A partir da Constituição Federal de 1988, a união estável passou a ser reconhecida enquanto entidade familiar e equiparada ao casamento por força do artigo 226, §3º, recebendo a tutela estatal. Tal previsão acompanhou as modificações sociais no conceito de família, o qual foi ampliado a fim de valorizar os laços de afeto. Embora o artigo mencionado refira-se a apenas três organizações familiares (casamento, união estável entre homem e mulher e aquela formada por um dos pais mais descendentes), a maior parte da doutrina interpreta que esse rol é meramente exemplificativo e que entre elas não existe qualquer hierarquia.
A união estável tem como principal traço, a informalidade, sendo o início da vida em comum, o suficiente para o seu reconhecimento. Não obstante, a este instituto, aplicar-se-ão os impedimentos arrolados no artigo 1.521 do Código Civil/2002, à exceção do inc. VI, visto que a união estável poderá ser constituída, mesmo se os companheiros forem casados, desde que já estejam separados de fato.
Ademais, os outros requisitos que caracterizam essa entidade são aqueles previstos no artigo 1.723 do CC, quais sejam: convivência notória, contínua, duradoura e ânimo de constituir família. São irrelevantes, o tempo que durou o relacionamento ou a existência de filhos comuns.
O direito sucessório aplicável ao companheiro está presente no art. 1.790 do CC. Tal dispositivo tem recebido inúmeras críticas doutrinárias. Tem ainda, gerado enorme segurança jurídica, visto que dividiu também os tribunais pátrios, os quais têm proferido decisões díspares, com base em interpretações diversas do texto legal. Boa parte dos juristas aduz ser o artigo em comento, inconstitucional, devido às diversas lacunas e contradições nele encontradas, as quais se passa a analisar.
Dispõe em sua literalidade o artigo 1.790 do Diploma Civil vigente:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
O primeiro ponto de combate doutrinário é que o dispositivo foi introduzido na parte das disposições gerais do Direito Sucessório. Desse modo, o companheiro não figura como herdeiro necessário, participando somente como sucessor regular. O caput prenuncia que os direitos sucessórios do companheiro abrangerão apenas os bens adquiridos onerosamente durante a relação.
Assim comunicam-se os bens havidos do trabalho de um ou de ambos durante a vigência da união estável, excluindo-se os bens recebidos a título gratuito, como, por exemplo, a doação ou sucessão e aqueles adquiridos antes do enlace. Por essa razão Flávio Tartuce conclui que “em regra, pode-se afirmar que o companheiro é meeiro e herdeiro, eis que, no silêncio das partes, vale para união estável o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC)”.
Daí exsurge a primeira problemática: caso o companheiro falecido tenha apenas bens angariados a título gratuito, não deixando descendentes, ascendentes ou colaterais, devem estes bens destinarem-se ao companheiro supérstite ou ao Estado? Parte dos doutrinadores filia-se à posição de que os bens caberiam ao companheiro e à impossibilidade de concorrência entre este e o Estado em uma análise sistemática, considerando também a redação do artigo 1.844 do CC. Outro posicionamento é no sentido de que haveria essa possibilidade. Existe ainda entendimento de que pela literalidade do comando legal os bens devem ser direcionados ao Estado.
A segunda polêmica concerne ao teor do inc. I o qual silencia sobre a ser seguida em caso de existência concomitante de filhos comuns e descendentes exclusivos. Novamente tem-se três correntes explicativas:
- Em caso de sucessão híbrida, deve-se tratar todos os descendentes como se comuns fossem. Esta parece ser a solução mais consentânea com o princípio da isonomia consagrado na CRFB/1988 no artigo 227, §6º, o qual equiparou os filhos “havidos ou não da relação do casamento” vedando o tratamento diferenciado entre os mesmos;
- A segunda corrente defende a aplicação do inc. II do artigo 1.790 tratando todos os descendentes como se fossem exclusivos. O argumento para a defesa dessa solução é a de que a atribuição igualitária de cotas prejudicaria o direito hereditário dos descendentes, ferindo o princípio da razoabilidade;
- A terceira proposta seria a realização de um cálculo proporcional, mesclando a quota igualitária com relação aos filhos comuns e só metade no que coubesse aos demais. Tal corrente possui pouquíssimos adeptos, entendendo os estudiosos do Direito que
a modalidade de cálculo misto não é cabível, já que geraria a diferenciação dos quinhões hereditários dos descendentes, o que, consequentemente, abalaria o princípio constitucional da igualdade entre os filhos e a regra expressa no artigo 1.834 do CC, que não podem ambos ser descumpridos (FRECCIA apud VELOSO, 2010: 176).
