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Comentários ao projeto do novo CPP: é viável a instituição do juiz das garantias no Brasil?

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A criação do juiz das garantias no Brasil representa um retrocesso extremamente oneroso para o país e de questionável necessidade, especialmente em tempos de ajuste fiscal e da necessidade premente de redução dos gastos da União e dos estados.

O projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do Senado nº 156/2009) encontra-se em discussão no Congresso Nacional e tem supostamente a finalidade de modernizar a persecução penal. Uma das principais propostas do novo CPP é a criação do “Juiz das Garantias”, ou seja, a designação de magistrado responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e proteção dos direitos fundamentais do acusado.

A figura do “Juiz das Garantias”, apesar de alguns sustentarem equivocadamente a sua inconstitucionalidade,[1] vai de encontro ao modelo atual em que um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a sentença. Em síntese, o projeto do novo CPP pretende a separação do juiz que atua na investigação “Juiz das Garantias”, em relação ao juiz do processo.[2]

Inicialmente, para se evitar confusões e julgamentos precipitados, cumpre se fazer uma distinção clara entre o superado modelo do “juizado de instrução” existente em alguns países europeus e o modelo do “juiz das garantias”, que está sendo proposto pelo projeto do novo CPP.[3]

O Brasil, por força do disposto no art. 144 da CF/88, adotou o modelo de investigação criminal policial, com inquérito policial presidido por Delegado de Polícia, em que pese o Supremo Tribunal Federal tenha permitido, de forma pouco clara e confusa, o poder investigatório do Ministério Público, em caráter residual, subsidiário e extraordinário. [4]

Há de se deixar claro que a instituição do “juiz das garantias”, em nenhum momento, nos termos do anteprojeto do novo CPP, pretende acabar com o inquérito policial e, muito menos, atribuir a presidência da instrução criminal ao Juiz das Garantias, transformando-o na figura ultrapassada do Juiz de instrução.[5]

O Juiz das Garantias, ao contrário do Juiz de Instrução, que conduz diretamente a instrução criminal, seria apenas um magistrado responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e pelo respeito dos direitos individuais dos cidadãos, não sendo responsável pela condução direta da investigação criminal.[6]

Feitos esses esclarecimentos breves e iniciais, passa-se a análise do que dispõe o novo Código de Processo Penal sobre o assunto: [7]

CAPÍTULO II

DO JUIZ DAS GARANTIAS

Art. 14. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil;

II – receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 555;

III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença;

IV – ser informado sobre a abertura de qualquer investigação criminal;

V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar;

VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las;

VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa;

VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pelo delegado de polícia e observado o disposto no parágrafo único deste artigo;

IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI – decidir sobre os pedidos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.

XII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII – determinar a realização de exame médico de sanidade mental, nos termos do art. 452, § 1º;

XIV – arquivar o inquérito policial;

XV – Assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito de que tratam os arts. 11 e 37;

XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.

Parágrafo único. Estando o investigado preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação do delegado de polícia e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.

Art. 15. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo e cessa com a propositura da ação penal.

§ 1º Proposta a ação penal, as questões pendentes serão decididas pelo juiz do processo.

§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz do processo, que, após o oferecimento da denúncia, poderá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso.

§ 3º Os autos que compõem as matérias submetidas à apreciação do juiz das garantias serão apensados aos autos do processo.

Art. 16. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 14 ficará impedido de funcionar no processo, observado o disposto no art. 748.

Art. 17. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal. [8]

Sobre o tema em análise, é oportuno mencionar um interessante artigo publicado por Luiz Flávio Gomes, defensor da criação do Juiz das Garantias, em que reconhece inúmeras vantagens da introdução do modelo e entende que os altos custos envolvidos seriam compensados em razão dos benefícios do novo modelo. Eis o que defende o ilustre autor: [9]

“No desenvolvimento do processo-crime, constata-se esse envolvimento do juiz criminal graças a seu vínculo psicológico com as provas produzidas na fase policial, até porque ele, vez ou outra, participou de atos instrutórios que lhe influenciam o convencimento.

Torna-se o magistrado um escudeiro da pretensa legitimidade da investigação criminal, em vez de juiz imparcial capaz de enxergar as aberrações que se deram no procedimento investigatório.

