A insuficiência de núcleos da Defensoria Pública da União no interior do Estado da Bahia como um obstáculo à efetiva prestação da assistência jurídica

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25/06/2016 às 16:24
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Este trabalho analisa a evolução do movimento em prol do acesso à justiça no âmbito internacional e no Brasil, estudando a Defensoria Pública da União e a interiorização do judiciário federal, associando o número de núcleos da DPU ao acesso à justiça.

Introdução:

Uma das grandes questões que se encontra em pauta na ciência jurídica hodiernamente diz respeito à efetivação dos direitos fundamentais. Após longa fase de abstrações, período em que foram formulados os direitos substantivos dos homens através do desenvolvimento de teorias elaboradas – como a do negócio jurídico, do contrato, da posse, dentre outros temas utilizados no mundo forense –, percebe-se hoje que os direitos já estão postos e delineados suficientemente, restando ser efetivados (BOBBIO, 1992).

Com efeito, o estudo processual moderno revela que os conceitos inerentes à sua ciência já alcançaram níveis satisfatórios, de sorte que “não se justifica mais a clássica postura metafísica consistente nas investigações conceituais destituídas de endereçamento teleológico” (DINAMARCO, 1987, p. 20). Portanto, já há algum tempo o tema em foco é a instrumentalidade do processo, ou seja, como fazer para que o instrumento do qual o direito de vale seja capaz de tornar realizável o poder jurisdicional.

A temática do acesso à justiça está imersa neste ponto. É dizer, para que o processo possa assumir o seu caráter instrumental  - e, assim, possibilitar a efetivação do direito material – é necessário que haja um processo de inclusão, ampliando-se o acesso com a mitigação das suas barreiras (HABERMAS, 2002).

O acesso à justiça é tido hoje como um direito fundamental no sentido de que a sua inexistência acarretaria a denegação de todos os demais (SANTOS, 2000, p. 167). Do mesmo modo, o acesso à justiça é tratado também, em seu significado constitucional, como o mais básico de todos os Direitos Humanos (SCHELEDER, 2009). Sua efetivação pressupõe a superação de barreiras das mais diversas naturezas, como a questão das custas processuais, das distintas possibilidades pessoais e jurídicas das partes, bem como o problema relacionado à representação judicial dos interesses difusos. Entretanto, mais que isso, uma prática de acesso vai além da representação judicial de interesses, perpassando por um novo enfoque muito mais amplo, abrangendo, inclusive, alterações nos procedimentos judiciais, mudança na estrutura ou criação de tribunais, modificações no direito substantivo, etc. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

O processo de interiorização da Justiça Federal é exemplo de reforma judicial com o propósito de adotar no Brasil um “novo enfoque ao acesso à justiça”, simplificando a acessibilidade das partes ao Poder Judiciário na medida em que aproxima os cidadãos dos órgãos julgadores (MONTAGNOLI, 2009). Este fenômeno teve início com o advento da Lei n. 10.772/03, que instituiu os Juizados Especiais Federais e criou Subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia, ampliando a “quantidade de tribunais” (ou seja, de órgãos do judiciário federal) e alterando a sua estrutura.

Entretanto, o Poder Público não criou uma quantidade simétrica e proporcional de núcleos da DPU (Defensoria Pública da União), órgão público constituído de advogados remunerados pelo Estado que prestam assistência jurídica aos necessitados. Em outras palavras, não houve (ainda) uma adequada interiorização da Defensoria Pública federal, surgindo então o questionamento inevitável, que é o problema desta pesquisa: a insuficiência de núcleos da DPU no interior da Bahia faz com que permaneçam obstáculos ao acesso efetivo à justiça? Não seria um óbice à prestação da assistência jurídica?

O presente trabalho trata de uma pesquisa qualitativa que objetiva entender a problemática exposta e buscar caminhos que contribuam para o enfrentamento das questões suscitadas. Para tanto, fará uso do método dialético argumentativo, consistindo em revisão de literatura específica e demais materiais bibliográficos pertinentes.

Optou-se por uma pesquisa qualitativa porque nesta é aberto um espaço para buscar percepções e entendimentos de natureza geral de uma questão, ampliando-se a interpretação. Entende-se pesquisa qualitativa como sendo “[…] studies that include qualitative analysis. This means that qualitative research is seen as one sector of the grey area of approaches and methodological solutions surrounding the social survey” (ALASUTARI, 1995, p. 09).

Para que um estudo adote esta metodologia, “[...] it must be assumed that interferences based on purely qualitative analysis, or other references to excerpts or cases in the data, are used as clues in solving the riddle. However, this definition of qualitative research does not rule out the possibility that quantitative analysis of qualitative data, or even a social survey, is used alongside qualitative analysis” (ALASUTARI, 1995).

O método dialético, por sua vez, não se limita às concepções marxista ou hegeliana. Costumou-se dizer que na dialética não há nada em definitivo, absoluto ou sagrado, pois nada existe além do processo ininterrupto do devir e do transitório (KONDER, 1987, p. 34). Mas não é só isso. A dialética assume também outras conotações, podendo ser concebida como um método que se baseia em um processo argumentativo no qual, ao expor as contradições de determinada proposição, tenta produzir verdade (conhecimento) (REALE, 2007, p. 234-256). É esta noção que aqui será empregada. A argumentação assume, nesse contexto, um papel importante, pois designa várias formas de raciocínio que não se deixam enquadrar nas regras da lógica convencional e implicam o relacionamento entre pelo menos dois interlocutores, um deles procurando convencer o outro (THIOLLENT, 2000, p. 29).

Tal estudo é imprescindível para buscar praticidade nas políticas governamentais que visem minimizar as disparidades econômicas entre as partes e concretizar o acesso à justiça para todos. É também atual, uma vez que a Defensoria Pública enquanto instituição é bastante recente, sobretudo a Defensoria Pública da União, que somente foi organizada em 1994 e teve o primeiro concurso para ingresso na carreira no ano 2000. Os destinatários deste trabalho são, de forma direta, os gestores da Administração Pública e estudantes do tema “acesso à justiça” e, indiretamente, a população, beneficiária das reflexões propostas.

Este trabalho busca, portanto, examina o movimento em prol do acesso à justiça (sua evolução e surgimento no Brasil), a identificação dos obstáculos à sua efetivação (as custas processuais, as distintas possibilidades das partes e a questão dos interesses difusos) e as propostas para solução, dando ênfase à assistência judiciária.

Em seguida, analisa a Defensoria Pública da União situando-a entre as “propostas de solução”, identifica os seus “clientes”, examina a natureza do serviço que presta, observando a sua estrutura organizacional (macro e local) e, por fim, visualizando um panorama atual.

Ao final, estuda a Lei n. 10.772/03 e a interiorização da Justiça Federal, questionando a insuficiência de núcleos da DPU nestas localidades.

1. Acesso à Justiça

Para muitos autores, a ideia de acesso à justiça, assim como diversas noções jurídicas e políticas, tem origem na civilização greco-romana. Em Atenas, sob o argumento de que “todo direito ofendido deve encontrar defensor e meios de defesa”, eram nomeados, anualmente, dez advogados para defender os pobres, perante os tribunais civis e criminais, enquanto que em Roma, a ideia de igualdade formal (igualdade perante a lei) contribuiu para consolidar o patrocínio jurídico gratuito aos necessitados, inserindo na legislação de Justiniano a obrigação estatal de “dar advogado a quem não possuísse meios para constituir patrono” (MORAES, 1988, p. 229).

Com os gregos, noticia-se o surgimento da ideia hoje conhecida como isonomia, cuja concepção futuramente teria grande influência sobre os jusnaturalistas na elaboração de estudos dos chamados “direitos humanos”. E, antes mesmo do pensamento socrático, “a Escola Pitagórica já simbolizava a justiça pela figura geométrica do quadrado, em razão da absoluta igualdade dos seus lados, além da utilização de algarismos” (CARNEIRO, 2003, p. 04-05). Dentre os grandes pensadores desta época, Aristóteles é o que mais se destaca, pois foi o formulador do que hoje se entende por justiça, uma vez que desde então já pensava que “o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal” (ARISTÓTELES, 1973, p. 336-337).

Os romanos, por sua vez, sedimentaram as instituições e o formalismo procedimental, etapa fundamental para que futuramente fosse possível pensar em due processo of Law. Percebe-se nesse momento um “notável desenvolvimento dos institutos jurídicos” e clara linha de “evolução da jurisdição” (CARNEIRO, 2003, p. 07).

Em Roma, a religião desenvolve-se e, com ela, o próprio Estado, que assume a função de resolver os conflitos de interesses. Era preciso, então, que o cidadão comparecesse diante do magistrado-pretor e aceitasse a decisão. O pretor elaborava a regra e indicava um árbitro, que decidiria a questão. Com o passar do tempo, o pretor não apenas cria a regra, passando a aplicá-la. Só então é possível falar em jurisdição. Sintetizando, “enquanto o período grego foi rico na discussão de ideias filosóficas, os romanos foram fortes na elaboração do seu direito positivo” (CARNEIRO, 2003, p. 08).

No período medieval, as ideias em torno do acesso à justiça seguem desde a Idade Média bizantina e europeia (séculos IV e V) até o começo do pensamento moderno, com o Renascimento (séculos XV e XVI). Nesse momento, foi incorporado forte conteúdo religioso ao direito e a concepção de justiça passou a ser medida pela sua fé (CARNEIRO, 2003, p. 09).

Teóricos como Santo Agostinho, Santo Isidoro de Sevilha e São Tomás de Aquino desenvolveram pensamentos que influenciaram as correntes filosóficas futuras, sobretudo as reflexões acerca da justiça. No entanto, “as elaboradas discussões acerca da justiça e do justo não tiveram correspondência na prática judiciária institucional”, pois nesta época, ordálios (juízos de Deus) constituíam a fonte primária de julgamento, sendo praticamente desnecessária a representação em juízo. Com efeito, a própria parte, ao se submeter às provas de água ou fogo, proporcionava o julgamento (CARNEIRO, 2003, p. 12-13).

