Pelo princípio constitucional do devido processo legal, estampado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, a decisão proferida em âmbito judicial ou administrativo, pode vir a ser reanalisada, garantindo ao cidadão o direito de reformar, invalidar ou, eventualmente, obter a sua integração quando esta contiver simples erro material, omissão, contradição ou obscuridade.
Para tanto, nosso ordenamento abarca diversos meios de impugnação ao ato decisório, apontado pela doutrina como típicos, ou seja, os recursos em espécie, e as ações autônomas de impugnação, como a ação rescisória, e os atípicos, por exemplo, o pedido de reconsideração.
Contudo, se por um lado desde o Código de 1973 nosso sistema processual tem adotado fortemente o princípio da instrumentalidade das formas, com efeito, privilegiando a validade do ato processual realizado de outra forma desde que atingido seu objetivo, por outro, nosso legislador ao longo dos anos vem introduzindo pressupostos de admissibilidade recursais cada vez mais rígidos para o conhecimento de determinados recursos, como ocorre, por exemplo, com a repercussão geral, no caso do recurso extraordinário.
Além disto, ao longo dos anos, vem se formando nos Tribunais uma corrente definida como jurisprudência defensiva, ao qual podemos conceituar, em suma, como um conjunto de entendimentos puro e simplesmente formais destinados a obstaculizar o exame do mérito dos recursos. Ou seja, diante de volumoso número de demandas, os Tribunais adotam critérios extremamente rígidos e não previstos em lei, para a simples admissão e conhecimento do mérito do pleito recursal.
Ocorre, porém, que além de não encontrar amparo legal, tais requisitos tratam, na verdade, do que vem sendo qualificando como filtros ou barreiras, que dificultam o simples conhecimento do recurso, ou seja, a simples análise das razões recursais. Em suma, com a incidência da jurisprudência defensiva, o formalismo processual acaba sendo privilegiado em detrimento do próprio direito invocado pela parte.
Vários são os exemplos que podem ser citados repercutindo a chamada jurisprudência defensiva, como (i) a consolidada súmula nº 115 do Superior Tribunal de Justiça que considera inexistente, na instância especial, o recurso assinado por advogado não habilitado nos autos; (ii) acórdãos considerando prematuro e intempestivo o recurso interposto antes da publicação da decisão recorrida e; (iii) não conhecimento de recursos acompanhados de guia de preparo recursal preenchida erroneamente, dentre outras tantas hipóteses.
A nosso ver, não é exagero afirmar que a jurisprudência defensiva, com a criação de regras, filtros, barreiras e, por que não dizer, pressupostos processuais a margem da lei, reflete exageradamente no ativismo judicial que vem sendo fortemente difundido nos últimos anos.
Todavia, porém, tal entendimento aderido pela corrente da jurisprudência defensiva, não se coaduna com o direito processual moderno, guiado justamente pelo desapego a este formalismo e o aproveitamento útil do processo, orientado pelo princípio da instrumentalidade das formas.
Significa dizer que, embora seja necessário, pela parte recorrente, a observância dos pressupostos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, tais requisitos podem ser mitigados, relativizados ou sanados, sempre com vistas a privilegiar a análise do direito invocado pela parte.
Bem por isso, a doutrina critica com veemência a adoção da chamada jurisprudência defensiva, eis que inegavelmente causa prejuízos à parte e, pelo nosso entendimento, como já outrora destacamos, não reflete na boa aplicação da norma do direito processual constitucional.
Neste sentido, o renomado doutrinador Cândido Rangel Dinamarco destaca que “uma das características do processo civil moderno é o repúdio ao formalismo, mediante a flexibilização das normas e interpretação racional que as exigem, segundo os objetivos a atingir.” (Instituições de Direito Processual Civil. 2ª Edição. Revista e atualizada. Ed. Malheiros. pág. 38).
Por sua vez, segundo orienta a doutrina de José Miguel Garcia Medina:
Os tribunais superiores têm a grande função de apontar o rumo correto a ser seguido na interpretação e aplicação da Constituição e da lei federal. Devem, pois, ser tomados como exemplos do cuidado com que a norma jurídica deve ser interpretada e aplicada. A criação de requisitos recursais à margem da lei definitivamente não corresponde ao papel que deve ser desempenhado pelos tribunais. Esse, a meu ver, é o maior problema da jurisprudência defensiva.