A aproximação em demasia da hipótese factual desenhada pela polícia judiciária também faz com que o juiz criminal passe a ter convicções prévias quanto a fatos e a pessoas investigadas, o que torna a etapa do contraditório no processo criminal apenas teatro formal, do qual o julgador já conhece o fim. Isso acaba nítido por meio da leitura de decisões e sentenças, cujo tempo verbal e vocabulário denotam que o magistrado tem para si premissas quanto à causa sub judice que lhe prejudicam a isenção no momento da coleta e debate das provas na instrução criminal. No curso do processo judicial, esse convencimento precoce se revela com a manifestação antecipada de juízos de certeza sobre a materialidade e autoria de crimes, o que demonstra a supressão do devido processo legal para formação da culpa".

Para evitar que essas trágicas experiências continuem se perpetuando no nosso país, o projeto do novo CPP prevê, acertadamente, o chamado juiz das garantias, que terá como função precípua a de monitorar o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais do suspeito ou indiciado, na primeira fase da persecução penal, sem prejuízo de também preservar o direito do Estado de investigar o fato e apurar a sua autoria, visando à devida aplicação da norma penal violada. (...)

A preocupação central dessa proposta, digna de encômios, reside no respeito ao princípio acusatório assim como na preservação da imparcialidade do juiz do processo. Juiz que investiga ou que monitora a investigação não pode julgar. Nesse mesmo sentido muitos países (Espanha, França, Estados Unidos etc.) têm promovido recentes reformas na sua legislação (com o escopo de preservar a imparcialidade judicial na fase contraditória). O juiz das garantias (projetado), de outro lado, não tem nada a ver com o juiz ou juizado de instrução (da Espanha e França, v.g.). O juiz das garantias não vai presidir o inquérito policial, isto é, vai apenar cuidar da sua legalidade assim como do respeito aos direitos e garantias fundamentais do indiciado ou suspeito. A figura do juiz das garantias não extingue o inquérito policial ou outro procedimento investigatório (levado a cabo por quem de direito, de acordo com a lei CPP, art. 4º, parágrafo único). (...)

O juiz das garantias, diferentemente do que acontece no atual sistema, não ficará prevento para a ação penal futura (CPP, art. 75, parágrafo único, e art. 83). Do relatório do Senador Renato Casagrande (PSB-ES) podemos extrair várias ideias que dão bem a exata noção do chamado juiz das garantias:

(...) Além do mais, como teríamos um juiz voltado exclusivamente para a investigação, estima-se que isso se traduza em maior especialização e, portanto, ganho de celeridade. Com efeito, a competência do juiz das garantias cessa com a propositura da ação penal e alcança todas as infrações penais (art. 16), ressalvadas as de menor potencial ofensivo, que seguem o rito dos juizados especiais. Todavia, é preciso ter claro que o juiz das garantias difere do juiz das varas de inquérito policial, hoje instituídas em algumas capitais, como São Paulo e Belo Horizonte. É que o juiz das garantias deve ser compreendido na estrutura do modelo acusatório que se quer adotar. Por conseguinte, o juiz das garantias não será o gerente do inquérito policial, pois não lhe cabe requisitar a abertura da investigação tampouco solicitar diligências à autoridade policial. (...)

Claro que alguns tribunais alegarão razões orçamentárias para não se implantar o juiz das garantias, mas quem acha que isso representa um alto custo é porque ainda não parou para quantificar o prejuízo que vem causando o sistema atual, que tem dado ensejo a muitos e exorbitantes abusos (que geram nulidades), sem contar o desprestígio para a própria justiça criminal (que é posto em relevo pela mídia, influenciando a percepção negativa da população quanto ao funcionamento da Justiça). Nada disso, evidentemente, contribui para o aprimoramento do nosso Estado constitucional e humanista de direito.

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Por outro lado, é impossível fechar os olhos para as inúmeras desvantagens da introdução do “juiz de garantias” no Brasil, entre elas, destacam-se as seguintes:[10]

1.Completa desnecessidade, haja vista que hoje já existe o controle judicial pleno da legalidade das ações de polícia judiciária desenvolvidas no curso do inquérito policial;

2.Enfraquecimento do Poder Judiciário, com a vulgarização e banalização da figura do juiz de direito, uma vez que seria necessária a abertura de milhares de vagas de juiz, para a concretização do “juiz de garantias”. Isso ocorre porque nas comarcas que possuem apenas um juiz, passariam a ser obrigadas a ter, na melhor das hipóteses, dois juízes de direito.