No período moderno, há uma ruptura com a lógica que predominava até então no período medieval de relação entre justiça e religião. A Escola Clássica do Direito Natural passa a reconhecer que a natureza humana é que seria fonte do Direito Natural. Com a divulgação dos escritos de autores como Rousseau e Hugo Grotius, não fica afastada a origem divina do poder dos reis, mas se esboça limitações, de sorte que “começava a se difundir a ideia de que o poder teria por fim a felicidade do povo” (CARNEIRO, 2003, p. 14).

A Revolução Gloriosa (1689) incorpora tais ideias, destacando-se a contribuição de Locke, que sustentava suas teses de Estado de Natureza e de Contrato Social (CHEVALLIER, 1980, p. 105).[i] Tal movimento foi exitoso e já no século XVIII as colônias norte-americanas se insurgem contra a coroa britânica. Na Declaração dos Direitos da Virgínia, documento elaborado após a independência, já se anunciava a consagração dos Direitos do Homem. Em seguida, com a Revolução Francesa, tais direitos universalizam-se. A burguesia, com o propósito de limitar os poderes do Estado, utiliza a teoria da separação dos poderes e do princípio da legalidade, adotando visão absolutamente individualista, protegendo especialmente a propriedade e a autonomia privada (CARNEIRO, 2003, p. 16).

As revoluções burguesas alteram também a própria ideia de nação, Estado e poder popular, criando um novo conceito de Estado Nacional, cuja identidade será resultado da Constituição, documento este que expressa o sentimento comum e a homogeneidade de um grupo (CARNEIRO, 2003, p. 17).

Com a ruptura do Estado Absolutista para o Estado Liberal, houve uma mudança de paradigma na organização e concepção de justiça, a qual acarretou o esvaziamento de uma tendência histórica em favor do acesso à justiça. Isso porque durante a vigência daquele modelo político, os juízes reinícolas[ii] eram um dos pilares estatais, pois justificavam os interesses governistas ao aplicar normas jurídicas contrárias ao bem comum e que somente beneficiavam o soberano e seu poder ilimitado. Diante deste quadro, com o explodir das revoluções burguesas, a tendência era a retirada do poder destes juízes, reduzindo a sua função à de declarar o conteúdo da lei.[iii] Assim, não há qualquer preocupação do Estado Liberal com a prática do acesso à justiça.

Para Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 17), surgia, então, um paradoxo, pois “[...] ao mesmo tempo em que a Constituição do Estado (o novo modelo de organização social) assegura, ao menos formalmente e em tese, a igualdade entre os indivíduos, o que deveria, também em tese, assegurar um igual acesso à justiça, a realidade era bastante diversa. Deveras, a minimização do Judiciário conduz a uma ausência de preocupação com a questão do acesso. Em outras palavras: se a instância judiciária não é importante, por que se preocupar com o acesso?”.

Nas sociedades burguesas, a concepção vigente era a de que, “embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do estado para a sua proteção”. Por serem direitos anteriores à organização estatal, a sua tutela limitava-se a exigir que o Estado não permitisse que ele fosse infringido por outros. O Estado, portanto, permanecia “passivo, com relação a problemas tais como aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10).

A justiça – considerada como um bem ou serviço e não como um direito assegurado – somente era acessível, dentro da perspectiva do laissez-faire, àqueles que pudessem pagar por ela. Com efeito, o acesso meramente formal ao judiciário refletia uma igualdade de mesmo grau entre os abastados e os integrantes das classes menos favorecidas (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

O liberalismo econômico e a sua influência política trouxeram à tona graves desigualdades socioeconômicas, gerando concentração e acumulação de riquezas pela classe burguesa industrial, dando ensejo ao surgimento de questões relevantes expressadas nas correntes socialistas, anarquistas e outras (CARNEIRO, 2003, p. 19-20).

Com o empobrecimento resultante da referida concentração de riquezas, sob a influência da filosofia de marxista – que aponta as mazelas do capitalismo -, surgem disputas entre burguesia e proletariado até então inexistentes.

Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 20) registra que as “reivindicações do movimento marxista, especialmente no campo trabalhista, serviram de marco histórico em muitos países para a discussão do acesso à justiça, enquanto proteção do trabalhador”, concluindo que “o direito do trabalho foi o ponto de partida do verdadeiro acesso à justiça”.

Conforme as sociedades liberais foram crescendo em tamanho e complexidade, o “conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical” e com esse crescimento, os conflitos sociais passaram a ser mais frequentes, v.g., nas causas consumeristas, e ganharam complexidade, como é o caso da urgência em tutelar os interesses difusos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10).

Assim, uma postura estatal ativa passou a ser exigida a fim de proteger esses novos direitos humanos e de superar a igualdade formal até então vigente, adotando-se ações governamentais para garantir a efetivação dos direitos daqueles que não têm condições de custear a sua tutela. Dessa forma, o direito ao acesso à justiça teve atenção especial com as reformas surgidas no welfare state, procurando-se “armar” os indivíduos de novos direitos substantivos, pois “a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11).

No Estado Social, o Poder Público intervém visando assegurar “[...] não mais aquela igualdade puramente formal, utópica, concebida pelo Liberalismo, mas a procura de uma igualdade material, permitindo que os mais desfavorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à participação, àquilo que já se sustentava no passado, a felicidade” (CARNEIRO, 2003, p. 21).

Superando-se a concepção exacerbadamente individualista pós-revolucionária que vigorava nas sociedades burguesas europeias, o chamado Estado de bem-estar social logrou pensar e desenvolver alternativas à desigualdade do acesso à justiça existente entre pessoas que possuíam condições financeiras e os chamados “necessitados”, ou “juridicamente pobres”.

Durante a década de 90, verificou-se uma “contrarreação” ao Estado Social, que seria a fase “pós-social”. Nesta, a intervenção é cada vez menor em função das economias de mercado, que impossibilitam a manutenção de programas sociais, privatizando serviços não essenciais e diminuindo investimentos nos serviços essenciais, gerando desemprego e diminuição da assistência a direitos básicos, tais como a saúde, o idoso e a criança, inclusive causando obstáculos materiais ao acesso à justiça (CARNEIRO, 2003, p. 30).

Atualmente, o direito de acesso à justiça é considerado um direito charneira, porque a insuficiência deste acarretaria a denegação a todos os demais (SANTOS, 2000, p. 167); entrementes, continua encontrando grandes obstáculos à sua efetivação.[iv] O certo é que a difusão das ideias de acesso seguiram do berço europeu rumo aos demais países do mundo e este processo não se deu de forma homogênea.

  1. Desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil

No Brasil, o acesso à justiça sofreu duras quedas até se estabilizar. Do ponto de vista legislativo, há estudos que consideram que a assistência judiciária tem suas origens fincadas nas Ordenações Filipinas. Nesse sentido, Humberto Penha de Moraes (1988) destaca que este diploma legal previa, no seu Livro III, Título 84, § 10, a seguinte redação: “[...] em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pagua o agrgravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar o aggravo" [sic].

As Ordenações Filipinas passaram a vigorar no Brasil em 11 de janeiro de 1603 e tinham algumas disposições sobre um suposto direito das pessoas pobres e miseráveis terem patrocínio de advogado, destacando-se dispositivo segundo o qual “o juiz deve sempre preferir o advogado de mais idade e de melhor fama ao mais moço e, principalmente, a fim de que não seja mais perito o da parte contrária” (CARNEIRO, 2003, p. 34).

Após a proclamação da Independência do Brasil em 1822, o cenário do acesso à justiça no país em nada mudou. A Constituição de 1824, por sua vez, concedia ao Imperador “poderes que o colocavam na vanguarda de um governo de cunho absolutista”,[v] apesar dos avanços conscritos no título VIII, influenciado pelo modelo francês de 1791, que tratava das garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, e mesmo quase três séculos depois, as Ordenações Filipinas continuavam vigendo no país (CARNEIRO, 2003, p. 35).

Entretanto, consoante Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (2003, p. 36), o acesso à justiça em verdade “simplesmente inexistiu no Império brasileiro, até porque é fruto de um processo histórico e político ainda não consolidado àquela altura da evolução do País”.

Após a abolição da escravatura e a queda do Império, em 1889, foi proclamada a República e, em seguida, ao longo do século XX, “a noção de acesso à justiça como atividade criativa, como favor prestado aos mais pobres única e exclusivamente no campo da litigância, do processo, e em especial na área penal, foi a tônica dominante” [sic]. Ao longo de todo o século e praticamente até a década de 80, a “legislação brasileira apresenta normas com tendências sociais e de política largamente intervencionista do Estado, na trilha teórica e mesmo institucional daquelas editadas nos países desenvolvidos” (CARNEIRO, 2003, p. 37).

O direito de acesso à justiça ganhou previsão constitucional no Brasil pela primeira vez com a promulgação da Constituição Federal de 1934,[vi] que inseriu a assistência judiciária no seu art. 113, n. 32, dentro dos “Direitos e Garantias Individuais” e desde então esse direito vem, sistematicamente, sendo reconhecido pelas ordens constitucionais subsequentes.

Por outro lado, a regulamentação desta previsão somente quase vinte anos depois, com o advento da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, estabelecendo normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados. Somente após a edição desta lei passou a existir interesse pela criação de órgãos de assistência judiciária, tendo os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo criado o cargo de Defensor Público, com a particularidade de que neste último o defensor fazia parte da Procuradoria-Geral do Estado, enquanto que naquele o defensor integrava o Ministério Público (CARNEIRO, 2003, p. 38).

A previsão constitucional deste direito foi mantida nas Constituições seguintes, ora com avanços, ora com retrocessos.

