O QUE É A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA?

29/06/2016 às 11:55
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Este texto pretende definir de forma objetiva o que é o fenômeno da judicialização da política, abordando os aspectos gerais em torno desse tema.

Na arena pública e institucional contemporânea, o Poder Judiciário tem aparecido com destacado papel. Seja em países onde predomina o direito baseado em costumes e em decisões judiciais (common law), seja em países onde prevalece e se valoriza o direito legislado (civil law), a ênfase no papel do juiz ocupa o debate nas principais democracias do mundo (TASSINARI, 2013; VIANNA, 2013).

            À época do surgimento do liberalismo o parlamento era o detentor da vontade geral do povo. Já sob as políticas do welfare state, o Poder Executivo era o condutor da satisfação dos direitos sociais. Recentemente, na segunda metade do século XX, o Poder Judiciário assume o importante papel de guardião dos direitos então reconhecidos nas constituições democráticas (STRECK, 2011; SANTOS, 2011). Atualmente, é também crescente o interesse da sociedade por seus direitos e por questões discutidas e decididas no Judiciário. E o motivo para isso parte tanto do campo institucional quanto da própria sociedade.

            De um lado, busca-se cada vez mais levar às pessoas o conhecimento de julgamentos e decisões importantes do país, por exemplo, por meio da veiculação das sessões do Supremo Tribunal Federal (STF), ou mesmo em sua reprodução a partir dos meios de comunicação. De outro lado, a sociedade está mais consciente de seus direitos, seja por uma incipiente preocupação por questões ligadas à “corrupção” e ao exercício do poder (o que abrange uma ampla gama de condutas criminosas e antiéticas), seja por problemas que afetam, diária e diretamente, a vida de cada pessoa, como questões ligadas a relações de consumo, direitos de minorias, reconhecimento de novos direitos, problemas de acesso às políticas públicas etc. (BARROSO, 2009). Para Boaventura de Sousa Santos (2011), esses fatos refletem a consciência dos cidadãos de que os processos de mudança constitucional lhes deram importantes direitos, passando a enxergar nos tribunais um instrumento para incluir no contrato social as suas reivindicações.

            Nesse contexto, destaca-se o papel do juiz e dos tribunais em diversos aspectos da vida social e política, o que representa processos complexos de mudanças institucionais na relação entre os poderes. Barroso (2009) afirma que houve uma ascensão institucional do Poder Judiciário, que levou os juízes a deixarem de compor um departamento técnico especializado, passando a desempenhar papeis políticos, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Mas a que isso se deve? Por que o direito e as instituições judiciais hoje expandiram seu horizonte e influenciam (ou mesmo assumem) a tomada de decisões sobre temas que, clássica e tradicionalmente, não lhe eram habituais?

            Este texto não pretende traçar o longo percurso histórico que culminou na presença do Judiciário na política, mas apontará alguns motivos para isso ter ocorrido. No Brasil, por exemplo, durante boa parte do século passado o Estado preocupou-se com a regulamentação do Executivo e sua burocracia, incluindo o Judiciário como parte de seu aparato. Além disso, o Estado desenvolvimentista dos anos 1950-1960 não via os tribunais como parte das estratégias para superação do subdesenvolvimento (SANTOS, 2011).

            Somente após o término dos regimes ditatoriais no final do século XX o Judiciário alcançou proeminência, que se manifestou em três campos: na garantia de direitos, no controle da legalidade e dos abusos do poder e na judicialização da política. De um modo geral, isso ocorre após o declínio do Estado intervencionista, seja de feição desenvolvimentista, seja o relacionado às políticas de welfare na Europa.

            Em consequência, dois polos de proteção de direitos incorporam-se ao Judiciário: o primeiro, relacionado às regras de mercado e aos contratos/negócios privados, que exigem rapidez, eficácia, segurança e estabilidade nas decisões judiciais; o segundo está relacionado à garantia dos direitos sociais e econômicos não cumpridos pelas instâncias políticas, polo este no qual reside o fenômeno da judicialização da política.

            Além disso, existe o fato de, no Brasil, a Constituição de 1988 ter contribuído para o protagonismo do Judiciário, acompanhando as mudanças que já vinham sendo observadas em muitas democracias pelo mundo (VIANNA et al., 2007; SANTOS, 2011; MOTTA, 2012; STRECK, 2011). Fatores constitucionais diversos podem ter contribuído para a ampliação dos objetos de decisão dos tribunais, podendo ser destacados alguns: o extenso catálogo de direitos fundamentais; a ampliação do acesso à justiça, seja por meio das instituições de representação de classes, seja pela institucionalização da Defensoria Pública e do Ministério Público; por mudanças da própria teoria do direito e da jurisprudência; e o combate à corrupção pelo (no) Judiciário.

