I. INTRODUÇÃO
Sabe-se que a Engenharia Genética é uma área que sem dúvidas abriu inúmeras portas no tocante à busca de novos métodos terapêuticos voltados para a cura das mais diversas patologias. A modulação corporal a nível genético certamente abriu demasiadamente os horizontes biológicos, o que proporcionou uma vasta gama de procedimentos genéticos, a exemplo da modificação de DNA, da fertilização in vitro, da descoberta de processos que ensejam a clonagem, dentre outros. Contudo, sabe-se também, e isso a história confirma, que nem sempre as inovações técnico-científicas foram utilizadas para promover a erradicação de enfermidades ou realizar as satisfações vitais, ao passo que não foram poucos os casos em que uma importante descoberta no âmbito científico foi utilizada ulteriormente para atos dignos de repúdio e indignação. Destarte, há atualmente, estabelecida principalmente pelo Estado através de leis, códigos de ética e precipuamente a Constituição, uma delimitação no que tange aos procedimentos realizados em escala genética.
Diante disso, se verifica que a grande problemática em voga gira em torno de o quanto se pode realizar a consecução de tais procedimentos, de forma que isso não passe a comprometer a própria noção de “seres naturais”, e, por conseguinte, infligir aos demais seres participantes do ambiente natural uma funesta consequência. Em sentido mais estrito, isso infere-se em como definir e distinguir o que é mero manejo genético do corpo para fins terapêuticos, da neoeugenia, um intento claramente seletivo, deletério, libertino e, precipuamente, antiético. Há no Direito, principalmente no ramo do Biodireito e da Bioética, uma extensiva discussão sobre, e que se mostra por demais intricada e polêmica, porquanto o verdadeiro âmago da questão se configura em como o Direito definirá esse limiar, de forma que leve em consideração fatores técnicos-biológicos, morais e jurídicos, o que termina por não dispensar também de uma análise à luz do dispositivo constitucional.
Com o intuito de procurar uma síntese que leve em consideração todos esses aspectos, este ensaio se destinará a formular e promulgar uma concepção que busque, à luz dos dispositivos jurídicos cabíveis, e dentro dos limites técnico-científicos, fomentar uma reflexão a respeito do quanto se pode interferir nas atividades vitais, de forma que estas não se tornem um pretexto para realização de práticas seletivas indiscriminadas, e que ultrajem os preceitos fundamentais respeitantes à vida. Tomando como padrão teórico-argumentativo o primordioso trabalho de Gabrich Fonseca Freire, se descortinará tais meandros, e destarte, tentar-se-á outrossim contribuir para uma organização social que valorize o bem-estar de todos, acima de qualquer imposição ideológica, moral ou política.
II. RETROSPECTIVA HISTÓRICA: AS DIVERSAS EUGENIAS
Desde os primórdios dos tempos, o ser humano se viu permeado de atos volitivos encaminhados para uma espécie de melhora pessoal, tanto psíquica, como física. Não é de hoje que os indivíduos tentam desesperadamente encontrar uma forma de amenizar as limitações de seu corpo e de sua mente, de maneira que isso se transforma por vezes no único objetivo de vida desses indivíduos. Como foi dito, isto é uma questão que emergiu, nos moldes que se discute hoje, há não mais do que 200 anos, de forma que se desenvolveu concomitantemente à ciência, especialmente as ciências biológicas. Porém, as primeiras verificações de práticas seletivas precursoras da eugenia moderna datam da antiguidade clássica, onde muitos povos, a seus modos, introduziram em suas culturas ideias eugênicas.