A Constituição de 1937, que inaugura o Estado Novo, tem como principal ponto de atraso a possibilidade conferida ao Poder Executivo de suprimir as conquistas relativas à ação popular e à assistência judiciária. Por sua vez, a Constituição de 1946 foi duramente afetada por atos institucionais que se sucederam a partir de 9 de abril de 1964, estabelecendo a ditadura militar, perdurando por cerca de vinte anos (CARNEIRO, 2003, p. 38-39).

Durante a vigência do período militar, houve uma estagnação do movimento em prol do acesso à justiça e dos direitos sociais como um todo, que somente teve nova propulsão com a promulgação da Constituição de 1988. Com a nova ordem constitucional, o movimento ganhou fôlego e visibilidade, consagrando o acesso como direito fundamental (art. 5º, XXXV, da CF/88) (ANONNI, 2009, p. 77).

A atual Constituição foi além, assegurando ainda o direito à assistência jurídica integral e gratuita, também com o patamar de cláusula pétrea, ampliando a assistência judiciária e reconhecendo o direito do cidadão à assistência também ao processo administrativo. A gratuidade integral abrange não apenas a isenção das custas judiciais, mas “a todos os instrumentos que se fizerem necessários ao amplo e irrestrito acesso à justiça, desde o advogado até mesmo a emissão de certidões pelos órgãos públicos” (ANONNI, 2009, p. 77).

Instituiu ainda a Constituição Federal vigente, em seu art. 134, caput, a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados [...]”, dispositivo que somente foi regulamentado em 1994, com a Lei Complementar n. 80.

Como se vê, ao longo do processo de consolidação do ideal de acesso à justiça, surgiram severos óbices à sua implementação. A seguir, serão identificados e analisados os principais obstáculos percebidos.

2. Identificação dos obstáculos à efetivação do acesso à justiça

O movimento em prol do acesso à justiça não encontrou facilidades, assim como não encontra atualmente. Diversos são os obstáculos à operacionalidade deste direito, inviabilizando a existência de uma ordem jurídica justa (WATANABE, 1988).

As razões para tanto são diversas e a sua compreensão perpassa pelo entendimento prévio de que o processo, enquanto instrumento de efetivação do direito, é prenhe de valores e ideologias, possuindo a finalidade de garantir a ordem dominante.

Calmon de Passos observa que, a partir dos governantes, “o direito é uma forma de controle social e de manutenção do status quo, o que se traduz em cristalização e desigualdade que foi institucionalizada e, por conseguinte, realizar-se o máximo de injustiça tolerável” (1988, p. 87).

Em relação às dificuldades de implementação enfrentadas pelo movimento do acesso à justiça, alguns autores têm elencado obstáculos a ser transpostos rumo ao seu exercício, destacando-se a contribuição de Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Para eles, a efetividade perfeita do acesso seria com a completa igualdade de armas entre as partes, quer sejam abastadas, quer humildes, mas esta hipótese é utópica porquanto as “diferenças entre as partes não possam jamais ser completamente erradicadas” (1988, p. 15). E realmente jamais seriam, pois há uma função social a ser cumprida também pela disparidade de armas.

Estes autores apontam três principais óbices à efetivação do acesso: a) as custas judiciais; b) as possibilidades das partes; e c) o problema dos interesses difusos.

2.1.As custas processuais

O primeiro grande obstáculo ao acesso à justiça apontado por estes autores são as custas judiciais, pois o Estado, ao prestar o seu poder-dever jurisdicional, tem gastos inerentes a este serviço, tais como o salário de servidores, de juízes, compra de material, manutenção de edifícios, dentre outros, de sorte que os litigantes precisam suportar com parte destas despesas, incluindo os honorários advocatícios.

É importante esclarecer, desde já, que as custas aqui referidas envolvem tanto as taxas judiciais pagas pelo autor ao Estado pela prestação do serviço público que usufruirá, quanto os demais gastos efetuados por autor e réu, quais sejam, pagamento de honorários de advogados, peritos, assistentes técnicos, dentre outros. Com efeito, as custas processuais assumem aqui um conteúdo extensivo, envolvendo todo desembolso financeiro que as partes tenham que arcar licitamente para ver tutelado o seu direito.

Para Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 16), estas custas judiciais agem como “uma barreira poderosa sob o sistema mais amplamente difundido, que impõe ao vencido os ônus de sucumbência”. Portanto, tendo em vista que o processo sempre envolve um risco, pois há incerteza quanto ao provimento jurisdicional final da ação (notadamente se o autor terá êxito ou não), as custas servem também como um aviso para que este não ingresse em aventuras judiciais, sob pena de, se ao final sua demanda for julgada improcedente, ter que arcar com os ônus da sucumbência. Nesta hipótese, o risco é ainda maior, pois além de ter que pagar as custas judiciais e os honorários do seu advogado, terá que arcar com os gastos da outra parte.

Percebe-se que além de viabilizar o ressarcimento aos cofres públicos pelos gastos realizados com a disponibilização da justiça aos jurisdicionados, que é a sua função primordial, as taxas processuais assumem ainda uma função secundária, qual seja, o papel de inibir lides temerárias, pois em caso de improcedência, caberá ao autor o pagamento das custas e das despesas realizadas pela parte contrária.

Ao tratar sobre esta função secundária da taxa judicial, Wilson Alves de Souza  (2006, p. 32) escreve que “o conflito é da natureza humana, existe antes e fora do processo, e não pelo fato de não se pagar pela prestação do serviço” e, na sequência, este mesmo autor observa que “o processo também tem, sob outra perspectiva, de todo modo, um elevado custo para os litigantes, porque têm que pagar advogados e, não raro, despesas com peritos, assistentes técnicos, etc.”.

Portanto, não é de todo certo que as taxas processuais exerçam esta função senão de um ponto de vista teórico não demonstrado no mundo fático.

Os honorários advocatícios pagos pelas partes assumem importância particular, porquanto representem a parcela mais onerosa dos gastos processuais. A relevância das despesas com advogados se dá pelo fato notório que os serviços destes profissionais são geralmente caros, impossibilitando que grande parcela da população tenha acesso a este serviço.[vii]

Ainda dentro do ponto referente aos gastos processuais, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 19) sugerem outro aspecto que obstaculiza o acesso, que é a questão das pequenas causas. Isto porque, para eles, quanto menor é o valor da causa em questão, vale dizer, quanto menor a mensuração econômica do bem da vida pretendido pelo autor, maior, relativamente, serão as custas processuais, ou seja, a taxa judicial cobrada pelo Estado é tanto mais significativa em termos relativos quanto menor e mais irrelevante é o interesse da parte.[viii]

Além desses dois aspectos, há de ser considerado também o tempo que cada parte suporta enquanto o litígio perdura, pois, sendo notório que os processos demoram a se resolverem, existe diferença de capacidade entre a parte que, por possuir recursos, depende em menor intensidade do interesse pleiteado na ação e pode continuar vivendo tranquilamente enquanto aguarda o desfecho processual e aquela que depende em grande intensidade deste interesse pleiteado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 22).

Como exemplo, caso uma pessoa ajuíze uma ação em face do Instituto Nacional do Seguro Social visando concessão do benefício previdenciário, o autor com recursos financeiros suficientes terá maiores possibilidades para suportar a delonga processual. De outro lado, se o autor desta mesma ação fosse uma pessoa sem recursos e que convive em um núcleo familiar de desempregados, realidade perceptível atualmente no Estado da Bahia, haverá menor possibilidade, em tese, de esperar o fim do procedimento.

Outro aspecto importante a ser observado ainda quanto ao tempo é a questão da efetividade da prestação jurisdicional. Para Wilson Alves de Souza (2006, p. 31), a problemática da demora demasiada dos processos é aspecto dos mais graves, pois “[...] está diretamente relacionado com a idéia de efetividade, resultando muitas vezes, na prática, em verdadeira negação do acesso à justiça, o que, consequentemente, afeta os direitos fundamentais do cidadão que está a precisar da tutela jurisdicional do Estado, como também deixa em dúvida a própria credibilidade das instituições estatais”.

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A delonga processual faz com que os custos aumentem com a inflação monetária, pressionando os economicamente mais fracos a abandonar as suas causas ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito. Em resumo, em qualquer que seja o processo, “os altos custos, na medida em que uma ou ambas as partes devam suportá-los, constitui uma importante barreira ao acesso à justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 18).

2.2.Possibilidades das partes

O segundo obstáculo é discrepância entre as possibilidades das partes. A falta de isonomia entre pessoas decorrente desta disparidade lastreia-se no fato de que alguns litigantes gozam de vantagens estratégicas que facilitam o seu acesso à justiça. Esse ponto é amplo e não comporta delimitações, mas Cappelletti e Garth visualizam como mais tangíveis os recursos financeiros, a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação e a distinção entre os chamados litigantes eventuais e os litigantes habituais (1988, p. 21).

Enquanto os recursos financeiros são facilmente detectáveis, possibilitando que determinadas pessoas possam “pagar para litigar” e, assim, sejam capazes de suportar a demora dos litígios, a aptidão para reconhecer e propor uma ação, por outro lado, é questão mais complexa.

Os autores sintetizam as barreiras relacionadas às possibilidades das partes em dois pontos: a) a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa; e b) as diferenças entre litigantes habituais e eventuais.

Em relação à aptidão para reconhecer um direito, Cappelletti e Garth (1988, p. 23) tratam da noção que chamam de “capacidade jurídica”, a qual constitui conceito rico, abrangendo as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas antes mesmo da reivindicação do direito. Envolve as vantagens de recursos financeiros, meio e status social, entre outros aspectos. Essa barreira é ponto de maior importância, pois afeta não somente os despossuídos, mas toda a população em muitos tipos de conflitos.

O “problema educacional” apontado por Wilson Alves de Souza encontra-se inserto nesta noção. Para ele, “o acesso à justiça começa a partir da possibilidade de conhecer os direitos e, quando violados, os mecanismos de exercê-lo, na medida em que o conhecimento dos direitos, em larga medida, passa inicialmente pela informação” (2006, p. 26). Esta premissa já havia sido apontada pelo próprio Kazuo Watanabe, para quem o direito à informação, que inclui a compreensão plena dos direitos subjetivos do cidadão, é pressuposto de uma ordem jurídica justa (1988, p. 128-135).