            O debate em torno da judicialização pode se dar de duas formas: (i) normativamente, ao analisarem-se questões como a supremacia da Constituição (constitucionalismo) sobre os atos do parlamento e do executivo (democracia); e (ii) analiticamente, cuja abordagem se preocupa com o ambiente político-institucional e com a avaliação do processo de judicialização da política e das relações sociais (CARVALHO, 2004). Este texto se preocupa predominantemente com o segundo núcleo de discussões, embora não desconsidere por completo a primeira forma.

            A definição ou a conceituação da judicialização da política e das relações sociais (ou somente judicialização) pode variar no tempo e no espaço. De um modo geral, esse fenômeno reflete as novas demandas por direitos e compreende também as intervenções judiciais na política em países democráticos. Ela tem sido estudada por pesquisadores de todo o mundo, inclusive levando em conta as peculiaridades de cada país (TATE, 1994; TATE; VALLINDER, 1995; HIRSCHL, 2006).

            A principal - e controvertida (KOERNER et al., 2011) - referência em teoria política é a obra organizada por Tate e Vallinder (1995), denominada The Global Expansion of Judicial Power. No Brasil, a obra é referência para diversos trabalhos sobre a judicialização da política (CARVALHO, 2004; VERONESE, 2009; NUNES, 2011; VIANNA, 2013; AVRITZER, 2013). A definição que se extrai do estudo é de que a judicialização é uma atuação do Poder Judiciário com a finalidade de rever a decisão de um poder político tomando como base a Constituição. Pode também significar a transferência das decisões do Legislativo/Executivo para o Judiciário, bem como a expansão dos métodos de decisão judiciais para instâncias não judiciais. Pode ser também identificada com o “poder de veto” que o Judiciário exerceria de forma contramajoritária, atendendo aos interesses de grupos minoritários (NUNES, 2011; APPIO, 2008).  Interpretando a obra de Tate e Vallinder (1994), Maciel e Koerner (2002) destacam que a judicialização indica que os juízes prefiram participar da policy-making em vez de deixá-la a critério de políticos e administradores.

            Tate e Vallinder elencam algumas causas para a judicialização ou o maior uso dos tribunais que podem ser trazidos também para o contexto brasileiro: a expansão democrática, a separação de poderes, a política em prol de direitos de minorias, uso dos tribunais por grupos de interesse ou por oposições políticas, partidos políticos e coalizões governamentais fracas, a percepção negativa pela sociedade em matéria de políticas públicas, dentre outras.

            Relacionar a judicialização da política somente com as decisões judiciais que interferem de algum modo na política não parece totalmente correto ou claro para Koerner et al. (2011), que observam que esse tipo de interferência já acontecia nas monarquias europeias, à época da Revolução Francesa, quando juízes eram ativos participantes das “intrigas palacianas” (KOERNER et al., 2011, p. 33). Logo, a judicialização nada teria de novidade e por isso a relação entre direito e política que se dá no processo de judicialização deveria ser mais bem trabalhada. Da mesma forma, em países que possuem o denominado controle de constitucionalidade das leis[1] (CARVALHO, 2007) é natural que haja tal tensão, o que no Brasil ocorre desde a primeira Constituição republicana, de 1891.

            Hirschl (2006) refere-se à judicialização a partir da abordagem de transferência de poder das instituições representativas para as judiciárias, cuja origem estaria na transição (constitucional e democrática) ocorrida em diversos países que passaram por regimes autoritários do século passado. Cada vez mais os tribunais são utilizados para tomar decisões difíceis (hard cases), relacionadas a dilemas morais fundamentais e questões de política pública.

            Nesse contexto, a judicialização pode ocorrer de três formas. No nível mais abstrato, a judicialização refere-se à disseminação do discurso jurídico e normativo, de seus jargões, regras e processos na esfera política e nos fóruns de elaboração de políticas públicas. Questões de direito passam a incorporar o vocabulário da sociedade e de instituições não diretamente ligadas a assuntos jurídicos. Hirschl denomina isso de “judicialização das relações sociais”. É importantes destacar que, em outros termos, Vianna et al. (1999) referem-se à judicialização das relações sociais ao observarem a regulação da sociabilidade e das práticas sociais pelo direito. Em linhas gerais, trata-se da invasão do discurso jurídico e suas práticas em áreas de interesse muitas vezes privadas, como contratos, relações de gênero nas famílias, proteção da criança e do adolescente em situação de risco, casos de violência contra a mulher, dentre outros.

