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A responsabilidade civil nos transportes alternativos

01/11/2000 às 00:00
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Os transportes alternativos, realizados por vans e kombis, são comumente utilizados pela população das grandes metrópoles, que, exausta da prestação de serviço de forma insatisfatória pelas concessórias, optaram pela utilização de um novo meio para se locomover.

Este tipo de transporte, apesar de comum, ainda não foi devidamente regulamentado pelo Estado, que ainda exerce repressora fiscalização através de seus agentes, tornando ilegais as "lotadas", como são usualmente chamadas.

Entretanto, apesar de ainda não existir nenhum entendimento jurisprudencial acerca deste assunto, cumpre-nos adequar este fato tão atual e comum ao âmbito da responsabilidade civil, pois ninguém está imune a eventuais acidentes que podem ocorrer entre um trajeto e outro.


O transporte coletivo está caracterizado como um serviço público, e, como tal, só pode ser exercido pelo próprio Estado ou por seus delegados. Tal como define o festejado professor José Carvalho dos Santos Filho, em sua obra "Manual de Direito Administrativo", o serviço público é toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob o regime de Direito Público, com vistas à situação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade.

Ademais, o serviço público delegado pelo Estado aos concessionários ou permissionários é passível de responsabilidade objetiva, com base no artigo 37, § 6o da CF, onde está disposto que "as pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" . Desta forma, o Estado prevê uma grande segurança ao cidadão usuário destes serviços, abrangendo este tipo de responsabilidade aos concessionários ou permissionários em caso de acidentes ocasionados por seus agentes.

Entretanto, não é possível estendermos esse tipo de proteção constitucional, pelo menos a priori, aos transportadores alternativos, pois estes não prestam serviço público, uma vez que, como a própria Carta Magna afirma, somente o Estado pode exercer tais atividades, podendo, ainda, delegá-las a concessionários ou permissionários.

Ocorre que, os transportadores alternativos exercem uma determinada atividade mediante uma remuneração, o que nos deixa à vontade para determinarmos que, a atividade exercida é meramente um serviço individual, ou seja, uma prestação de serviços.

O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, protege as relações de consumo em que, de um lado existe o fornecedor ou prestador de bens ou serviços e de outro, o consumidor destes bens ou serviços. Fica, então, bastante razoável adequarmos a relação entre o transportador alternativo e o passageiro como uma relação de consumo.

Tal entendimento é corroboado pelas definições existentes no próprio Código, que não deixa dúvidas nem margens para vagas interpretações ao denominar, em seu artigo 3o, fornecedor como toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. E ainda, serviços como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

O CDC ainda define o consumidor, ao denominá-lo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. É de suma importância essa abrangência às pessoas jurídicas, pois desde que estejam utilizando aquele serviço como destinatárias finais, podem valer-se da proteção da referida lei. Temos como exemplo aquele comerciante que, contrata uma van ou kombi para transportar alguns produtos utilitários de uma filial para outra. Neste caso, estamos diante de uma relação de consumo típica, pois o comerciante não está utilizando aquele serviço com o intuito de comercializá-lo, mas sim de satisfazer suas próprias necessidades.

Sendo inegável que a relação do caso em questão é de consumo, cumpre-nos agora posicioná-la nos artigos referentes aos danos causados ao consumidor no caso de defeito nesta prestação de serviço, adequando-a quanto à responsabilidade objetiva ou subjetiva.

O artigo 14 do CDC dispõe que, o fornecedor de bens ou serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição ou riscos. É a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, ou seja, ao consumidor basta apenas a comprovação do dano e do nexo causal, não havendo, aqui, nenhum tipo de apuração de existência de culpa ou não do agente causador.

Esta responsabilidade objetiva é fundada na teoria da segurança, ou seja, aquele que presta um serviço, deverá cumpri-lo de forma segura, a ponto de não causar danos ao consumidor, pois, se houver inobservância quanto a esta cautela, responderá objetivamente pelos prejuízos causados.

Poderíamos, então, adequar a responsabilidade dos transportadores alternativos como sendo objetiva, pautada no artigo supracitado, se não houvesse, nesse mesmo artigo, o parágrafo 4o , dispondo que a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Este parágrafo abre uma exceção na responsabilidade determinada no CDC, vislumbrando a possibilidade de existência de apuração de culpa nos casos de prestação de serviço defeituosa por parte dos profissionais liberais. Neste tipo de responsabilidade, só será determinada a culpa se houver provada a negligência, imprudência ou imperícia.