Além desta “capacidade jurídica”, há também a “capacidade psicológica”, que é a disposição psicológica para que alguém recorra às vias judiciais, pois ainda que alguém saiba da lesão do seu direito e da sua exigibilidade, poderá não buscar o judiciário (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, P. 23). As razões para isto são as mais diversas, como a falta de credibilidade da justiça, receio de advogados e da ritualística forense.

Wilson Alves de Souza (2006, p. 30) trata esta questão como um problema cultural, ressaltando que este envolve a desconfiança das pessoas em relação aos advogados e também ao poder judiciário como um todo. Mas, ao que parece, a questão não se resume ao aspecto cultural, avançando ao plano psicológico de cada indivíduo e da sua história de vida (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Por fim, há notórias vantagens entre os “litigantes habituais” – corporações empresariais e entes estatais, que possuem núcleos jurídicos próprios e que sempre estão enfrentando uma pendência jurídica – e os litigantes eventuais – pessoas comuns, que raramente recorrem ao Poder Judiciário, podendo mesmo morrer sem vir a precisar do auxílio de um advogado. Estas vantagens são as seguintes: a) a maior experiência com o direito e possibilidade de planejar o litígio; b) economia de escala, por possuir maiores casos; c) desenvolvimento de relações informais com membros de instâncias decisórias; d) possibilidade de diluir o risco da demanda por maior número de casos; e) possibilidade de testar estratégias em alguns casos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 25).

2.3.Problemas com os interesses difusos

O terceiro obstáculo se relaciona à questão dos interesses difusos.

Com a mudança do perfil do Estado, notadamente a transformação do Estado Liberal e não-intervencionista para um Estado Social que percebe que o bem comum depende de sua atuação social positiva, surge também uma mudança da compreensão dos direitos, emergindo, assim, os ditos direitos difusos.[ix]

Ocorre que também a tutela destes direitos é complexa, pois não há interesse econômico direto na sua defesa. Isso porque, considerando que a mola propulsora que leva alguém a ajuizar uma ação em face de um banco por uma cobrança indevida é uma eventual futura indenização em quantia, o mesmo não se dá quanto ao meio ambiente, por exemplo, pois na hipótese de ajuizamento de uma ação popular contra ato que lesa a fauna e flora de determinado local, o autor não será beneficiado monetariamente por sua atitude (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 26-27).

Da falta de interesse econômico direto e o notório desestímulo a uma aventura processual que não poderá refletir qualquer benefício direto, emerge uma consequência: é preciso conceder a alguém o poder-dever de atuar na defesa destes interesses, tendo em conta a inestimável importância destes direitos ao funcionamento harmônico da sociedade. Fica claro, assim, que havia grande óbice à tutela dos interesses difusos.

Enquanto se identificava os obstáculos mencionados, foram elaboradas diversas propostas para solucioná-los, possibilitando o acesso. A seguir, serão expostas algumas dessas soluções.

2.4.Reformas para a superação das barreiras ao acesso à justiça

Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificam três movimentos de reformas visando solucionar os problemas acima identificados, chamando-os de “as três ondas”. A primeira fundamenta-se na assistência judiciária e tem por base a superação dos obstáculos individualmente considerados. Entre as outras duas, a segunda busca uma representação jurídica para os interesses difusos e a última dá um novo enfoque de acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 31).

2.4.1.A assistência judiciária

A representação judicial por um advogado é, atualmente, de essencial grandeza, pois se para os técnicos já é complexa a atividade de compreensão do fenômeno jurídico, quiçá imaginar isso de pessoas humildes e excluídas socialmente. Portanto, não só para estas pessoas, mas para todos é imprescindível o acompanhamento de um profissional especializado e, sobretudo, conhecedor dos ritos processuais (SOUZA, 2006).

A assistência judiciária é, portanto, a disponibilização de serviços jurídicos por parte de um profissional técnico aos pobres (aqueles que não possuem recursos para arcarem com os gastos de um advogado particular). Ela teve início como um munus honorificum (se baseava em serviços prestados por advogados particulares,[x] sem contraprestação, inspirados num sentimento de solidariedade) e, com o seu reconhecimento veio a omissão estatal na adoção de medidas concernentes à sua implementação. Diante da ineficiência deste modelo, surgiu uma primeira grande reforma que originou o sistema judicare (CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 32).

Neste modelo, implementado originariamente na Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha Ocidental, o serviço de assistência judiciária, que é tido como um direito, também era prestado por advogados particulares, contudo estes não são inspirados meramente em sentimentos de solidarismo, sendo remunerados pelo Estado. Os advogados cadastravam-se como concedentes do serviço cuja lista era extensa, pois a remuneração paga pelo Estado para estes profissionais era suficiente para atrair quase todos eles. Por sua vez, os resultados deste modelo são gritantemente positivos, em que pese suas limitações (os advogados não atuavam em diversas áreas e não se prestava à tutela dos direitos difusos) (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 36).

Não obstante, a despeito das conquistas deste esquema, Mauro Cappelletti e Bryant Garth direcionam duras críticas a este modelo, notadamente que o judicare, embora supere as barreiras de custo, não ataca os obstáculos de outras naturezas, pois confia aos pobres a tarefa de reconhecer as causas e procurar auxílio, além de não encorajar, nem permitir que o profissional individual auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se pode valer de remédios jurídicos (1988, p. 38).

Ademais, embora seja intuitivo que o necessitado geralmente procura por advogado em causas que lhes são próximas (v.g. matéria criminal ou de família), não é correto imaginar que este poderia identificar os seus “novos direitos” porventura violados e, por outro lado, permaneceriam as barreiras psicológicas e culturais para a busca por um escritório de advocacia na perspectiva de discutir a questão com um advogado particular (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Tal proposta não enfrenta, igualmente, a questão da disparidade entre os litigantes organizacionais e continua tratando os pobres como indivíduos, negligenciando a sua situação enquanto classe, não oferecendo auxílio para casos-testes ou ações coletivas. Em síntese: o judicare não é aparelhado para transcender os remédios individuais (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Outro modelo de assistência judiciária que surgiu ao longo do movimento em prol da consolidação do acesso à justiça foi o esquema de advogados remunerados pelos cofres públicos, o qual se aponta como surgido com o Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, em 1965. Segundo essa proposta, a assistência judiciária, prestada por advogados pagos pelo Estado e encarregados de defender os interesses dos pobres enquanto classe deveria ser prestada por “escritórios de vizinhança”.[xi] Não exclui a possibilidade de defesa individual dos direitos dos pobres, mas caracteriza-se por “grandes esforços no sentido de fazer as pessoas pobres conscientes de seus novos direitos e desejosas de utilizar advogados para ajudar a obtê-los” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

A mais importante característica desse modelo é que “[...] os advogados tentavam ampliar os direitos dos pobres, enquanto classe, através de casos-teste, do exercício de atividade de lobby, e de outras atividades tendentes a obter reformas da legislação, em benefício dos pobres, dentro de um enfoque de classe” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 40).

São nítidas as vantagens desta proposta sobre o sistema judicare, pois ataca outras barreiras ao acesso individual além dos custos, em destaque os obstáculos que se relacionam à desinformação jurídica pessoal dos pobres, podendo ainda suportar os interesses difusos ou de classe dos necessitados, adquirindo vantagens sob os litigantes habituais por meio dos casos-teste com a aquisição de experiência para futuras situações. Sintetizando, nesse modelo cria-se uma categoria de profissionais eficientes para atuar pelos pobres e inaugura-se uma tendência educacional, auxiliando-os a reivindicar os seus direitos.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 41) apontam algumas críticas a este esquema, como a agressividade nos casos-teste, minimizando a importância dos casos individuais, ou o seu caráter paternalista ao tratar os pobres como incapazes de pleitear seus próprios direitos, mas a principal crítica é, sem dúvida, a necessidade de apoio governamental para atividades de natureza política que muitas vezes é dirigida contra o próprio Estado. A solução vislumbrada a este óbice é a independência de influência governamental direta.[xii]

Entretanto, esta solução não basta por si só, devendo ser combinada com outras, posto que, ao revés do que ocorre no juicare, não pode garantir o auxílio jurídico como um direito. Ressaltam Cappelletti e Garth que “não é possível manter advogados em número suficiente para dar atendimento individual de primeira categoria a todos os pobres com problemas jurídicos” (1988, p. 43).

Portanto, embora louvável o êxito dos dois modelos comentados, a assistência judiciária não pode ser o único enfoque a ser dado na tentativa de viabilizar o acesso, pois comporta intrinsecamente limitações no seu exercício, sendo identificáveis, de plano, quatro grandes problemas. São eles o exorbitante número de advogados necessário, por vezes maior que a procura; disponibilidade de profissionais para atendimento às pessoas carentes, aumentando a dotação orçamentária estatal; a inviabilidade para solucionar as pequenas causas individuais e, finalmente, a ineficácia para a tutela dos direitos difusos não ligados diretamente aos pobres, ou seja, aqueles não considerados como direitos da “classe pobre” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49).

2.4.2.A representação judicial para os interesses difusos

Na “segunda onda”, o problema a ser resolvido era a dificuldade para tutelar os interesses difusos diversos daqueles dos pobres (pois, como já dito, no sistema do office economic opportunity também havia possibilidade de tutelar os direitos difusos, mas tão-somente aqueles relacionados aos necessitados).

Nesse momento, buscou-se uma “reflexão sobre noções tradicionais muito básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49). Isso porque a concepção processual tradicionalista não deixava espaço para a proteção dos interesses difusos, pois o processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre as mesmas a respeito de seus próprios interesses individuais.