Na Grécia Antiga, já se averigua caracteres ligados à superioridade de indivíduos em relação a outros, porquanto era estabelecido e cultuado um certo modelo de beleza física. Na famigerada cidade-estado Esparta, um aspecto disso pode ser verificado nas seleções que os anciãos realizavam nos recém-nascidos, para investigar se estes possuíam a constituição física de um genuíno soldado espartano. Ou seja, havia uma espécie de “filtro”, onde só seguia em vida aqueles que eram, unicamente de acordo com análise dos anciãos, “fortes”, “robustos”, e “inteligentes”, para assim no futuro serem indivíduos capazes de exercer as atividades militares, culturalmente predominantes em Esparta, com afinco e destemor. O povo Hebreu, além de elencar várias outras medidas higiênicas, adotava como medida profilática a isolação de seus doentes para evitar o contágio, de modo que estes permaneciam em uma espécie de quarentena. Isso tudo prosseguiu ainda de forma mais explícita na Idade Média, porquanto:
[...] a noção de superioridade não estava relacionada a um tipo de raça ou a características físicas de determinada população, a superioridade era de um grupo religioso (no caso, os cristãos sobre muçulmanos em relação à posse sobre a Terra Santa), ou seja, tratava-se de uma superioridade ideológica. (GABRICH FONSECA, 2015, p. 121).
Não obstante essa conjuntura histórica, foi no renascimento, com o encanto das inovações científicas, que os primeiros termos declaradamente referentes à eugenia foram utilizados, principalmente após as descobertas de Charles Darwin. Sua principal teoria, versando sobre como os primeiros seres vivos surgiram e foram evoluindo ao longo do tempo, fez tornar-se conhecida a expressão “seleção natural”. De acordo com ela, apenas os seres vivos mais aptos e adaptáveis conseguem perpetuar-se e evoluir, de forma que as objeções naturais à vida os selecionam, em detrimento dos menos aptos. Isso foi alicerce para um movimento que, por empregar a teoria de Darwin à sociedade, foi denominado Darwinismo Social. E foi na Inglaterra do séc. XIX, embasadas pelo atrativo desta teoria, e pelas consequências sociais da Segunda Revolução Industrial, que surgiram as primeiras medidas “melhorativas”, fomentadas e reveladas pelo antropólogo e primo de Darwin, Sir Francis J. Galton.
Galton foi o primeiro a definir o que seria o termo eugenia, que, originado do vocábulo grego “eugenéia” (eu, bom; genos, geração) significa, em sentido estrito, gerar o bom, o melhor. Segundo o autor, “as questões eugênicas são questões que tratam do que os gregos chamaram eugenes, ou seja, da boa raça, dos dotados hereditariamente de boas qualidades” (GALTON, 1883, apud FRAGA; AGUIAR, 2010, p. 123). Em suma, ele acreditava que toda a raça humana poderia ser melhorada, de forma que fossem evitadas transferências genéticas que possuíssem características “ruins”. Isto implica, noutros termos, dizer que para se chegar a um desenvolvimento físico e mental pleno da sociedade humana, deveria haver uma espécie de seleção artificial (análoga à seleção natural de Darwin) de maneira que os indivíduos “saudáveis” apenas se reproduziriam com outros de mesma “qualidade”. Em vista disso, Galton buscava a consecução de práticas científicas que, através do controle reprodutivo, visavam o melhoramento social e racial.
Como dito alhures, a Inglaterra do séc. XIX se configurava de modo inconstante, ao passo que, por consequência da intensificação do processo de modernização das cidades, desencadeado principalmente pela Segunda Revolução Industrial, a sociedade inglesa se constituía basicamente em dois segmentos: a burguesia e os trabalhadores. As discrepâncias entre um grupo e outro eram por demais evidentes, pois enquanto de um lado preponderava o poderio intelectual e econômico, de outro se estabelecia um estado abjeto, onde trabalhadores em condições de vida insalubres se viam à margem da sociedade. Disso não é difícil inferir que os burgueses, inspirados principalmente pelas ideias de Galton, tentaram impor políticas eugênicas, de forma que se exaurisse os contaminantes sociais, considerados por eles como intempéries de uma sociedade saudável e profícua.