Os tribunais e, no que respeita ao tema, especialmente os tribunais superiores devem atuar com retidão, ao aplicar a lei. A criação de “entraves e pretextos” não previstos na norma jurídica “para impedir a chegada e o conhecimento de recursos” mancha a imagem daqueles tribunais que deveriam servir de guias na interpretação da própria lei.(GARCIA MEDINA. José Miguel. A jurisprudência defensiva nos Tribunais Superiores: a doutrina utilitarista mais viva que nunca. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=bbc9e48517c09067. Acesso em 17/05/2016).
Portanto, a crítica à jurisprudência defensiva decorre, dentre outros fatores, do fato de que o formalismo não deve se sobrepor ao direito invocado pela parte. Logo, a luz da instrumentalidade das formas, quando o vício for sanável, não deve o Julgador criar entraves e embaraços para a análise do mérito recursal, mas sim privilegiar o enfrentamento do direito invocado, inclusive como garantia plena dos princípios constitucionais do devido processo legal e inafastabilidade da Jurisdição.
Seguindo esta linha moderna de entendimento, o novo Código de Processo Civil, em inúmeras passagens, demonstra sua intenção explícita de minimizar esses filtros, essas barreiras, com efeito, diminuindo a aplicação prática da chamada jurisprudência defensiva.
Tanto a parte de teoria geral como o regime recursal disposto no novo Código de Processo Civil elencam várias modificações e avanços significativos privilegiando a análise do mérito em detrimento do mero apego ao formalismo processual.
As exposições de motivos do novo Código de Processo Civil, em vários trechos, destaca a busca pela melhor análise do direito invocado pela parte, ora afirmando que o novo diploma processual “privilegia o conteúdo em detrimento da forma, em consonância com o princípio da instrumentalidade”, ora estampando que a simplificação do sistema recursal “busca levar a efeito um outro objetivo: o de obter-se o maior rendimento possível de cada processo.”.
E isso de fato não ficou apenas na teoria! Ao contrário, verifica-se em diversas passagens que esses conceitos foram aplicados à espécie.
Neste sentido, vejamos alguns dos preceitos trazidos pelo novo Código de Processo Civil combatendo expressamente a jurisprudência defensiva.
- (a) Reafirmação do princípio da instrumentalidade das formas: seguindo orientação já há tempos assentada pela doutrina e jurisprudência, bem como a tendência do CPC de 1973, o novo código definitivamente privilegia a instrumentalidade das formas (artigo 188), com o desapego de certo formalismo processual e a priorização da análise do mérito recursal;
- (b) Proibição das decisões genéricas e não motivadas: novo diploma legal reafirma a necessidade de aplicação do princípio constitucional das motivações das decisões judiciais (artigo 93, IX, da Constituição Federal), de modo a considerar absolutamente nula a sentença ou acórdão que (i) “se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida”; (ii) “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”; (iii) “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”; (iv)“não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”; (v)“se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e; (vi) “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”, conforme taxativamente dispõe o artigo 489, incisos I a VI, do novo CPC;
- (c) Fim do reconhecimento do recurso prematuro/extemporâneo: encerrando definitivamente a discussão sobre a tempestividade ou não do recurso interposto antes da publicação da decisão recorrida, o artigo 218, § 4º, do novo diploma legal estabelece que “será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo”;
- (d) Preenchimento errôneo da guia de preparo recursal: antes de aplicar a deserção do recurso pelo recolhimento errôneo da guia do respectivo preparo recursal, como mormente acontecia, deverá o relator intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de cinco dias, conforme taxativamente dispõe o § 7º, do artigo 1.007, do novo CPC;
- (e) Recurso deserto: caso o recurso seja interposto sem o recolhimento do preparo devido, antes de aplicar a pena de deserção, do mesmo modo cabe ao relator oportunizar ao recorrente o direito de sanar o vício no prazo de cinco dias, recolhendo a título de sanção o dobro do valor devido, como preceitua o artigo 1.007, § 4º do Novo Código de Processo Civil. Por outro lado, mantendo-se a sistemática antiga, caso o preparo seja recolhido à menor, o recorrente terá o prazo de cinco dias para complementar, inteligência do §2º, do referido artigo 1.007;
