiva, o que é mais um dever que a nova lei impõe."

Sustentando não ser necessário a prévia manifestação acerca da inversão do ônus da prova, André Gustavo de Andrade assevera, de forma lúcida e pontuada que " A despeito do que parece indicar, o texto do art. 6º, VIII, do CDC não está a conferir ao juízo um poder discricionário, de inverter ou não o ônus da prova. A inversão do ônus da prova e produzida ope legis, ou seja, decorre da própria lei, uma vez presentes os requisitos estabelecidos em lei, os quais são apenas reconhecidos no caso concreto pelo juízo (no momento de proferir a sentença)." (10)

Contudo, com todo respeito aos defensores do supracitado posicionamento, a sentença não é o momento mais adequado para inversão, pelo que apontamos ser o melhor momento para que o juiz se manifeste acerca desta questão aquele que antecede a sentença, preferencialmente antes de iniciada a instrução probatória, decidindo através do despacho saneador, o que pretendemos demonstrar nas próximas linhas.

3.2 – Antes da sentença.

No nosso sistema jurídico vige o princípio "ne procedat iudex ex officio", que consiste em o estado-juiz, órgão prestador da tutela jurisdicional, não exercer a atividade que lhe é peculiar se não for provocado pelo interessado. Daí deve a parte propor uma demanda na qual pleiteará, perante o Estado, determinada providência jurisdicional.

Assim, sucessivamente ao pedido da parte autora, deve o Estado-juiz oportunizar a parte adversa falar no processo, como forma de garantir a sua defesa plena.

É garantia constitucional, assim como princípio que rege os atos processuais, à asseguração do contraditório as partes que litigam judicialmente. Ademais, o justo processo, garantido constitucionalmente pelo devido processo legal, somente vigorará se respeitada a ampla defesa e o contraditório.

Questionando-se acerca do que seria contraditório, Bulos (11), em sua obra, cita precioso ensinamento de Joaquim Almeida, que, de forma elucidativa, esclarece o contraditório como sendo "a ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los".

Conclui Bulos, que são dois elementos de noção universal de contraditório, quais sejam a necessidade de bilateralidade e a possibilidade de reação (12).

Para Rui Porta Nova, "O princípio da ampla defesa é uma conseqüência do contraditório, mas tem características próprias. Além do direito de tomar conhecimento de todos os termos do processo (princípio do contraditório), a parte também tem o direito de alegar e provar o que alega e – tal como o direito de ação – tem o direito de não se defender".

Forçoso concluir, diante dos ensinamentos supramencionados, que a inversão do ônus da prova na sentença desrespeitará a constituição e seus princípios além das regras processuais.

Com efeito, à prima face, ao autor recairá o ônus de trazer elementos necessários a convencer o juiz da veracidade de suas alegações, sob pena de ter rejeitado o seu pedido, mesmo que o réu não tenha produzido prova em contrário, conforme inteligência do art. 333 do CPC. Contudo esta não é a inteligência do CDC, onde a regra geral incidente sobre o ônus da produção de provas poderá sofrer uma alteração a critério do magistrado, consoante reza o art. 6º VIII do CDC.

Destarte, justifica-se a inversão do ônus da prova anteriormente a sentença, já que, decidindo o juiz pela inversão somente na sentença, estaria retirando do fornecedor o direito de não se defender - o que, sem dúvidas, é muitas vezes a melhor estratégia a ser adotada -, cuja garantia transcende do princípio constitucional da ampla defesa.

Assim, a declaração pelo Estado-juiz da inversão do ônus da prova na sentença afastará qualquer possibilidade de reação do fornecedor, pois, em grau de recurso, não mais será possível a produção de prova e, fatalmente o resultado lhe será desfavorável, mitigando os princípios do contraditório e a ampla defesa assegurado às partes, restringindo o direito a bilateralidade de audiência.

Nesse sentido, elucidativas são as palavras de Barbosa Moreira, para quem a aplicação do dispositivo em exame na sentença redundaria em manifesta ofensa aos princípios do contraditório e ampla defesa, pois "Ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da prova, o juiz estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar novos elemento de convicção, com os quais pudesse cumprir aquele encargo." (13)

E mais. Se o juiz somente determinar na sentença invertido o ônus da prova, estará o réu-fornecedor sempre obrigado a produzir prova, extirpando deste a garantia e a faculdade de não ter que provar qualquer coisa.