No entanto, sabe-se muito bem que a eugenia não foi aplicada apenas na sociedade inglesa, porquanto nos Estados Unidos, em vista da expansão dos ideais galtonianos pelo mundo já no séc. XX, leis pró eugenia e instituições eugênicas foram criadas[1] (a exemplo da Eugenics Record Office (ERO)), além da tentativa de reprodução entre progenitores biologicamente “melhores”. Contudo, talvez o mais famoso caso de tentativa de purificação racial se deu na Alemanha, onde Adolf Hitler, sob o poderio do partido nacional-socialista, e sob o subterfúgio de ensejar pragmaticamente a superioridade da raça ariana, implementou uma vasta gama de medidas, que se traduziram em um extermínio generalizado, visto que milhões de judeus, homossexuais, negros, ciganos, doentes mentais e idosos foram assassinados de forma perversa, e sob legitimação jurídica.
No Brasil, os ideais eugênicos foram difundidos precipuamente pelo médico paulista Renato Kehl, que em 1918 criou a Sociedade Eugênica de São Paulo, e dois anos depois, em associação com outros psiquiatras, fundou a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). Após divergências dentro do grupo, ele constituiu a Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE), e com ajuda política, organizou o Comitê Central de Eugenismo, responsável por políticas públicas de restrição imigratória e emigratória.
Após a instituição da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, através da criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as ideais eugênicas foram hostilizadas e em parte mitigadas. Entretanto, como dito no exórdio, as descobertas genéticas abriram uma infinidade de opções no tocante à manipulação do genoma humano, de vez que se tornou possível muitos procedimentos antes inimagináveis. E isto novamente se tornou fundamento para o pensamento eugênico, porquanto as novas possibilidades permitiram ao homem realizar medidas profiláticas mais eficazes. Portanto, com a popularização, no mundo científico, de procedimentos como o mapeamento genético, a produção de alimentos transgênicos, e a fertilização in vitro, há de se indagar até quando eles servem para fins estritamente medicinais, ou se estão resgatando a práticas eugênicas realizadas outrora, em uma nova forma seletiva, a que se denomina neoeugenia.
Como se viu, o Direito Ocidental por muito tempo legitimou as experiências eugênicas, principalmente através do aparato legal. Todavia, com a mudança paradigmática que o mesmo sofreu no decorrer da primeira metade do séc. XX, através da intromissão de princípios constitucionais embasados nos direitos fundamentais, frutos de amplos movimentos político-sociais, houve uma relevante restrição quanto às práticas eugênicas, de maneira que, em meio às descobertas supracitadas, o Direito, e em especial a Bioética, se viu na missão de se adequar aos novos horizontes científicos, tentando, em última instância, combater práticas francamente neoeugênicas. Isso implica, sobretudo, uma análise e absorção, para dentro do campo jurídico, de conceitos e termos estritos ao âmbito científico, de forma que as definições se encaixem nos princípios, principalmente os respeitantes à vida, a que o Direito se propõe salvaguardar.
III. A GENÉTICA E O DIREITO: CONCEITUAÇÕES E DEFINIÇÕES
A Bioética é o ramo do Direito que se destina a tutelar a legitimidade legal-moral das pesquisas científicas e biológicas. Versa sobre os mais variados procedimentos e experimentos, de forma que se denota uma austera conduta por parte dos profissionais que laboram dentro de seus ofícios. Ela estabelece como princípios a serem seguidos: a autonomia, ou seja, a liberdade de deliberação do profissional; a beneficência, que diz respeito à exigência de o procedimento ou experimento garantir o máximo benefício para os outros indivíduos; a não maleficência, que em contraponto ao anterior, visa a garantia de nunca as pesquisas e práticas trazerem algum mal para os indivíduos (sejam eles cobaias ou os destinatários); e em consonância mais restrita ao Direito em si, o princípio da justiça, isto é, deve-se prezar sempre, em caso de conflito, por uma solução que esteja dentro do mais aquiescente conceito de justiça.