No que se refere ao inciso I do artigo 1.790 do CC, alguns autores assinalam ainda impropriedade em sua redação, argumentando que
o equívoco é claro na redação dos incisos, uma vez que o primeiro faz menção aos filhos; enquanto que o segundo aos descendentes. Na esteira da melhor doutrina, é forçoso concluir que o inciso I também incide às hipóteses em que estão presentes outros descendentes do falecido. Nesse sentido, o Enunciado nº 266 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil: “Aplica-se o inciso I do artigo 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns” (TARTUCE, 2015: 1000)
Por fim, o texto legal em deslinde nada prevê sobre a reserva da quarta parte da herança, prevista no art. 1832 do CC como direito do cônjuge quando este concorrer com herdeiros dos quais seja ascendente, suprimindo do companheiro mais um direito conferido ao cônjuge.
Dando continuidade ao exame do artigo 1.790 do CC, o seu inciso III preleciona que se o companheiro sobrevivente concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança. Por parentes sucessíveis conceitua a lei como ascendentes e colaterais até o quarto grau.
Este é o tópico mais rechaçado e controverso do dispositivo, apontado como inconstitucional por parcela expressiva da doutrina e da jurisprudência. Isto porque independentemente de quem seja o colateral concorrente, ao companheiro competirá sempre um terço da herança. Tal situação além de injusta, destoa da realidade observada na maioria dos casos concretos.
Com efeito, merece maior galardão aquele que permaneceu junto ao seu companheiro até o último momento em vez de pessoas com as quais o falecido provavelmente tinha pouca convivência e laços afetivos menos estreitos.
Por derradeiro, um outro ponto controvertido é a remanescência ou não do direito real de habitação sobre o imóvel do casal. O artigo 1.790 do CC ora debatido não previu tal direito. No silêncio do legislador prevalece o entendimento de que houve a manutenção do mesmo. É o que preconiza o Enunciado do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil: “o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei nº 9.278/1996, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/1988”.
Do texto reproduzido acima, infere-se que existem, pelo menos, três argumentos que justificam o entendimento exposto:
- Não houve revogação expressa das Leis nº 8.971/1994 e 9.278/96, as quais não só previam o direito real de habitação como estabeleceram tratamento equânime entre cônjuges e companheiros. Há que se observar ainda o critério da especialidade já que as referidas leis regulam de forma específica respectivamente acerca o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão e o § 3° do art. 226 da Constituição Federal (o qual reconhece a união estável como entidade familiar merecedora da proteção Estatal);
- Consonância com o art. 6º da CRFB/1988 que erigiu a moradia a direito fundamental;
- Outrossim, considerando que as leis suso citadas são anteriores à edição do Código Civil de 2002 e encontravam-se em perfeita harmonia com a Carta Magna, não poderá haver a revogação desse direito por respeito ao princípio da proibição do retrocesso, consagrado na práxis jurídica nacional.
Em síntese, conclui-se que apesar de parte da doutrina e da jurisprudência considerar não haver qualquer problema com o artigo 1790 do CC, que não possa ser sanado por instrumentos integrativos à disposição do aplicador da lei e estar em conformidade com o Texto Maior, vários doutrinadores e Tribunais defendem a declaração de inconstitucionalidade deste dispositivo aduzindo que, ao conferir tratamentos jurídicos distintos para cônjuges e companheiros, este macula os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humanas, consignados na CRFB/1988, além de afastar-se da realidade social e criar instabilidade e insegurança jurídicas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Senado Federal, Brasília, 2015.
_________. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm >. Acesso em: 20 maio. 2016.
_________. Lei no lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9278.htm>. Acesso em: 27 maio. 2016.
_________. Lei no 8.971, de 29 de dezembro de 1994. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8971.htm>. Acesso em: 23 maio. 2016.
Enunciado nº 117 do CJF/STJ da I Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 26 maio. 2016.
FRECCIA, Luiza. Sucessão dos companheiros: análise da atual interpretação doutrinária e jurisprudencial. In: Revista da ESMEC, v. 19, n. 25, 2012. Disponível em: < https://www.revista.esmesc.org.br/re/article/view/54> . Acesso em 25. maio. 2016.
Tartuce, Flávio. Manual de direito civil: volume único 5. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.