Desta forma, a produção da prova pelo fornecedor deixaria de ser um ônus, uma carga, para ter a conotação de uma obrigação, um dever e, assim, perdendo sua substancia, já que não restará outra alternativa para o fornecedor a não ser provar, pois caso contrário, ao final do processo poderá ter contra si transferido o ônus da prova, e as suas conseqüências.

Importante trazer a baila os ensinamentos de Chiovenda, plenamente adotado pelo nosso ordenamento:

"... enquanto o autor não provar os fatos que afirma, o réu não tem necessidade de provar coisa alguma: actore non probante, réus absolvitur" (14).

De tal forma, muitas vezes a inércia do réu quanto à produção de prova será a melhor defesa.

Outro ponto a ser combatido é à afirmação de que uma decisão que se declara invertido o ônus da prova acarretaria um julgamento prematuro da lide. Com a devida vênia, não assiste razão àqueles que assim pensam, como demonstraremos a seguir.

Primeiramente, cumpre esclarecer que ao juiz é conferida a faculdade de declarar ou não invertido o ônus da prova pela própria lei, observados os critérios nela estipulados, quais sejam, presença da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiencia do autor.

A declaração da inversão do ônus probatório, seja fundamentada na verossimilhança das alegações do autor ou na sua hipossuficiencia, não adentra o mérito da controvérsia, porque para verificá-los utiliza-se o julgador apenas de uma cognição rarefeita, onde são levados em consideração somente a aparência de direito alegado, a qualificação da parte, aliados a uma interpretação do julgador com base nas regras ordinárias de experiência, conforme autorização do art. 6º, VIII do CDC.

Afirmar que a inversão do ônus da prova antes da sentença constituiria prejulgamento é ir de encontro com a própria lei, além de estar minimizando e limitando a atuação do juiz.

Ressalte-se, também, a existência de outras providencias conferidas pela lei ao juiz, como a determinação de produção de prova ex oficio (art. 130 CPC) , ou a concessão da antecipação da tutela (art. 273 CPC), que assim como a decisão que declara invertido o ônus da prova, possuem como caracteres a presença do poder instrutório conferido ao juiz e, também, a semelhante característica que consubstancia a cognição preliminar que é a provisoriedade.

Conseqüentemente, pelo simples fato de se declarar invertido, antes da sentença, o ônus da prova ou - guardada as devidas peculiaridades - se determine a produção de uma prova ou conceda a tutela antecipada, não se pode afirmar a suspeição do magistrado em nenhum desses casos, tão pouco que sua decisão constituiria prejulgamento, porque além de ser garantia legal poder o magistrado proferir decisões que não põe fim ao processo e tão pouco adentram no mérito deste, através de uma cognição rarefeita, é dever do magistrado garantir a igualdade de tratamento entre as partes e a aplicação de um direito justo.

Neste diapasão, forçoso concluir que é desprovida de amparo legal e até prático à alegação de que inversão do ônus da prova antes da sentença constituiria prejulgamento, parcial ou prematuro.

Quanto ao argumento de que a parte que teve contra si invertido o ônus da prova na sentença não poderá alegar cerceamento de defesa porque, desde o início da demanda de consumo, já sabia quais eram as regras do jogo e que poderia ter contra ela invertido o ônus da prova, não merece acolhida. Vejamos.

Insta, em princípio, esclarecer que "as regras do jogo" - a qual se refere respeitável setor da doutrina supramencionado - não é previamente conhecida pelas partes, porque não deriva exclusiva e diretamente da lei. Em verdade, prevê lei a mera possibilidade da inversão, e esta somente será definida quando juiz se manifestar nos autos. Portanto, mister se faz que este o faça em momento anterior a instrução probatória, garantindo, assim, as mesmas oportunidades para as partes dentro do processo.