Surgiram, então, importantes reformas que mudaram esta noção clássica: i) num primeiro momento, no que toca à legitimidade ativa, reformas legislativas e importantes decisões de tribunais estão cada vez mais permitindo que indivíduos ou grupos atuem em representação dos interesses difusos (é o caso atualmente da ação popular e da legitimação de associações para a propositura de ação civil pública); ii) num segundo momento, a proteção de tais interesses tornou necessária a transformação do papel do juiz e de conceitos básicos como citação, coisa julgada e o direito de ser ouvido, sendo importante que haja um representante adequado para agir em benefício da coletividade, ainda que seus membros não sejam citados individualmente (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 50).

Alguns modelos apontados por Cappelletti e Garth surgiram para tentar solucionar tal problema. São eles: i) a ação governamental; ii) o procurador-geral privado; e iii) o advogado particular do interesse público.

No primeiro modelo (fórmula oficial), o Poder Público cria órgãos encarregados de representar e defender os interesses coletivos, tal como ocorre com o Ministério Público. No entanto, tais órgãos são, “por sua própria natureza, incapazes de fazê-lo”, seja por não dispor de treinamento adequado e experiência necessária, seja porque a condição de funcionário público poderá inibi-lo de adotar posição independente de um “advogado do povo” contra poderosas organizações ou contra o próprio Estado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 51).

Outras soluções são as agências regulamentadoras, que embora sejam mais especializadas que o Ministério Público e organizações desta natureza, também são limitadas, pois “inclinam-se a atender mais facilmente a interesses organizados, com ênfase no resultado das suas decisões” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 52).

Com relação à técnica do procurador-geral privado, esta consiste em permitir a propositura, por indivíduos, de ações em defesa da coletividade. É exatamente esse o caso da ação popular, garantia prevista na Constituição Federal, que legitima que qualquer cidadão ajuíze ação visando anular ato lesivo ao patrimônio público ou a entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, isentando o autor ainda do pagamento de custas processuais e honorários de sucumbência (art. 5º, LXXIII).

Por fim, com relação ao modelo do “advogado particular do interesse público”, tal proposta passa pelo reconhecimento prévio de que é necessário permitir ações coletivas no interesse público. A partir daí, surgem diversas reformas, principalmente na França (lei Royer) e na Alemanha (lei sobre contratos-padrão, de 19 de abril de 1977). Em seguida, o foco passa a ser organizar e fortalecer grupos privados para a defesa de interesses difusos, pois enquanto alguns interesses coletivos são bastante organizados, como os trabalhistas, outros não são, como é com os direitos dos consumidores (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 57-59).

Cappelletti e Garth destacam algumas ações concretas que têm esta função: de um lado, aponta as ações coletivas, as ações de interesse público e as sociedades de advogados que se ocupam delas e, de outro, as assessorias públicas (1988, p. 49-67).

A distinção entre as ações coletivas (“class action”) e as ações de interesse público é que a primeira permite que um litigante represente toda uma classe de pessoas em certa demanda, evitando os custos de criação de uma organização permanente, sendo que os honorários advocatícios são condicionais (somente são pagos caso haja êxito na demanda). No entanto, uma e outra exigem especialização, experiência e recursos em áreas específicas, que apenas grupos permanentes, prósperos e bem assessorados possuem (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 61).

O “advogado do interesse público” é outra solução que surgiu nos Estados Unidos em 1970. Nesse caso os advogados do interesse público “[...] acreditam que os pobres não são os únicos excluídos do processo de tomada de decisão em assuntos de importância vital para eles. Todas as pessoas que se preocupam com a degradação ambiental, com a qualidade dos produtos, com a proteção do consumidor, qualquer que seja sua classe sócio-econômica, estão efetivamente excluídas das decisões-chave que afetam seus interesses” (HALPERN apud CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 62).

Como esses interesses não puderam ser protegidos por organizações, organizaram então sociedades de advogados do interesse público para atender a esse tipo de demanda. Mas tais advogados têm sido bastante criticados por não serem responsabilizáveis pelos interesses que representam, existindo ainda dúvidas quanto à sua viabilidade a longo prazo.

Há ainda uma fórmula entre a proposta oficial e a privada de advogados do interesse público, chamada de assessoria pública. A ideia consiste em “usar recursos públicos, mas confiar na energia, interesse e fiscalização dos grupos particulares” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 64).

A alternativa apontada por Cappelletti e Garth como mais vantajosa para a sociedade é a adoção de um modelo pluralístico, pois “[...] esses interesses exigem uma eficiente ação de grupos particulares, sempre que possível; mas grupos particulares nem sempre estão disponíveis e costumam ser difíceis de organizar. A combinação de recursos, tais como as ações coletivas, as sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública e o advogado público podem auxiliar a superar este problema e conduzir à reivindicação eficiente dos interesses difusos” (1988, p. 66-67).

2.4.3. Novo enfoque de acesso à justiça

Como visto, houve grande progresso nas reformas da assistência jurídica e da busca de mecanismos de reivindicação para representação de interesses públicos. Os programas de assistência judiciária estão tornando disponíveis advogados para muitos que não podem custear esses serviços, tornando as pessoas cada vez mais conscientes dos seus direitos, havendo progresso ainda quanto à reivindicação dos direitos tradicionais e novos. Foram desenvolvidos também mecanismos para representação dos interesses difusos, não apenas dos pobres, mas de toda a sociedade.

Entretanto, o reconhecimento da importância dessas reformas “não deve impedir-nos de enxergar os seus limites” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67). É preciso um novo enfoque de acesso à justiça cujo alcance seja bem mais amplo.

Com efeito, enquanto a primeira e a segunda onda preocupam-se com a representação efetiva dos interesses anteriormente não representados ou mal representados, a “terceira onda” inclui a advocacia, judicial e extrajudicial, através de advogados particulares e públicos, e vai além, centrando suas atenções no “conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67-68). Seu método não consiste em abandonar as técnicas mencionadas nas duas primeiras “ondas” de reforma, mas tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.

A representação judicial meramente não se mostrou suficiente, por si só, para tornar essa mudança de regras “vantagens tangíveis” na prática. Não é possível nem desejável resolver estes problemas com advogados somente, pois cada vez mais a questão se revela muito mais complexa.

Para Cappelletti e Garth, um novo enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, inclusive alterações no procedimento, mudança na estrutura dos tribunais, criação de novos tribunais, uso de pessoas leigas ou “paraprofissionais”, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução de litígios (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71).

A noção de assistência jurídica proposta inscrita na Constituição de 1988 está relacionada a essa nova postura, existindo nítida distinção entre esta, a assistência judiciária e o benefício da gratuidade da justiça.

A gratuidade da justiça diz respeito somente à “garantia conferida ao cidadão de ter acesso à justiça sem necessidade de pagamento de taxa judiciária, custas e toda e qualquer despesa processual independentemente do resultado do julgamento da causa” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 33), ou ainda o “direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual perante o juiz que promete a prestação jurisdicional” (PONTES DE MIRANDA apud PIMENTA, 2004, p. 101). Envolve, portanto, o direito de não pagar honorários de advogado da parte contrária em caso de sucumbência. Por outro lado, a assistência judiciária constitui a gratuidade da justiça e a concessão de advogado para demandar judicialmente.

A assistência jurídica é mais ampla e implica “o serviço de defender o cidadão em juízo (assistência judiciária) e o serviço de orientação profissional, respostas a consultas, etc.” (SOUZA, 2006, p. 33).

Nota-se que o surgimento dessas noções do campo do direito está diretamente associado à percepção dos obstáculos já identificados anteriormente. Em outras palavras, ao compreender que custas e honorários obstaculizavam o acesso, criou-se a gratuidade da justiça; quando foi constatado o peso que os honorários advocatícios exerciam, criou-se a assistência judiciária gratuita e, por derradeiro, quando se verificou que os óbices persistiam por conta da falta de orientação e educação jurídica, findou-se por desenvolver a ideia de assistência jurídica.

Em resumo, a assistência jurídica “engloba a assistência judiciária, além de outros serviços não relacionados ao processo, tais como orientar, esclarecimento de dúvidas e prestando orientação e auxílio à comunidade [...]” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 103).

O acesso à justiça para as pessoas carentes pressupõe então não só a gratuidade da justiça, mas também a existência de núcleos de assistência jurídica, de sorte que a disponibilidade ao cidadão de meros órgãos de assistência judiciária não é suficiente ao exercício, de fato, do direito de acesso pelos pobres, pois permaneceriam graves obstáculos à sua concretização, como a desinformação, impossibilidade de perceber a lesão de um direito, inexistência de tutela às demandas coletivas, etc.

De acordo com previsão constitucional, a DPU é órgão de assistência jurídica e não se limita ao fornecimento de advogados aos pobres para o acompanhamento de suas lides, mais que isso, importa a “orientação jurídica e a defesa dos necessitados”. Ou seja, a Defensoria Pública proporciona “[...] além da assistência jurídica integral, o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa, mesmo àqueles economicamente suficientes, quando a causa verse sobre direitos indisponíveis, como é o caso dos réus na justiça criminal, ou em casos de relevante interesse público, na curadoria ao vínculo” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 103).

Diante disto, resta indagar: qual dos modelos mencionados o Brasil adotou? Em que cenário se enquadram a Defensoria Pública da União e o fenômeno da interiorização da Justiça Federal?

3. A Defensoria Pública da União

A DPU é um órgão estatal composto por defensores públicos que, a rigor, são advogados remunerados pelo Estado, aos quais cabe a prestação da assistência jurídica aos necessitados no âmbito federal. É, por assim dizer, uma das soluções encontradas pela sociedade brasileira para superar os obstáculos enfrentados pelas pessoas carentes no que tange ao acesso à justiça.

Entretanto, é imprescindível seja respondida, de logo, a seguinte questão: qual foi o modelo adotado pela sociedade brasileira: o esquema do judicare ou do office economic opportunity?