No debate de delimitação do âmbito de abrangência da disciplina de Bioética, acerca do grau de “violabilidade” da vida humana autorizada, em maior ou menor grau pelo ordenamento jurídico de cada país, impõe-se lembrar que para Schramm (1998, apud GABRICH FONSECA, 2015): “a bioética possui preocupações ligadas à probabilidade de riscos advindos, principalmente, dos avanços biotecnocientíficos” (aí incluídos os avanços no campo da manipulação genética humana). Ele analisa, de forma imparcial, “os argumentos racionais que justificam ou não tais riscos”, buscando identificar os argumentos morais contrários e os favoráveis à aplicação das novas técnicas, de maneira a detectar quais são os “bons” argumentos. Assim, a bioética se preocupa com a “legitimidade ou não, de se utilizar as novas tecnologias desenvolvidas pela engenharia genética para transformar a qualidade de vida das pessoas”. (SCHRAMM, 1998, apud GABRICH FONSECA, 2015).
Ainda segundo o mesmo autor, a criação de institutos jurídicos cuja abrangência repercute na vida, depende muito da concepção de vida e de sua relação com os demais direitos envolvidos. Nesse sentido, ele elenca os dois princípios norteadores da discussão até onde se pode/deve intervir bioeticamente na vida humana, quais sejam:
1. O princípio da sacralidade da vida (PSV), que considera a vida humana indisponível para o sujeito daquela vida específica, devendo-se, portanto, respeitar o assim chamado finalismo intrínseco da natureza ou os desígnios divinos sem tentar opor-se; e
2. O princípio da qualidade da vida (PQV), que, ao contrário, considera legítima qualquer intervenção na vida humana, desde que isso implique redução do sofrimento evitável e em maior/melhor bem-estar para os sujeitos objetos da investigação, desde que estejam de acordo que isso aconteça com eles e que o fato não acarrete danos significativos a terceiros. (SCHRAMM, 2009).
Com efeito, pode-se assegurar que o ordenamento jurídico brasileiro optou pelo princípio da qualidade de vida, como podemos inferir dos dispositivos do Código Civil Brasileiro, que autoriza doação de órgãos que sejam dúplices ou de partes de órgãos, entre pessoas vivas, sob determinadas restrições, além da doação de sangue e outros tecidos humanos. Recentemente, outro fato que ratificou ainda mais a absorção do ordenamento pátrio ao PQV, foi a aprovação no Supremo Tribunal Federal da Lei 11.105/2005, comumente denominada Lei de Biossegurança, em resposta à Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510, requerida pelo procurador geral da república, Dr. Antônio Fernando Barros e Silva de Souza. No acórdão, o Ministro Celso Melo arguiu que:
A escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. (STF 2008, p. 135 e 136).
Para a medicina, a engenharia genética compreende a totalidade das técnicas dirigidas a alterar ou modificar a carga hereditária de alguma espécie, seja com o fim de superar enfermidades de origem genética (terapia genética ou gênica), ou com o objetivo de produzir modificações ou transformações com fins experimentais, isto é, de lograr a concepção de um indivíduo com características até esse momento inexistentes na espécie humana (manipulação genética) (BARTH, 2005).
A primeira sutileza observada perante a comparação entre a eugenia positiva e a negativa, trata-se da dificuldade de segmentação entre uma e outra técnica ou procedimento, como observar-se-á adiante. A eugenia positiva aborda o ser humano visando à seleção, à condução e perpetuação de características “benéficas” que favoreceriam a espécie. Destarte, assim seriam caracterizadas como práticas eugênicas positivas a preferência por casamentos que mantém o fenótipo almejado em uma população, ao lado da escolha de embriões selecionados pelo Diagnóstico Genético Pré-Implantatório (DGPI). A eugenia negativa opera, por sua vez, por meio da eliminação de gerações futuras, que seriam supostamente incapazes, sob um dado ponto de vista genético; isso pode se dá com a proibição matrimonial, contracepção ou esterilização compulsória, abortamento, além do extermínio mesmo de agrupamentos humanos inteiros como já exemplificado na retrospectiva deste ensaio.
IV. DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTATÓRIO: PREVENÇÃO OU SELEÇÃO?
De acordo com todas as conceituações anteriores, observar-se-á de forma prática como o Direito, em conjunto com os conhecimentos científicos, aprecia a problemática aqui levantada, de forma que se procurará o encaminhamento para uma resolução que busque transcender a barreira unilateral, e assim alcançar o horizonte do multiperspectivismo. Se fará, portanto, uma lacônica imersão dentro do procedimento DGPI, designando-o sob o ponto de vista médico-científico, para subsequentemente se realizar as devidas discussões.