Já foi dito que contraditório é, além da possibilidade de poder deduzir ação e reação em juízo, dar as mesmas oportunidades para as partes. É a bilateralidade de audiência

Logicamente, não é correto designar à parte a incumbência prevê e supor uma possível inversão sob pena de suportar a pena de ser, ao final do processo, surpreendido pala inversão do ônus probatório e acabar sucumbindo por, nas palavras de Cecília Matos, acima transcritas, ser "excessivamente otimista".

O que está aqui se discutindo não é o otimismo nem a previsão das partes de obter sucesso ou não ao final da demanda, mas sim o respeito às garantias constitucionais das partes no processo civil. E conceder oportunidades iguais às partes para se manifestar e produzir prova no processo é uma destas garantias. O processo não é um jogo e as suas regras devem estar sempre claras e oportunamente acessíveis às partes.

Por fim, por ser bastante elucidativa, cite-se a lição do eminente processualista Carlos Roberto Barbosa Moreira (15):

"As normas de repartição do ônus probatório consubstanciam, também, regras de comportamento dirigidas aos litigantes. Se lhe foi transferido um ônus – que para ele não existiria antes da adoção da medida – obviamente deve o órgão jurisdicional assegurar a efetiva oportunidade de dele se desincumbir".

Também não se justifica a aplicação somente na sentença do quanto faculta o art. 6º, VIII do CDC sob a argumentação de que o tratamento a ser dado as partes desiguais, deve ser desigual, pois esta garantia foi conferida ao consumidor para colocá-lo iguais condições perante o fornecedor, mas não para servir de armadilha ou "arma secreta" para prejudicar a defesa ou surpreender o fornecedor.

Sem dúvidas, quanto à isonomia entre as partes, é cediço em doutrina que o que preceitua a Constituição é que os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente.

Certo é que esta premissa incide de forma direta nas relações de consumo tuteladas pelo CDC, onde um dos pólos estará, comparativamente, em desvantagem em razão da sua situação social e econômica.

Contudo, não se pode admitir que diante disto, a lei seja aplicada em prejuízo de uma das partes. Isto porque, conforme dito anteriormente, na ocasião da sentença estará precluso o momento processual para a produção de prova e, se invertido o ônus da prova neste momento, não restará outra alternativa ao fornecedor se não a de sempre produzir a prova, transformando em regra ter que em todos os casos se desincumbir deste ônus, sob pena de ao final do processo sucumbir por não ter produzido prova.

Em outras palavras, o tratamento desigual permitido nos casos de desigualdade entre as partes encontra limite nos princípios processuais e constitucionais que regem o nosso processo civil. Assim é que a norma consumeirista trata desigualmente o fornecedor e o consumidor, permitindo a inversão do ônus da prova em seu favor. Ocorre que, inverter o ônus da prova na sentença não é tratar desigualmente os desiguais, mas tratar injustamente aquele que teve contra si transferido este ônus.

Também não se justificam as afirmações de que a regra predisposta no art. 6º do CDC produz seus efeitos ope legis, que esta regra é um dever imposto magistrado e que o CDC é um microssistema autônomo e por isso não vigem as regras quanto a a carga probatória vigentes no CPC.

Ora, creditar que os efeitos do multimencionado dispositivo decorra da lei vai de encontro ao que dispõe a letra da norma, pois esta prevê, expressamente, a aplicação desta regra segundo as regras ordinárias de experiência, transmitindo esta incumbência ao Juiz da causa em cada caso concreto. Afirmar, que a aplicação da inversão do ônus da prova é um dever do magistrado é extirpar deste o exercício do livre convencimento previsto no art. 131 do CPC e preservado pelo art. 6º7 VIII CDC, ao permitir a sua aplicação segundo as regras ordinárias de experiência.

Quanto a autonomia do CDC. Já foi dito que esta somente se dar quanto às matérias em que o Código regula integralmente e de forma incompatível com outros sistemas, o que não ocorre quanto a carga probatória. Portanto, quanto ao ônus da prova aplicam-se as regras gerais dispostas no nosso CPC.