A Constituição Federal de 1988 trata a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional” e atribui a este órgão a função de prestar orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, determinando ainda que a organização da carreira de Defensor Público se dê via lei complementar, estabelecendo, para tanto, algumas premissas básicas a serem seguidas, quais sejam, o ingresso na carreira mediante concurso público de provas e títulos, assegurando-se aos integrantes a inamovibilidade e vedando o exercício da advocacia fora das atribuições constitucionais.

A lei que veio regulamentar a mencionada carreira de Defensor Público Federal[xiii] foi a Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, a qual organiza a DPU e prescreve normas gerais para as defensorias públicas dos Estados. Segundo esta lei, com alteração que sofreu pela Lei Complementar n. 132, de 2009, a Defensoria Pública é “[...] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados [...]”.

Assim, percebe-se que a DPU reflexo da influência brasileira do modelo americano do office economic opportunity, posto que compreende uma equipe de advogados remunerados pelos cofres públicos com a incumbência de defender os interesses dos pobres, judicial e extrajudicialmente, inclusive defendendo os seus interesses enquanto classe, porquanto tenha atribuições para a defesa dos interesses difusos.

A questão dos “escritórios de vizinhança” idealizada pelo modelo americano foi bem concebida pelo direito brasileiro, pois, segundo a LC 80/94, a atuação da DPU será por meio de núcleos coordenados por um Defensor Público-Chefe e, mais recentemente, com a alteração sofrida pela Lei Complementar n. 132, de 2009, foi acrescido o art. 15-A, segundo o qual “a organização da Defensoria Pública da União deve primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”.

Aliás, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Resolução AG/RES 2821 (XLIV-O/14) buscando garantir o acesso à ajustiça, visando aprofundar o compromisso dos Estados-membros em prol do fortalecimento e da autonomia das Defensorias Públicas oficiais.

No entanto, o modelo brasileiro não é um office economic opportunity “puro”, pois, tendo em conta as deficiências deste sistema já analisadas, diante da inexistência de Defensoria Pública no local, a praxe forense, sobretudo em matéria penal, continua sendo a de nomeação de defensores dativos e ad hoc, de forma que seria melhor classificado como um office economic opportunity “misto”.[xiv]

A Constituição foi além e conferiu à Defensoria Pública também a legitimidade para representar judicialmente interesses difusos, autorização normativa esta que já havia sido conferida desde o advento da Lei da Ação Civil Pública (art. 5º, inciso II, da Lei 7.347/85). Nesse aspecto, a defensoria é um exemplo de ação governamental, tal como o Ministério Público e as Agências Reguladoras, uma vez que não se trata de uma iniciativa particular propriamente dita, pois nestas, as pessoas, por meio de advogados particulares, ajuízam ações visando defender determinado direito difuso, enquanto que a tutela dos interesses difusos pela Defensoria Pública independe de representação por parte do cidadão, bastando que o defensor tenha conhecimento da irregularidade.

Mais que representar juridicamente interesses, a Defensoria Pública encontra-se na ideia daquilo que Cappelletti e Garth chamam de “novo enfoque de acesso à justiça”, pois tal órgão é incumbido de prestar assistência jurídica (aconselhamento jurídico, assessoria jurídica popular).

Mas não são todas as pessoas que têm o direito de serem assistidos pela Defensoria Pública. Consoante dispõe a Constituição da República, “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.[xv] Trata-se de conceito jurídico indeterminado,[xvi] técnica legislativa comum do constituinte, cujo conteúdo há de ser preenchido ante a realidade fática.

O conceito de necessitado não pode ser vislumbrado através de um parâmetro objetivo das condições financeiras daquele que postula em juízo, vale dizer, é preciso que sejam examinadas as diferenças financeiras entre as partes litigantes, além do valor da causa, de tal sorte que se maior for a sua mensuração econômica, a parte economicamente fraca não terá como arcar com os gastos da lide, óbice este que inexistiria caso o valor fosse reduzido.

Nas palavras de Wilson Alves de Souza,“necessitado não é conceito que se restrinja aos conceitos de miserável ou pobre, mas sim deve ser entendido como referente à pessoa que, nas circunstâncias do caso concreto, não tem condições de arcar com as despesas do processo, de modo a que o custo do processo a colocaria ou a sua família em dificuldades financeiras, ou então teria que alienar bens para postular a tutela dos seus direitos perante o Estado-Juiz” (2006, p. 33).

No entanto, esta imprecisão fez com que o CSDPU (Conselho Superior da Defensoria Pública da União) criasse a Resolução n. 13, de 25 de outubro de 2006, de acordo com a qual “presume-se necessitado todo aquele que integre família cuja renda mensal não ultrapasse o valor de isenção de pagamento do Imposto de Renda”[xvii], instituindo assim um parâmetro objetivo. Portanto, no procedimento de concessão da assistência jurídica gratuita pela DPU prevalece o critério objetivo instituído pela citada Resolução.

Censurável por igualar formalmente situações distintas (pois, como dito, o conceito de necessitado jurídico depende da natureza na demanda e da condição econômica da parte contrária), tal critério ofende também ao princípio da igualdade material, pois toma como base a renda do núcleo familiar, de sorte que uma pessoa que tenha salário ligeiramente inferior ao valor de isenção do pagamento de Imposto de Renda poderia ser “assistida” pela defensoria, mas alguém que seja integrante de um núcleo familiar composto por cinco ou mais pessoas cuja renda bruta totaliza um valor pouco acima do referido valor de isenção não poderia ser acompanhada pela DPU, em que pese a diferença das condições vivenciadas entre as partes e, principalmente, da natureza da lide.

A Constituição Federal e a própria LC 80/94 preveem alguns princípios institucionais, prerrogativas e garantias dos membros da Defensoria Pública. De acordo com o art. 3º da LC 80/94, são princípios da defensoria a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Por unidade (ou unicidade), entende-se que “a Defensoria Pública corresponde a um todo orgânico, sob uma mesma direção, mesmos fundamentos e mesmas finalidades” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 112). Permite-se, assim, aos membros da Defensoria Pública substituírem-se uns aos outros, sendo cada um deles parte de um todo.

O princípio da indivisibilidade, por sua vez, significa que “a Defensoria Pública atua como um todo orgânico”, não estando sujeita a rupturas e fracionamentos, sendo este princípio uma consequência lógica daquele anteriormente tratado (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 113).

Por fim, o princípio da independência funcional refere-se à autonomia da qual a instituição é dotada perante os demais órgãos estatais, estando “imune de qualquer interferência política que afete a sua atuação” (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 114). Tal princípio é de suma importância, mormente porque em diversas situações o defensor patrocina causa de alguém que litiga contra o próprio Estado. Embora o Defensor Público Geral ocupe o maior grau hierárquico, esta subordinação é apenas sob o ponto de vista administrativo, não podendo o mesmo impor a qualquer dos membros que lhe seja subordinado que atue ou deixe de atuar em determinada causa.

Os Defensores Públicos são dotados ainda de certas garantias funcionais.

Consoante dispõe a Constituição da República em seu art. 134, ao Defensor Público é garantida inamovibilidade, garantia esta que é disciplinada novamente nos arts. 34, 43 e 127 da LC 80/94, acrescentando ainda a autonomia funcional no desempenho das suas atribuições, a irredutibilidade dos vencimentos e a estabilidade.

Por inamovibilidade, entende-se que o “Defensor Público não pode ser removido do seu órgão de atuação contra a sua vontade”, sendo importante frisar que tal garantia prevalece inclusive dentro da mesma comarca, não podendo o defensor ser removido do órgão de atuação do qual é titular para outro da mesma comarca ou fórum (ALVES; PIMENTA, 2004, p. 114).

A garantia da independência funcional equivale ao princípio da autonomia funcional já tratado.

Finalmente, também a irredutibilidade de vencimentos visa garantir maior proteção à atuação do Defensor Público, pois, após três anos efetivo de exercício no cargo, ou seja, após o período de estágio probatório, este somente poderá ser demitido mediante processo administrativo.[xviii]

Ademais, além dessas garantias, há ainda as prerrogativas atribuídas aos defensores para que possam melhor exercer sua função.

Segundo Hely Lopes Meirelles, prerrogativas “são privilégios funcionais, normalmente conferidos aos agentes políticos ou mesmo aos altos funcionários, para a correta execução de suas atribuições legais” (1992, p. 74).

As prerrogativas da Defensoria Pública encontram-se insculpidas nos art. 44 e 128 da LC 80/94, sendo que enquanto o primeiro dispositivo versa sobre as prerrogativas da DPU, o segundo trata das prerrogativas das Defensorias Públicas Estaduais.

São prerrogativas funcionais da DPU, dentre outras, as seguintes: a) intimação pessoal e prazo em dobro; b) não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante, quando o Defensor Público Geral deverá ser imediatamente comunicado; c) ser recolhido em prisão especial ou em sala de Estado Maior; d) usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública; e) comunicar-se, pessoalmente e reservadamente, com seu assistido; f) deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte; g) ter o mesmo tratamento reservado aos magistrados e demais titulares dos cargos das funções essenciais à justiça.

Com relação à intimação pessoal, a LC 132/09 deu nova redação ao art. 44, inciso I, da LC 80/94, e, atualmente, é prerrogativa dos membros da Defensoria Pública da União “receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos”. Esta prerrogativa é antiga e foi inserida no ordenamento jurídico positivado desde o advento da Lei 7.871/89, que inseriu o § 5° ao art. 5º na Lei 1.060/50.[xix]

A intimação pessoal deverá prevalecer inclusive em processos administrativos, mas não tem aplicabilidade em sede de Juizados Especiais por conta do princípio da celeridade[xx] que vigora neste foro especializado. Por outro lado, no que tange à desnecessidade de mandato outorgado ao Defensor Público, esta prerrogativa tem por razão o fato de que a natureza jurídica da representação ao assistido em juízo decorre de lei e a investidura do agente no cargo, e não da outorga do mandato.