Sumariamente, o Diagnóstico Genético Pré-Implantatório (ou Pré-Implantacional), consiste na retirada de um ou dois blastômeros (células não diferenciadas) de um embrião fertilizado in vitro, no terceiro dia após a fecundação, para a análise do material genético. Com isto, se pode analisar proficiências genéticas do embrião respeitantes ao sexo e a doenças ligadas ao seu genoma, dos mais diversos tipos. O procedimento assim:
[...] se apresenta como uma excelente alternativa, por exemplo, em caso de parceiros que possuem incidência comum de doenças específicas em suas famílias, como câncer, hemofilia e anemia falciforme. Outras doenças que podem ser identificadas por esse método são a acondroplasia, talassemia, atrofia muscular espinhal, distrofia muscular progressiva de Duchenne e de Becker, fibrose cística, doença de Huntington, síndrome do X frágil, síndrome de Down, dentre outras. ARAGUAIA [s.d.].
Sobre a tutela jurídica estrita do DGPI, este é legislado pelo Conselho Federal de Medicina, que em 2010, revogou a resolução 1358/1992, que versava sobre as “normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1992). Apesar das poucas alterações, a nova resolução manteve inalterado o capítulo VI, onde estabelece os parâmetros éticos relativos a tratamentos e diagnósticos de pré-embriões, e principalmente o capítulo I, no artigo 4º, onde se lê:
Art. 4º As técnicas de RA (Reprodução Assistida) não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer. (Ibdem, 2010).
Se observa, portanto, que à primeira vista, optar pelo DGPI parece ser a medida mais eficaz e segura, nos casos acima mencionados. O fato de haver uma segurança e certeza médico-biológica quanto à saúde do futuro indivíduo, de forma que ele já venha ao mundo munido de uma predisposição genética a não possuir diversas patologias, se confere, para o casal progenitor, motivo de satisfação pessoal e familiar, tendo em vista que as características hereditárias do descendente podem transpassar as outras gerações. No entanto, deve-se procurar indagar sobre as limitações conferidas ao procedimento, porquanto, no âmbito social, sabe-se que isto se irrompe de maneira veemente. E é nesse campo que surgem as maiores objeções.
Não obstante as vantagens supracitadas, é mister ressaltar que, de uma forma ou de outra, são células vivas que estão em jogo. Adicione-se ao fato de serem células pré-humanas, o que implica dizer que, mesmo com a fiscalização realizada por meio do instrumental legal bioético, o diagnóstico produz efeitos biológicos que podem ser constituídos, não à maneira antiga, mas de uma forma reciclada e tácita, como uma nova eugenia.
Se observa ademais que, se o procedimento se constitui como eugênico, pode ser atrelado a isto a presença de uma dualidade, no que tange à classificação eugenia positiva ou negativa (conceituadas anteriormente). O DGPI, em comprometimento com a realização de uma escolha de características embrionárias standards, no momento em que se selecionam os gametas ou embriões com maiores possibilidades de conduzir à formação de um ser humano saudável, perfaz a eugenia positiva. Contudo, se verifica que também se adequa ao conceito de eugenia negativa, porquanto se impede a concretização de determinadas moléstias, anomalias ou síndromes graves, pela segregação de embriões que, no futuro, seriam indivíduos enfermos, e até possivelmente discriminados. Dessa forma, há a aparência de que se trata de uma separação simples e útil. Porém, acontece que, mesmo em um contexto de eugenia liberal e individualista, criticado por Jürgen Habermas (2004), nem sempre correspondem esses critérios adotados como paradigma de eugenesia, de modo a se confundir o “normal com o patológico”, como é o caso da homossexualidade, que está a depender de uma série de fatores da conjuntura social, como a cultura e o grau de abertura democrática do tempo e dos costumes do local.