Sobre esses aspectos Toshio Mukai (16) assim leciona:

"O inciso VIII dispõe sobre a inversão do ônus da prova como parte do direito do consumidor na facilitação da defesa de seus direitos. Entretanto, tal inversão não é absoluta, posto que:

a)somente pode ocorrer no processo civil;

b)quando, a critério do juiz, for verossímel a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência." (grifos aditados)

Portanto, resta demonstrado que a inversão do ônus da prova em momento anterior à sentença desrespeitará os princípios do contraditório, da ampla defesa e, conseqüentemente, do devido processo legal, configurando cerceamento de defesa do fornecedor.

Agindo desta forma, o juiz restringirá o direito do fornecedor-réu de tomar conhecimento de todos os atos do processo em momento seja-lhe possível reagir e desincumbir-se do ônus que lhe foi transferido depois de iniciada a demanda, assim como não dará as mesmas oportunidades a ambas as partes, ofendendo, também, a bilateralidade de audiência, pois somente o consumidor será ouvido quanto ao seu pleito inicial pela inversão, enquanto ao fornecedor restará conforma-se com a decisão desfavorável em um momento processual onde não lhe será permitido reverter, por nenhuma forma, este quadro.

Para aclarar e espancar qualquer dúvidas, mister se faz transcrever alguns posicionamentos extraídos de obras publicadas pela doutrina nacional adotando idêntico posicionamento aqui explicitado, reforçando e os fundamentos aqui já transcritos:

Consoante assinalou Voltaire de Lima Moraes, "é descabida a decretação da inverão do ônus da prova quando da prolação da sentença, pois tal decretação não deve ser entendida como regra de julgamento a ser aí decidida, por envolver questão incidente, a ser efetivamente operacionalizada por ocasião da fase instrutória, sob pena de não se permitir ao fornecedor que se desincumba deste ônus que lhe foi judicialmente imposto, com prejuízo, inclusive de que exercite a sua ampla defesa." (17)

Carlos Roberto Barbosa Moreira, com precisão, arrebata que "a inversão, se ordenada na sentença, representará, quanto ao fornecedor, não só a mudança da regra geral até ali vigente, naquele processo, como também algo que comprometerá sua defesa, porquanto, se lhe foi transferido um ônus – que para ele não existia antes da adoção da medida -, obviamente deve o órgão jurisdicional assegurar-lhe a efetiva oportunidade de dele se desincumbir." (18)

Ante tudo aqui exposto, nos resta convir que a inversão do ônus da prova em momento anterior à sentença é a melhor forma de preservar os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, assim como da isonomia entre as partes, uma vez que não trará prejuízos a nenhuma das partes e possibilitará a entrega de uma prestação jurisdicional mais justa.

3.3. O momento processual mais adequado.

O sistema adotado pelo nosso processo civil determina, previamente, quem poderá sair prejudicado com a não produção da prova, sendo que, o juiz, na sentença, somente vai valer-se das regras inerentes ao ônus da prova quando esta não estiverem nos autos ou forem insuficientes.

No CDC, a regra é diversa. Isto porque a previsão da inversão do ônus da prova é uma exceção à regra geral trazida pelo CPC e ser adotada se o juiz verificar a presença dos requisitos previstos na lei, em cada caso concreto e após a análise subjetiva do julgador.

Vale dizer que, nas relações em que vigem as normas consumeiristas, onde os critérios para aplicação da inversão não dependerão exclusivamente da lei e nem se dará de forma automática e predeterminada, mas com base na livre apreciação do juiz e após análise de cada caso em particular, as partes terão ciência sobre quem recairá a incumbência do ônus da prova, apenas no momento em que se pronunciar o juiz da causa, que poderá decidir pela transferência deste ônus para o réu.

É neste ponto que se encontra a relevância do momento da inversão do ônus da prova.

A regra de distribuição do ônus da prova no processo civil é de conhecimento das partes, conforme a inteligência do art. 333 e seus incisos. É distribuição legal do ônus da prova, pois que, somente na ausência ou insuficiência desta, portanto, ao final do julgamento, é que o juiz deverá verificar a quem incumbia o ônus de trazê-las ao processo.