3.Altíssimo e impagável custo. Num ambiente de crise financeira e de elevadas despesas do Poder Judiciário, num país subdesenvolvido, não parece razoável, econômica e eficiente a duplicação da quantidade de juízes de direito, o que causaria um aumento exponencial dos custos com salários de magistrados, contratação de servidores da Justiça, sem falar nos custos com o aumento das instalações físicas do Poder Judiciário. Ou seja, embora não haja uma previsão dos gastos com implantação do juiz das garantias, estima-se que os custos envolvidos seriam bilionários.

4.Violação do princípio da eficiência administrativa. O sistema atual pode e deve funcionar a contento. Como exemplo, podemos citar a brilhante atuação do Juiz Federal Sérgio Moro nos processos relacionados à Operação Lava Jato da Polícia Federal. Assim, para que mudar e encarecer absurdamente um sistema de persecução criminal que, apesar de precisar de ajustes, pode funcionar?

5.Criação de autênticos juízes e magistrados de segunda classe, que não sentenciam os processos em que atuam. Nesse ponto, oportuno citar os ensinamentos da Dra. Izabela Novaes Saraiva, que assim estabelece: “É evidente a razão do incômodo da classe, eis que, invariavelmente, será o juiz tolhido de realizar o ato mais próprio de sua atuação: o de sentenciar. Assim, há uma frustração da comunidade de magistrados, que crê que, em verdade, tal modificação é demasiadamente nociva e pouco acrescentará a sistemática processual (...) Ademais, será desvirtuada a atividade-fim a qual o Estado-Juiz está vinculado, com sua atuação personificada na figura do juiz. Isto porque o Poder Judiciário será composto de membros que terão uma função meramente provisória e reduzida”.[11]

6.Perda do contato do magistrado com a produção de provas e distanciamento completo dos fatos investigados. Tal desvantagem também é brilhantemente pontuada pela autora Dra. Izabela Novaes Saraiva, que assim ensina: “releva notar que é indispensável a participação do magistrado na produção da prova, pois o contato pessoal permite um entendimento diferenciado, que pode não ser devidamente apreendido diante da mera documentação de atos processuais. Ciente disso, o legislador, por diversas vezes, incorporou à legislação uma série de regras voltadas a consolidar o princípio da identidade física do juiz, que não pode ser facilmente desconsiderado, eis que a verdade real deve prevalecer à verdade formal, mormente no que toca à esfera penal”. [12]

Por fim, é importante citar uma valiosa lição do Promotor de Justiça José Ademir Campos Borges, a respeito da necessidade de criação do Juiz das Garantias: [13]

“Realmente, se é da preocupação do legislador zelar pela prova produzida na fase pré-processual, melhor deixar essa tarefa a cargo de um defensor capacitado para fiscalizar e questionar prováveis abusos praticados durante a investigação, sem prejuízo da fiscalização concorrente do juiz e do promotor de justiça que atuarão perante o caso, os quais, é bom que se diga, têm o dever inafastável de também zelar pela correta aplicação da lei dentro do inquérito policial, procedimento inquisitivo e sigiloso, mas longe de ser um ente secreto. Enfim, a construção de uma defensoria pública bem estruturada, certamente, dispensaria a criação desse luxo perdulário que se pretende incrustar na magistratura e, certamente, traria melhores e maiores benefícios a serviço da sociedade e ao processo penal, sem maiores entraves a investigação policial. Abaixo, pois, o juiz de garantias”.

Por todo o exposto, sem a menor pretensão de esgotar a análise do presente tema, e considerando a necessidade de maiores estudos sobre a matéria, entende-se, salvo melhor juízo, não ser adequada a introdução do modelo de “juiz das garantias” no Brasil, em razão de seu elevadíssimo custo de implantação, que não se mostra minimamente razoável.

Assim sendo, a criação do Juiz das Garantias no Brasil representaria um retrocesso extremamente oneroso para o país e de questionável necessidade, especialmente em tempos de ajuste fiscal e da necessidade premente de redução dos gastos da União e dos estados, que não podem se dar ao luxo de manter um Poder Judiciário extremamente caro, apenas para satisfazer eventuais exageros da “onda garantista” dominante.

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Sobre os autores
Bruno Fontenele Cabral

Delegado de Polícia Federal. Mestre em Administração Pública pela UnB. Professor do Curso Ênfase e do Grancursos Online. Autor de 129 artigos e 12 livros.

Anny Karliene Praciano Cavalcante Fontenele

Delegada de Polícia Federal lotada em Brasília/DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Bruno Fontenele ; FONTENELE, Anny Karliene Praciano Cavalcante. Comentários ao projeto do novo CPP: é viável a instituição do juiz das garantias no Brasil?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4794, 16 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49757. Acesso em: 26 abr. 2024.

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