A atuação do defensor envolve algumas atribuições das quais os mesmos são dotados, atribuições estas que são classificadas em típicas e atípicas. As primeiras dizem respeito à defesa dos hipossuficientes, enquanto que as atípicas são aquelas que não possuem relação com a condição do assistido, como é o caso da curadoria especial, curadoria ao vínculo, proteção do idoso, fiscalização das delegacias e defesa em ação penal.[xxi]

Os deveres do Defensor Público encontram-se insculpidos nos arts. 18, 45 e 129 da LC 80/94, dentre os quais se destaca o dever de residir na localidade onde exerce suas funções, e as suas proibições estão previstas nos arts. 46 e 130 da LC 80/94 e art. 134, parágrafo único, da CF/88, entre as quais consta a proibição de exercer advocacia privada.[xxii]

Há ainda as causas de impedimento previstas nos arts. 47 e 131, bem como a aplicação analógica das causas de impedimento e suspeição previstas nos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, sendo relevante frisar que o Defensor Público responde funcionalmente pelos seus atos, estando sujeito às sanções de advertência, suspensão por até 90 (noventa) dias, remoção compulsória,[xxiii] demissão e cassação de aposentadoria, a depender da gravidade da falta cometida.

Toda a estruturação da carreira de defensor público federal foi traçada na LC 80/94, sendo que os pontos omissos ou suscetíveis de regulamentação foram objeto de resoluções ou provimentos.

3.1. Aspectos gerais e organização dos núcleos da DPU na Bahia

A Defensoria Pública da União é formada por órgãos de administração superior, órgãos de atuação e órgãos de execução. São órgãos de administração superior da DPU a Defensoria Pública Geral da União, a Sub-Defensoria Pública Geral da União, o Conselho Superior da Defensoria Pública da União e a Corregedoria-Geral da Defensoria Pública da União. Os órgãos de atuação da DPU são as Defensorias Públicas da União nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios e os Núcleos da Defensoria Pública da União. Por fim, são órgãos de execução da DPU os Defensores Públicos Federais nos Estados, no DF e nos Territórios.

O Defensor Público-Geral Federal é o chefe da DPU e é nomeado pelo Presidente da República, dentre membros estáveis da carreira e maiores de 35 (trinta e cinco) anos, escolhidos em lista tríplice em voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros, após a aprovação do seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para o mandato de 02 (dois) anos, permitida a reeleição, desde que precedida de nova aprovação perante o Senado.

O Conselho Superior da Defensoria Pública da União (CSDPU), presidido pelo Defensor Público-Geral Federal, será composto por este, pelo Subdefensor Público-Geral Federal, pelo Corregedor-Geral Federal e por membros natos, em sua maioria representantes estáveis da carreira, dois por categoria, eleitos por voto direito, plurinominal, obrigatório e secreto de todos os integrantes da carreira. Suas atribuições são descritas no art. 10, da LC 80/94.

A Corregedoria Geral da DPU é órgão de fiscalização da atividade funcional e da conduta dos membros e servidores da Defensoria Pública da União.           

Conforme dispõe a Lei Complementar n. 80, a carreira é composta por três categorias de cargos efetivos: Defensor Público Federal de 2ª Categoria (inicial); Defensor Público Federal de 1ª Categoria (intermediária); e Defensor Público Federal de Categoria Especial (final). Os Defensores Públicos Federais de 2ª Categoria atuam junto aos Juízos Federais, aos Juízos do Trabalho, às Juntas e aos Juízos Eleitorais, aos Juízes Militares, às Auditorias Militares, ao Tribunal Marítimo e às instâncias administrativas; os Defensores Públicos Federais de 1ª Categoria atuam nos Tribunais Regionais Federais, nas Turmas dos Juizados Especiais Federais, nos Tribunais Regionais do Trabalho e nos Tribunais Regionais Eleitorais; e, por fim, os Defensores Públicos Federais de Categoria Especial atuam perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Superior Tribunal Militar (STM) e na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. O Defensor Público-Geral Federal atuará perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

No ano de 2009, atuavam na Bahia dois Defensores Públicos Federais de 1ª Categoria, cada qual titular de um dos Ofícios Regionais, e outros doze Defensores Públicos Federais de 2ª Categoria, encarregados por três Ofícios Cíveis, três Ofícios Criminais, cinco Ofícios Cíveis Especiais (atuação perante os JEF’s) e um Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, sendo que havia somente um núcleo em todo o Estado da Bahia, situado na capital.[xxiv]

A DPU ampliou significativamente o seu quadro de defensores desde então.

Atualmente, existem quatro Ofícios Regionais, quatro Ofícios Criminais, sete Ofícios Cíveis Especiais, cinco Ofícios Cíveis Ordinários e um Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, perfazendo um total de vinte e um defensores públicos.[xxv]

A par do núcleo da Capital, existem também outros três situados no interior do Estado. O núcleo de Feira de Santana-BA conta com três defensores públicos federais, enquanto que as unidades de Juazeiro-BA e de Vitória da Conquista-BA possuem outros dois defensores cada.

Além dos defensores públicos federais, compõem os núcleos da DPU no Estado da Bahia servidores, assessores, estagiários estudantes de direito e funcionários terceirizados.

As Assessorias Jurídicas prestam suporte aos defensores e subdividem-se em razão da matéria em Assessoria Jurídica de Direito Civil, Assessoria Jurídica de Direitos Humanos e Tutela Coletiva, Assessoria Jurídica de Direito Penal, Assessoria Jurídica de Direito Previdenciário e, por fim, Assessoria Jurídica Regional.[xxvi]

Estes profissionais exercem função importante ao funcionamento da defensoria, porque o número de defensores é menor do que o necessário ao atendimento da demanda. Este fenômeno é um dos problemas decorrentes da adoção do modelo do office economic opportunity (a necessidade de oferecimento de bons salários para atrair profissionais diligentes acaba onerando os cofres públicos e dificultando a contratação de advogados, causando um déficit do serviço prestado pelos núcleos).

Os servidores exercem funções administrativas, auxiliados pelos funcionários terceirizados, mas, a rigor, é incoerente falar-se em servidores da DPU, posto que desde a sua criação e implementação, foram realizados somente quatro concursos para ingresso na carreira de Defensor Público da União (agora Defensor Público Federal) e houve apenas um certame para o provimento de cargos da Defensoria Pública da União.[xxvii] Os servidores que atualmente compõem o órgão são, em sua maioria, oriundos de outros órgãos da Administração Pública Federal.

Por fim estão os estagiários estudantes de direito. De acordo com a LC 80/94, as Defensorias Públicas adotarão providências no sentido de “selecionar, como estagiários, os acadêmicos de Direito que, comprovadamente, estejam matriculados nos quatro últimos semestres de cursos mantidos por estabelecimentos de ensino oficialmente reconhecidos”, determinando ainda que o tempo de estágio será considerado serviço público relevante e prática forense.

São os estagiários de direito que, por conta do escasso número de defensores, acabam desempenhando a mais importante tarefa da DPU, que é o atendimento ao cidadão, sendo a atuação diária destes acadêmicos vital ao funcionamento da defensoria, seja no âmbito estadual, seja no federal.

3.2. Panorama da Defensoria Pública

No dia 3 de novembro de 2009, o Ministério da Justiça divulgou o III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, lançado na abertura do VIII Congresso Nacional dos Defensores Públicos, em Porto Alegre/RS. Este estudo, produzido pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Sócio-Econômicos (INBRAPE) sob a coordenação da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, além da parceria estabelecida com o Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) e da Associação Nacional dos Defensores Públicos da União (ANDPU), apresenta informações sobre a Defensoria no ano de 2008 e compara este desempenho com os anos de 2004 e 2006.

Este trabalho traça um panorama institucional da Defensoria Pública e constrói também um perfil socioeconômico dos defensores, analisando, dentre outros aspectos, dados sobre a estrutura, orçamento, atividades da defensoria, número de membros, áreas de atuação, remuneração, etc.

O referido estudo demonstra que o número de atendimentos dos Defensores Públicos Federais aos assistidos aumentou, pois em 2006, a DPU contava com 268 membros e realizou 123.548 atendimentos durante o ano, enquanto que em 2008, os Defensores Federais totalizavam 336 membros, com 513.598 atendimentos.

Também a participação dos membros da DPU em audiências de procedimentos judiciais ou administrativos aumentou: em 2006, os Defensores Federais atuaram em 643 audiências cíveis e 2.470 criminais. Já em 2007, esse número elevou-se para 1.604 audiências cíveis e 4.923 criminais. Em 2008, a participação da DPU totaliza 1.633 audiências na área cível e 4.225 na área criminal.

O diagnóstico revela ainda a necessidade de Defensores Federais por unidade da federação. De acordo com o mesmo, em 2008, 213 cargos de defensor estavam vagos e em 2009 esse número reduziu para 145 vagas, esclarecendo ainda que o percentual de preenchimento dos cargos em 2009 é de 69,85%, e que se estima que a DPU necessite de 1.280 para o seu funcionamento satisfatório.

Questão que também foi abordada pelo relatório é a falta da autonomia administrativa, financeira e orçamentária da DPU, que era subordinada ao Poder Executivo, através do Ministério da Justiça, que ensejou, inclusive, a edição de emenda constitucional visando solucioná-la.

Esta pesquisa demonstra ainda que, no país, a produtividade dos defensores em exercício passou de 1,68 mil atendimentos por profissional em 2005, para 2,3 mil em 2008. No último ano, houve um aumento no número de atendimentos em 45,17%. No ano de 2003, 4,5 milhões de pessoas foram atendidas, enquanto que em 2008; 9,6 milhões de cidadãos tiveram acesso aos serviços da defensoria.[xxviii]

4. Interiorização da Justiça Federal e da DPU

Durante muitos anos, um grande obstáculo ao acesso à justiça vivenciado pelas pessoas que moram no campo em todo Brasil era a falta de órgãos do judiciário federal próximos às suas residências. Diante desta situação, normalmente a competência para julgamento das causas que envolviam interesse da União ou de uma das suas entidades autárquicas ou empresas públicas era atribuída ao órgão do judiciário estadual existente na localidade, o qual então acumulava a jurisdição estadual e federal.