Do exposto, torna de fácil percepção que, em se tratando da regra geral trazida pelo CPC, a verificação da incumbência do ônus da prova somente terá relevância quando do julgamento da lide, no momento em que o juiz, ao analisar o conteúdo dos autos, não encontrar provas suficientes acerca dos fatos alegados e debatido. Constitui, consoante afirma a esmagadora maioria da doutrina, regra de julgamento.

Diante da regra geral do CPC, é indiscutível que o momento processual para verificação da incumbência ônus da prova seja a sentença, uma vez que foi assegurado e previamente esclarecido as partes, durante toda a instrução probatória, as regras aplicáveis em caso da ausência de material probatório, o que, certamente, garante a liberdade para produção ou não as provas necessárias a obtenção um provimento jurisdicional favorável.

Entretanto, não é esta certeza que vigora no CDC. A inversão não é automática e pro isso não pode ser considerada, tal qual no processo civil, como regra de julgamento.

Consoante brilhantemente expõe Rizzatto Nunes "Este pensamento está alinhado com a distribuição do ônus da prova do art 333 do CPC e não com aquela instituída no CDC." (19)

Para este autor, é possível chegar a esta conclusão através de um raciocínio de singela lógica, consistente em ser preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se a hipossuficiencia foi reconhecida ou se a verossimilhança está presente.

Concluí não haver sentido "diante da norma do CDC, que não gera inversão automática, que o magistrado venha a decidir apenas na sentença respeito da inversão, como surpresa a ser revelada para as partes".

Certamente, quanto às exceções, devemos procurar aplicar as regras que se adaptem às suas particularidades, mormente quando estiver em cheque o respeito e a preservação de princípios constitucionais e processuais, bem como a observação da justiça.

Neste sentido, Rizzatto apresenta a seguinte solução quanto ao momento processual mais adequado para manifestar-se o magistrado acerca da inversão do ônus da probandi:

" o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador."

Ainda que seja este momento processual trazido por Rizzatto mais adequado do que a sentença, por todos os motivos aqui sustentados, não nos parece ser este o melhor momento. Vejamos.

Frise-se que, diante do prescrito pelo nosso CPC, deverá o juiz, antes de resolver a questão do ônus da prova, fixar os pontos controvertidos (20) e determinar as provas a serem produzidas pelas partes, cujo o momento é o despacho saneador.

É, assim, no próprio saneador o momento mais adequado para seja declarado pelo juízo invertido o ônus da prova, quando o juiz terá os elementos necessários para fixação dos pontos controvertidos e decidirá as provas a serem produzidas e a quem incumbirá este ônus, garantindo desta forma, a consecução do devido processo legal, o contraditório e ampla defesa, possibilitando às partes se insurgir contra esta decisão através do recurso adequado, em um momento processual no qual ainda estaria assegurada uma possível produção de prova em caso de decisão desfavorável, permitindo-lhes, assim, optar por produzir ou não as provas que acharem necessárias, com a devida conotação de ônus e não de obrigação conferida por uma inversão na sentença.

Com relação aos processos que tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis, é de difícil solução sobre qual seria momento de declaração da inversão do ônus da prova. Isto porque a lei 9.099 não prevê juízo de admissibilidade, assim como é comum a audiência de conciliação ser presidida por juiz leigo quando somente a posteriori, por ocasião da instrução do feito, é que o Juiz togado terá acesso aos autos.

Diante deste quadro, interessante solução apresentou Alexandre Domingues Martins Bandeira, a qual aderimos e passamos a transcrever:

"Uma outra mudança que deveria ser realizada seria um juízo de admissibilidade nos Juizados Especiais Cíveis, onde os juízes, nos casos em que envolvessem relação de consumo, apreciando as provas juntadas, verificaria de pronto se o consumidor é ou não hipossuficiente." (21) Permito-me acrescentar que este juízo de admissibilidade deve ser exercido pela autoridade julgadora no início da audiência de instrução.

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Sobre o autor
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUMBERT, Georges Louis Hage. Inversão do ônus da prova no CDC:: momento processual e adequação aos princípios constitucionais e processuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 257, 21 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4939. Acesso em: 22 dez. 2024.

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