            Retornando à segunda forma de se verificar a judicialização, ela ocorre com a finalidade de proteger direitos fundamentais (de liberdade e igualdade) dos cidadãos, influenciando diretamente os trâmites gerenciais, ao buscar também a garantia, em relação às políticas públicas, ao procedimento justo, à igualdade de oportunidades, à transparência etc. Esse tipo de judicialização talvez seja o mais evidente, pois parte da base da sociedade, o que Hirschl (2006, p. 725) chama de “judicialization from below”.

            Enfim, o terceiro aspecto da judicialização é a que ocorre com a denominada “megapolítica”, que interfere diretamente na questão política: relacionando-se ao processo eleitoral, às prerrogativas dos poderes, à gestão macroeconômica, à segurança nacional, à justiça de transição, à legitimidade do regime etc. Para outros, judicialização é o exercício por parte das instituições judiciais do controle de constitucionalidade das leis e atos do Poder Executivo ou, simplesmente, é o que se identifica na crescente invasão do direito na organização da vida social, causando a publicização da esfera privada (VIANNA, 2013; VIANNA et al., 1999).

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            Vê-se, assim, que a judicialização é termo polissêmico, assumindo conceitos próximos, mas diferentes, a depender da cultura política e jurídica em exame. De forma clara, pode-se dizer, enfim, que a judicialização ocorre quando uma decisão judicial interfere em questões cuja tomada de decisão caberia, a princípio, às instâncias de representação política (legislativo e executivo).

REFERÊNCIAS

APPIO, E. Direito das minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

AVRITZER, L. Judicialização da política e equilíbrio de poderes no Brasil. In: AVRITZER, L. et al. (Org.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 215-220.

BARROSO, L. R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista de Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte, ano 60, n. 188, p. 35-50, jan./mar. 2009.

CARVALHO, E. R. de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Política. Curitiba, n. 23, p. 115-126, nov. 2004.

______. Revisão judicial e judicialização da política no direito ocidental: aspectos relevantes de sua gênese e desenvolvimento. Revista de Sociologia Política. Curitiba, n. 28, p. 161-179, jun. 2007.

HIRSCHL, R. The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide. Fordham Law Review, v. 75, n. 2, p. 721-754, 2006.

KOERNER, A. et al. Sobre o judiciário e a judicialização. Nuevos paradigmas de las ciencias sociales latinoamericanas, Bogotá (Colombia), v. 2, n. 4, p. 17-52, jul./dez. 2011.

MACIEL, D. A.; KOERNER, A. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova, São Paulo, n. 57, p. 113- 134, 2002.

MOTTA, F. J. B. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

NUNES, D. J. C. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2011.

SANTOS, B. de S. Para uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

STRECK, L. L. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

TASSINARI, C. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

TATE, C. N. The judicialization of politics in the Philippines and Southest Asia. International Political Science Review, v. 15, n. 2, p. 187-197, 1994.

______; VALLINDER, T. (Orgs.) The global expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995.

VERONESE, A. A judicialização da política na América Latina: panorama do debate teórico contemporâneo. Escritos (Fundação Casa de Rui Barbosa), v. 3, p. 215-265, 2009.

VIANNA, L. W. A judicialização da política. In: AVRITZER, L. et al. (Org.). Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 207-214.

VIANNA, L. W et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

VIANNA L. W. et. al. Dezessete anos de judicialização da política. Tempo Social, v. 19, n. 2, São Paulo, p. 39-85, nov. 2007.

 

[1] Controle de constitucionalidade é o procedimento pelo qual o Judiciário verifica a adequação de atos normativos e administrativo à Constituição, a partir de procedimentos específicas no âmbito do Supremo Tribunal Federal ou dos Tribunais estaduais, ou a partir da arguição da questão inconstitucional em qualquer processo que não possua como finalidade exclusiva o controle de constitucionalidade. O surgimento desse modo de aferir a adequação ou violação das leis à Constituição se deu, inicial e notoriamente, em 1803, nos Estados Unidos da América, no caso Marbury VS. Madison.

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Sobre o autor
Nairo José Borges Lopes

Professor do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG). Bacharel em Direito pela UNIFENAS. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto extraído da Dissertação de Mestrado "A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE MEDICAMENTOS: O DIREITO À SAÚDE ENTRE A DIGNIDADE E A EQUIDADE" (UNIFAL/MG).

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