- (f) Não conhecimento do Agravo de Instrumento por deficiência em sua formação: ao receber o recurso e proceder com o juízo de admissibilidade, caso o relator constate a ausência de alguma peça essencial, antes de proferir decisão não conhecendo o recurso, deverá oportunizar ao recorrente o direito de sanar o vício no prazo de cinco dias, inteligência do artigo 932, parágrafo único, cumulado com artigo 1.017, § 3º, ambos do Novo Código de Processo Civil;
- (g) Recurso não assinado por procurador legalmente habilitado: revogando inteira e expressamente (ainda que de forma tácita) a súmula nº 115 do Superior Tribunal de Justiça que considerava inexistente, na instância especial, o recurso assinado por advogado não habilitado nos autos, o novo diploma processual civil estabelece que verificada a incapacidade processual ou a irregularidade da representação da parte, deve o relator oportunizar ao recorrente o direito de sanar o vício no prazo de cinco dias, conforme disciplina seu artigo 76. Somente com a inércia do recorrente na sanação do vício é que se deverá não conhecer o recurso, nos termos do § 2º, do referido artigo;
- (h) Admissão de embargos declaratórios contra qualquer dos pronunciamentos judiciais: seguindo firme tendência doutrinária e encerrando antiga incongruência do código de 1973, declaratórios passam a ser admitidos contra qualquer ato decisório, desde que presente obscuridade, contradição, omissão e erro material, inteligência do caput, do artigo 1.022. Isso é relevante, na medida em que antes da vigência deste preceito, colhiam-se algumas decisões não conhecendo os embargos em face de decisão interlocutória e, com efeito, não operando a interrupção do prazo, causando manifesto prejuízo a parte, que acabava vendo preclusa a possibilidade de manejo de outros recursos;
- (i) Conversão expressa da fungibilidade entre embargos declaratórios e agravo interno: privilegiando de igual modo o princípio da fungibilidade recursal, o código determina, sempre que possível, a conversão e conhecimento dos embargos declaratórios como agravo interno, conforme dispõe o § 3º, do artigo 1.024;
- (j) Admissão de prequestionamento implícito: seguindo pacífica orientação doutrinária e tendência da jurisprudência moderna, novo código passa a admitir o prequestionamento implícito (virtual), no sentido de se considerar incluídos no acórdão recorrido, os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade ;
- (k) Possibilidade de correção de vício formal nos recursos dirigidos ao STF e STJ: conforme disciplina o § 3º, do artigo 1.029, nos recursos extremos interpostos com vício formal sanável, poderá o relator (i) diretamente desconsiderar o vício e analisar o mérito ou; (ii) ou determinar a sua correção no prazo a ser assinalado;
- (l) Conversão de recurso extraordinário em especial ou especial em extraordinário: novo diploma legal autoriza a possibilidade de conversão e aproveitamento de extraordinário em especial ou, ao contrário, de especial em extraordinário, caso se considere que a insurgência verse, respectivamente, sobre questão constitucional ou infraconstitucional, inteligência dos artigos 1.032 e 1.033, respectivamente.
Com isso, percebe-se o claro intuito do legislador em minimizar a adoção da jurisprudência defensiva, permitindo que a parte possa suprir eventual vício formal existente no recurso interposto, visando que o mérito recursal, o recurso propriamente dito, seja analisado pela Corte.
Além disto, embora também não esteja intimamente ligada ao fenômeno da jurisprudência defensiva, é de relevo observar que o novo diploma processual traz a vedação da decisão surpresa, encartados nos artigos 9º e 10, de modo que, além de prestigiar a análise do mérito, há de ser dada à parte, antes que se profira decisão contra ela, o direito de exercer de forma ampla o contraditório para melhor profundidade e elementos quando da prolação do pronunciamento judicial.
Desta forma, ao menos em teoria, o Novo Código de Processo Civil traz um avanço bastante significativo, quebrando a corrente da jurisprudência defensiva e privilegiando o mérito recursal.
Ficam, porém, as seguintes indagações: seria, então, efetivamente o fim da linha da jurisprudência defensiva? Por outro lado, o ativismo judicial será novamente capaz de criar filtros, barreiras e entraves a analise do mérito, criando novos pressupostos a míngua do novo Código de Processo Civil? A nosso ver, isso só o tempo irá responder.