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A noção de senciência e o direito dos animais.

A onça Juma e a cédula de R$ 50,00

01/08/2016 às 15:28
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A dignidade de um animal é algo que talvez nunca fora muito bem assimilado pela sociedade humana que, embora tenha aderido à compreensão da necessidade de uma digna existência aos animais desde 1978, ainda vem demoradamente efetivando esse direito.

A morte da onça Juma, em Manaus, no evento do rito de passagem da tocha olímpica por aquela cidade, pasmou a muitos de nós pela banalidade dos fatos que levaram à extirpação da vida de um animal que é tão simbolicamente referenciado em nosso país, seja nas propagandas de preservação ambiental, seja, até mesmo, na cédula de cinquenta reais que, cotidianamente (ou não), usamos.

A banalidade a que se refere, logicamente, não está na defesa alegada pelo soldado do exército para cometer o sacrifício do animal que, segundo a nota oficial, ameaçou um militar de um ataque naquela ocasião. A banalização reside numa causa muito mais antecedente: o uso daquele animal como atrativo de degustação visual em prol do espetáculo olímpico.

Enquanto uns dirão que o animal foi morto porque ameaçou a integridade de uma pessoa no evento, aqueles que possuem um olhar mais além sobre o nexo de causas e consequências do episódio terão a lucidez maior de visualizar que o animal não teria atacado alguém se não tivesse ficado estressado e, antes ainda, não teria ficado estressado se não tivesse sido levado ao famigerado evento.

Um pouco de esclarecimento ainda nos permitirá questionar a razão de o animal ter sido levado a condições tão estressantes quanto as de um local apertado, onde ele se vê cercado de uma multidão barulhenta, e obrigado a permanecer quieto, silencioso e, acima de tudo, à vista de todos (um alvo ótico da admiração dos presentes). Não será preciso ter um felino doméstico em casa para lembrar que contextos assim não agradam gatos, quiçá agradariam onças. Claro que a lembrança será uma analógica semelhança para facilitar nossa compressão de quanto o momento era inoportuno para a presença do animal selvagem.

No campo da positivação jurídica, questões como essas já foram inclusive normatizadas em declarações internacionais. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, promovida pela Unesco  em Bruxelas, na Bélgica, em 27 de janeiro de 1978, proclama no item 2 do seu artigo 10 o seguinte:

As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal.

A dignidade de um animal é algo que talvez nunca fora muito bem assimilado pela sociedade humana, que, embora tenha aderido à compreensão da necessidade de uma digna existência aos animais, desde 1978, ainda vem demoradamente construindo o alcance e a consequente efetividade do que seria esse direito. Afinal, a que animal devemos dar essa dignidade? Como lembra, de forma inovadora, a instigante pesquisa de Melanie Joy, porque o tratamento digno a animais ainda é tão distinto. A questão transformada em título de sua fascinante obra é a síntese dessa contradição: por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas?

Essa questão perpassa para os estudiosos quase sempre na necessária pesquisa sobre a racionalidade dos animais, de modo que o resultado, no mais das vezes, tangencia a conclusões como: “devemos proteger e conferir dignidade aos animais que mais se apresentam como racionais” (ou o mais próximo do que se queira ver como racionalidade). Uma lógica evidentemente antropocentrista de enxergar direitos, pois se trata de outorgá-los àqueles que se assemelhariam aos humanos em algum nível intelectual. Com esse entendimento, o homem se investe de uma potestade quase divina para dizer o direito à vida digna e, assim, conferir a dignidade apenas à criatura que seja mais próxima à sua imagem e semelhança, permitindo aos sorteados viver no que acredita ser o paraíso de sua companhia afetuosa. Aos demais, a morte é um convite irrecusável pelo uso do que for necessário à satisfação do prazer humano.

O conceito de “senciência” vem sendo difundido aos poucos a fim de tentar alargar essa dimensão protetora dos animais, permitindo enxergar que, se um animal possui a capacidade de sentir emoções, ele é merecedor de uma tutela jurídica. É uma visão mais ampla, a qual atende ao pensamento inteligente de Jeremy Bentham, quem afirmava que, na indefinição de qual animal merece a tutela ou não, só havia uma questão a se elucidar, de forma que “a questão não é saber se [os animais] são capazes de raciocinar ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento” (Jeremy Bentham apud MANSOLDO, A. Educação Ambiental na Perspectiva da Ecologia Integral - Como Educar Neste Mundo Em Desequilíbrio? Belo Horizonte: Autêntica, 2012).