Ocorre que o trabalho do próprio juiz estadual já é bastante volumoso, acarretando a notória delonga na prestação jurisdicional, situação esta que evidencia, mais uma vez, obstáculos ao acesso à justiça, pois, de um lado, não era disponibilizado órgão incumbido de poder jurisdicional para prestar tal serviço e, de outra mão, o tempo demandado para o julgamento de uma lide federal perante o juízo estadual evidenciava as possibilidades das partes, fazendo com que indivíduos com poucos recursos desistam ou não se encorajem a ajuizar uma ação judicial.

A solução para tal impasse se deu com o advento da Lei 10.772/03, que criou 183 (cento e oitenta e três) varas federais destinadas à interiorização da Justiça Federal de primeiro grau e à implantação dos Juizados Especiais Federais no país, vale dizer, cuida-se de uma inversão da lógica até então vigente, passando a priorizar pela criação de juízos federais nas comarcas situadas no interior. Foram criadas, então, as Subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia.

Para José Américo Silva Montagnoli (2009), com a interiorização da Justiça Federal, está “[...] lançada a chance para uma processualística inclusiva, em que a sumariedade pela simplificação dos ritos não vulnera mas, ao contrário, prestigia os pilares constitucionais do devido processo, quais sejam, o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, numa dinâmica em que, conforme lembra Jürgen Habermas, os passos de qualquer argumentação – inclusive a judiciária – não pode ser idiossincrático, mas têm de permanecer exeqüíveis intersubjetivamente, não reduzindo os demais atores sociais a meros receptores da resolução emanada de um decisor estatal”.

Atualmente, existem quinze subseções da Justiça Federal no interior do Estado da Bahia, situados nas seguintes cidades: Alagoinhas, Barreiras, Bom Jesus da Lapa, Campo Formoso, Eunápolis, Feira de Santana, Guanambi, Ilhéus, Irecê, Itabuna, Jequié, Juazeiro, Paula Afonso, Teixeira de Freitas e Vitória da Conquista.[xxix]

Considerando que somente nas causas previdenciárias, como regra, haverá competência concorrente entre a Seção Judiciária da capital e a Subseção Judiciária no interior, conclui-se intuitivamente que, na maior parte das situações, a ação, de fato, correrá na Subseção Judiciária interiorana, e assim deveria ser, sob pena de violar o próprio propósito do fenômeno da interiorização da Justiça Federal, que se deu com o objetivo de minimizar os óbices ao acesso à justiça que havia por conta da inexistência de órgãos do judiciário federal no interior.

Por outro lado, nas causas em que a União seja autora, como é o caso das ações de execução fiscal ou de ressarcimento ao erário, caso o indivíduo resida em cidade abrangida por uma Subseção da Justiça Federal, a competência deste juízo para processar e julgar o feito é absoluta por força de disposição constitucional expressa.

Assim, foi dado um primeiro passo rumo à superação das barreiras existentes que obstam o acesso à justiça por parte das pessoas que moram no interior do Estado da Bahia. O problema é que a DPU permanece com uma quantidade de núcleos insuficiente no interior para acompanhar o processo das pessoas carentes que são autoras ou rés nos processos federais em curso nas Subseções. Essa situação acarreta a decretação de revelias, perda de prazos e todos os tipos de danos processuais que o não acompanhamento por um técnico pode levar, sobretudo a falta de orientação e educação jurídica popular. Isso porque, conforme já dito, existem apenas três núcleos da DPU no interior do Estado baiano, enquanto que o Poder Judiciário federal está presente em quinze cidades.

Percebe-se que, não obstante a criação das Subseções Judiciárias Federais no interior para tentar sanar o obstáculo ao acesso à justiça que existia, a falta de simetria por parte da DPU faz com que outros obstáculos persistam. Embora haja órgãos incumbidos de poder jurisdicional próximos às localidades em que os moradores carentes do campo vivem, os mesmos permanecem sem recursos para pagar honorários a advogados particulares.

O caráter misto do sistema office economic opportunity, considerada possível solução ao impasse (pois, nos casos em que não houvesse núcleos dos escritórios jurídicos populares, a defesa da pessoa carente seria prestada por advogados particulares) aplica-se, em regra, na prática forense baiana somente nas causas que envolvem direitos indisponíveis, como causas criminais. Não há uma prática judiciária tendente a restringir os casos de decretação de revelias ou de perda de prazos, pois no processo civil, busca-se uma verdade meramente formal.

Ademais, mesmo com a nomeação de dativos e ad hoc, permaneceriam os problemas já noticiados quando se tratava do sistema judicare, pois tais profissionais tutelariam o direito meramente individual, não prestariam assistência judiciária (orientação e educação jurídica), não enfrentariam a questão da disparidade dos litigantes organizacionais e tratariam os pobres como indivíduos, negligenciando sua situação como classe.

Aqueles que residem no interior e são partes em processos que tramitam no interior, ao recorrerem à DPU em Salvador, enfrentando longas viagens (que, ressalte-se, envolvem custos significativos) para a capital baiana, onde são informados da impossibilidade de os membros desta defensoria em atuar nas causas que correm no interior, até mesmo por conta da garantia da inamovibilidade. Os membros da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE), por sua vez, embora considerado o princípio da unicidade e da possibilidade, em tese, de atuação no foro federal pelos membros deste órgão, rejeitam atuar nas causas federais fundamentados na autonomia funcional da qual são dotados, mormente pela impossibilidade de cumular as atribuições da DPE e DPU sem prejuízo da qualidade do serviço do qual tem a obrigação funcional de prestar, ou seja, uma impossibilidade de ordem material.

Em face desse breve quadro, percebe-se que não basta a criação de órgãos do judiciário federal no interior da Bahia para que reste minimizado o problema do acesso à justiça por parte da população que lá reside, sendo imprescindível a criação de uma quantidade proporcional de núcleos da DPU para a prestação do serviço de assistência jurídica àqueles que não têm condições de arcar com os gastos de um advogado. A insuficiência de núcleos da DPU no interior do Estado da Bahia acarreta desrespeito a garantias processuais mínimas conferidas pela própria Constituição Federal, tais como o direito ao contraditório e à ampla defesa e o direito à assistência jurídica integral e gratuita, permanecendo obstáculos individuais ao acesso à justiça por parte das pessoas carentes que residem em municípios jurisdicionados por uma Subseção Federal, pois não é conferida oportunidade a essas pessoas para exercer sequer o direito à assistência judiciária, quiçá da assistência jurídica.

A questão da falta de simetria entre a interiorização da Justiça Federal e os núcleos da DPU é problema que já foi inclusive identificado pelo Poder Executivo. A interiorização necessária e sugerida da DPU iniciou-se no dia 7 de outubro de 2009, quando entrou em vigência a LC 132/09, que alterou a LC 80/94 e a lei 1.060/50, diploma este que, através do seu art. 15-A, determinou que a Defensoria Pública da União deverá “primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos”.

Por fim, dispõe o art. 98 da Emenda Constitucional n. 80 que “o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população, estabelecendo também que “no prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais”.

Considerações finais:

Em face do exposto, traçando de forma esquemática e em síntese, pode-se concluir o seguinte:

a) O movimento em prol da efetivação do acesso à justiça é fenômeno que tem início remoto, o qual veio a se aperfeiçoar durante o welfare state;

b) Ao longo dessa marcha, foram identificados diversos obstáculos, dentre os quais se destacam os gastos enfrentados pelas partes, as distintas possibilidades das partes e a impossibilidade de tutela individual dos direitos difusos;

c) Dentre as soluções encontradas para solucionar o problema das custas, surgiu a assistência judiciária, ou seja, a disponibilização de um advogado pago pelos cofres públicos para tutelar os direitos dos pobres, e a representação judicial para os direitos difusos;

d) A representação judicial de interesses não é, por si só, suficiente para concretizar o acesso à justiça, sendo necessário um novo enfoque, que perpassa pela mudança de procedimentos, alteração e criação de tribunais, modificação nos direitos subjetivos, etc.;

e) O Brasil adotou um modelo de office economic opportunity misto, pois existem núcleos de assistência em que trabalham advogados públicos encarregados de fornecer conselhos jurídicos aos necessitados – a Defensoria Pública – e, quando inexistem núcleos desta natureza, são nomeados advogados particulares a serem pagos pelos cofres públicos (defensores dativos ou ad hoc);

f) A Defensoria Pública da União é, conforme a Constituição, o órgão público encarregado de prestar assistência jurídica no âmbito federal àqueles que comprovem carência. No entanto, a DPU, assim como qualquer exemplo de aplicação do modelo do office economic opportunity, encontra dificuldades ao desempenhar as suas funções, pois depende excessivamente de apoio governamental;

g) A interiorização da Justiça Federal encontra-se na esteira de uma tendência de ampliação do acesso à justiça (novo enfoque), na medida em que o acesso ao órgão do judiciário é, em si, um óbice à justiça, e tornar tais órgãos mais próximos à população diminui as barreiras que existem. Nesse sentido, foram criadas Subseções no interior que prestam tutela jurisdicional às cidades lá situadas;

h) Não obstante, para que a interiorização da Justiça Federal seja completa, faz-se necessária uma atitude simétrica da Defensoria da União, ou seja, é preciso que sejam criados uma quantidade proporcional de núcleos da DPU que atuem perante as Subseções criadas no interior;

i) A não criação de tais núcleos tem como principal fator a vinculação excessiva da DPU ao Poder Executivo, dependendo deste para obter materiais, em que pese ter sido reconhecida a sua autonomia no plano normativo.

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Sobre o autor
Igor Souza Marques

Analista Técnico Jurídico no Ministério Público do Estado da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduando em Direito Público pela PUC-MG.

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Trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).

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