Ademais, a opção por implantar um determinado embrião em detrimento de outro gera outro problema que, segundo Habermas (2004), está ligado à responsabilização ética do casal perante a comunidade discursiva (sociedade). Pois embora se tenha limitado a decisão ao casal, tamanha decisão não se atém somente a eles, posto que o patrimônio genético da espécie será afetado, indiretamente, causando riscos desconhecidos e imensuráveis, inclusive ao meio ambiente como um todo, o que arremata a correlação da microbioética com a macrobioética.
A fundamentação jurídica correlata a essa discussão está o princípio da solidariedade social, previsto no artigo 3º, inciso I da Constituição Federal de 1988, que requer o mínimo ético nas condutas de todos os membros da sociedade, sobretudo, daquelas que repercutem na qualidade e nos estados de vida de terceiros, como é o caso da prole que já tem direitos da personalidade resguardados, ainda como nascituros, a se confirmar com o nascimento com vida, que, conforme a mesma Constituição, garante-lhe a dignidade da pessoa humana como supraprincípio fundamental norteador de todo o ordenamento jurídico pátrio. Sobretudo, o artigo 225, especialmente no parágrafo primeiro, incisos II e V, estabelece como extensão da garantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e à sadia qualidade de vida, “a preservação da integridade do patrimônio genético do País”, e o “controle do emprego de técnicas que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1998).
Percebe-se que de forma não dúbia, o DGPI enseja discussões para além das fronteiras biotecnológicas, a ponto de se confrontar com os princípios constitucionais. E isso se denota do fato de ele ser um experimento que induz a pertinente questão sobre até quando um procedimento desta natureza possui em seu âmago aspectos elementares de eugenia. Vê-se que por ser uma problemática emergente, por muito tempo deverá ser tematizada e discutida, ao tempo em que se configura intricadamente e polemicamente.
V. CONCLUSÃO
Desde o início frisa-se que o homem tem chegado a lugares impensáveis, haja vista a evolução das descobertas científicas, fruto de pesquisas exaustivas e intermináveis, e que, além de produzir mais conhecimento sobre mundo, servem outrossim para o desenvolvimento da própria humanidade. E no que tange em especial ao ramo da biotecnologia, toda a conjuntura histórico-científica ajudou-a em seu fomento, visto os consideráveis avanços aqui explanados, servindo assim para uma abordagem mais ampla da constituição física dos seres vivos, de forma que os horizontes médico-terapêuticos se abriram ainda mais.
No entanto, se viu também que, dependendo de quem a manipula, a ciência pode ser utilizada em prol de objetivos hostis ao desenvolvimento humano, e de forma pior, ser utilizada, em nome desse desenvolvimento, de forma irresponsável e repugnante. Por isso, demasiadamente destacou-se aqui em que consistem as ideias eugênicas, e o quanto um possível resgate, nos dias hodiernos, destas ideias, afrontaria um rol de direitos intrínsecos à vida de cada indivíduo participante do meio social, de maneira que concomitantemente estaria se violando vários dispositivos legais, inclusive o mais importante, diga-se, a Constituição Federal. Então, não é difícil perceber o quão emergente se faz a problemática, ao passo que implica uma apreciação sob múltiplas perspectivas, dentro dos mais variados âmbitos do saber, incluído aí o Direito. Por fim, sobre tudo o que foi versado aqui, é sempre importante observar o grau de importância de um estudo como esse, visto o nível de reflexibilidade social, agregado ao fato de poder contribuir para um mundo onde possa ser amenizado as mazelas sociais, tendo vista a ainda diminuta reflexão crítica sobre estes e outros ramos, e que se constituem como uma áurea irrefletida em volta do homem.
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
[1] Exemplos de legislação eugênica nos Estados Unidos são as leis de esterilização, onde provavelmente mais de 50 mil pessoas foram esterilizadas no período de 1907 a 1949, além da lei contra imigração (Johnson Reed Immigration Restriction Act of 1924) designada como uma tentativa de purificação racial. DIWAN, Pietra. Eugenia, a biologia como farsa. Revista História Viva. 2007. 49ª ed. Disponível em:<http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/eugenia_a_biologia_como_farsa_imprimir.html>. Acesso em: 26 fev. 2016.