A senciência enquanto sensibilidade animal tem feito profundas revoluções jurídicas em ordenamentos mais propensos à evolução da tutela do direito à dignidade, como na França, onde o Código Civil foi alterado ano passado para constar que “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade”. Confira o artigo 515-14:

Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité. Sous réserve des lois qui les protègent, les animaux sont soumis au régime des biens” - Código Civil francês art. 515-14

E para que não se acuse da síndrome de “viralatismo” pela Europa, lembro que, na Índia, o juiz Manmohan Singh, da corte de Nova Délhi, em 2014, reconheceu que as aves têm direito à liberdade e dignidade (HT Correspondent. Hindustan Times. New Delhi. Postado em 18 de maio de 2015. Disponível em <http://www.hindustantimes.com/india-news/birds-have-fundamental-right-to-fly-they-cannot-be-caged-delhi-hc/article1-1348209.aspx >. Acesso em 01 de jun de 2015).

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Nosso vizinho, inclusive, já saiu em disparada na vanguarda dessa mudança de concepção. A Argentina, país ao qual me refiro, na emblemática Sentença da Câmara Federal de Cassação Penal reconheceu o direito à liberdade de Sandra, um orangotango, sem necessitar de alteração legislativa, mas partindo de uma interpretação dinâmica do Direito. Eis um trecho da sentença onde se reconheceu aos animais a condição superior de sujeitos não humanos titulares de direitos:

“A partir de una interpretación dinámica e no estática, menester es reconocerle al animal el caracter de sujeto de derechos, pues los sujetos no humanos (animales) son titulares de derechos, por lo que se impone su protección en el ámbito competencial correspondiente” - Causa n. CCC 68831/2014/CRC1 - SENTENCIA - CAMARA FEDERAL DE CASACION PENAL - CAPITAL FEDERAL, CIUDAD AUTÓNOMA DE BUENOS AIRES - 18 de Diciembre de 2014

Na Bahia, a proteção de um chimpanzé não atingiu tanto êxito, tendo o juiz Edmundo Lúcio, da 9ª Vara Criminal de Salvador, negado liminar, em Habeas Corpus, que pedia a transferência da chimpanzé chamada Suíça, que vive em uma jaula no zoológico de Salvador, para uma reserva ecológica localizada em Sorocaba, interior de São Paulo. Um dos argumentos da medida heroica manejada pelo promotor Heron José Santana foi de que “a ciência já provou que os chipanzés têm capacidade de raciocínio tal qual o homem, portanto, trata-se de uma pessoa que não pode permanecer enjaulada”.

Ainda falta muito para alcançarmos patamares mais dignos quanto aos animais aqui no Brasil. Como destacou Tales num dos artigos do site Megajurídico, citando Souza:

Muito embora já se reconheça direitos morais a animais não humanos, esses continuam a ser tratados pelos sistemas legais como propriedade dos humanos e, por isso mesmo, os animais não humanos não detêm direitos legais, não são sujeitos de direitos, apenas objetos de direitos. São defendidos somente como propriedade de alguém que seja um sujeito de direitos (SOUZA, G., 2004 apud SILVA, Tales Araujo. Os animais e o ordenamento jurídico: eles podem ser sujeitos de direito? MegaJurídico, 18 de Fevereiro de 2015. Disponível em: http://www.megajuridico.com/os-animais-e-o-ordenamento-juridico-eles-podem-ser-sujeitos-de-direito/. Acesso em: 18 jun. 2016.

É válido reconhecer que não se trata de uma mudança apenas em nossas instituições sobre o uso ou não de animais o que precisamos, mas de uma revolução cultural na forma de pensar de nossa sociedade em relação ao tratamento dado aos nossos animais. Necessitamos mesmo exigir mais e buscar uma efetiva proteção que não se resuma à lembrança figurativa eternizada de raros animais em cédulas.


REFERÊNCIAS

MANSOLDO, A. Educação Ambiental na Perspectiva da Ecologia Integral - Como Educar Neste Mundo Em Desequilíbrio? Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SILVA, Tales Araujo. Os animais e o ordenamento jurídico: eles podem ser sujeitos de direito? MegaJurídico, 18 de Fevereiro de 2015. Disponível em: http://www.megajuridico.com/os-animais-e-o-ordenamento-juridico-eles-podem-ser-sujeitos-de-direito/. Acesso em: 18 jun. 2016.

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Sobre o autor
Lucas Correia de Lima

Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2015). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (2017). Mestre pelo Instituto de humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (2019). Doutorando em Direito pela UFBA. Foi advogado do Município de Ipirá no ano de 2015, aprovado em primeiro lugar na seleção, saindo das atividades para exercer a função de Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2015-2016), também aprovado em primeiro lugar. Articulista com obras publicadas em variados boletins informativos e revistas jurídicas, em meio físico e eletrônico. Membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Membro colaborador do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS). Professor da Uninassau, na disciplina de Direito das Obrigações e Tópicos Integradores II. Integra atualmente o Tribunal de Justiça. Conferencista, pesquisador e palestrante. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: sociedade, universidade, políticas afirmativas, negro, mulher, educação, crime, lei e violência.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Lucas Correia. A noção de senciência e o direito dos animais.: A onça Juma e a cédula de R$ 50,00. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4779, 1 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50263. Acesso em: 22 dez. 2024.

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