Este tipo de responsabilidade é observada quando estamos diante de uma contrato negociado, ou mesmo os de adesão em que figure profissionais autônomos. Um exemplo simples para identificarmos um contrato negociado ocorre quando o acordo é feito entre as partes contratantes, onde não há desigualdade entre os pólos. Apesar de bastante mitigado pela lei 8078/90, este tipo de contrato ainda admite o pacta sunt servanda, pois pressupõe que ambas as partes chegaram a um consenso frente à frente, sem desequilíbrios. Podemos até citar como exemplo contratos realizados com um advogado, ou mesmo um engenheiro. Em contraposição, os contratos de adesão firmados com profissionais liberais também são abrangidos por esta proteção normativa, temos como exemplo, o contrato firmado com associações profissionais.

Diante desta elucidação sobre os contratos abrangidos, podemos afirmar que, o contrato entre o passageiro e o motorista da van ou kombi é de adesão, pois o indivíduo adere a esse contrato sem discutir cláusulas, ou seja, o sujeito não entra na van e começa a negociar cláusulas para o cumprimento do serviço, ele já entra no veículo sabendo que existe um contrato entre as partes, onde o prestador do serviço deverá deixá-lo no seu destino incólume e de forma segura.

Ademais, o prestador desse tipo de serviço é um profissional liberal, que exerce sua atividade de forma autônoma, tal como um advogado ou médico. Fazer uma distinção entre esses profissionais é negar a própria essência da lei, que determina que, aqueles que prestam serviço autonomamente deverão Ter sua responsabilidade verificada.

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Assim, ao determinarmos que a responsabilidade do transportador alternativo é subjetiva, passível de apuração de culpa, algumas pessoas poderiam entender ser desnecessária a aplicação do presente diploma legal a essa questão, utilizando-se tão somente do artigo 159 do Código Civil, onde determina-se uma responsabilidade extracontratual com apuração de culpa.

Porém, o CDC ainda não foi devidamente explorado por diversos profissionais do direito, como também não vêm sido aplicado com freqüência entre os magistrados de 1a Instância, que ainda relutam em usufruir de uma lei tão completa e bem formulada nas relações tipicamente de consumo. Esta lei é tão magnificamente completa que, ao permitir essa exceção, o que deixaria aquele consumidor teoricamente desprotegido, face a sua hipossuficiência e vulnerabilidade, determinou, na parte concernente aos direitos básicos do consumidor, em seu artigo 6o , VIII, "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências".

A inversão do ônus da prova, apesar de não ser um direito subjetivo do consumidor, devendo ser apurada pelo próprio julgador, é um grande diferenciador. A velha máxima de que aquele que alega deve provar, inverteu-se. Daí, o próprio profissional autônomo deverá, diante da determinação do magistrado, provar que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia na prestação de determinado serviço. Vale ressaltar que, a lei não obriga o julgador a inverter o ônus da prova, essa é uma liberalidade colocada à sua disposição quando este verificar que o consumidor é hipossuficiente, vulnerável ou suas alegações forem verossímeis.

O CDC ainda permite ao consumidor que ação seja proposta em seu domicílio, de acordo com o artigo 101, I. Isso importa dizer que, a regra do artigo 94 do CPC, que dispõe sobre as ações propostas no domicílio do réu poderá ser utilizada ou não pelo consumidor, dependendo da sua conveniência.

Em suma, a lei protetiva das relações de consumo deve ser utilizada pelos profissionais de direito, bem como pelos julgadores, sempre que estivermos diante de uma típica relação de consumo, valendo-se de todas as nuances elencadas no diploma do consumidor a fim de expurgar os desequilíbrios entre os contratantes, e ainda, possibilitando a todos insurgirem-se contra quaisquer produtos ou serviços que lhes causem danos a sua integridade física e psíquica.

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Sobre o autor
Katia Fernanda Almeida Duarte

acadêmica de Direito da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Katia Fernanda Almeida. A responsabilidade civil nos transportes alternativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/499. Acesso em: 28 mar. 2024.

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