O princípio da intervenção mínima como garantidor da efetividade do sistema penal

03/07/2016 às 13:40
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Todo o ordenamento jurídico há de respeitar os direitos fundamentais de cada indivíduo, mesmo nos vieses jurídicos punitivos, pois esse é o alicerce do poder estatal. Esse respeito é o compromisso ético com a democracia.

1  A TEORIA POLÍTICA ESTATAL COMO DEFENSORA DOS DIREITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS

Nesse tópico, ver-se-á que os ideais dos primados jusnaturalistas concebidos por Hobbes, Locke e Rousseau, estudados nessa ordem, são, na verdade, a ascendência dos poderes dos indivíduos dentro de um Estado. A formação do Estado perpassa por um indivíduo que renega todos os seus direitos essenciais em prol da formação do Estado e da sua proteção a vida e propriedade até o momento que se devem resguardar esses direitos dentro do ente soberano público.

Esses princípios de direito natural estruturam as sociedade político-organizadas, como a carapuça de normas fundamentais a serem protegidas do arbítrio estatal. A norma fundamental para Kelsen é uma abstração das relações ser que reflete no ordenamento jurídico. 

As relações do ser são as ambições e seguranças que os indivíduos querem perante o Estado, são os direitos fundamentais assegurados a qualquer indivíduo. A Constituição é a primeira legislação que deve resguardar essa essência da norma fundamental, bem como deve repassar essa filosofia as suas normas inferiores, já que é a Constituição que estabelece os critérios e metas de criação de novas leis.

Estes direitos fundamentais, por sua vez, a partir do momento que são assegurados pelas Constituições, refletem a essência de Estado Democrático de Direito, ou seja, Estado formado, regido e executado pela vontade do povo e como tal deve garantir a ausência de violações dos seus direitos essenciais, já proclamados nos direitos naturais dos doutrinadores jusnaturalistas.

1.1 FORMAÇÃO DO ESTADO E O PAPEL DA CIÊNCIA JURÍDICA

O homem é um ser movido por suas paixões e desejos, capaz de agredir outro indivíduo apenas para satisfazer suas vontades. Portanto, se envolvem em competições, discórdias e, até, em guerras, só para fazer com que o outro se subjugue as suas vontades e a sua sabedoria, segundo a concepção de Thomas Hobbes. Essa forma de aquisição do poder gera insegurança e dano, seja individual ou coletivo.

Surge, daí, a necessidade de formação de um Estado. Uma unidade em que todos renunciam e transfiram seus próprios atos de soberania para um grupo (único poder soberano), capaz de defender todos de invasões estrangeiras e das injúrias que um possa fazer contra o outro.

Hobbes explica que essa transferência de poder, seria feita por um ato consciente e com o seguinte teor: “Autorizo e desisto do Direito de Governar a mim mesmo a este Homem ou a esta Assembleia de homens, com a condição de que desistas também do teu Direito, Autorizando, da mesma forma, todas as suas ações” .

[...] como os homens, almejando conseguir a paz, e através dela sua própria conservação, criaram um Homem Artificial chamado Estado, criaram, também, Cárceres Artificiais, chamadas Leis Civis, que, mediante pactos mútuos, ficam presos por uma das extremidades, ao Homem ou à Assembleia a quem confiaram o Poder Soberano, e por outra, a seus próprios Ouvidos. Esses laços, embora fracos devido à própria natureza, são mantidos, seja pelo perigo ou pela dificuldade de rompê-los.

Ao fazer essa renúncia, o indivíduo transfere sua liberdade natural (ausência de qualquer oposição), a sua essência de homem com pensamento e atos livres, para um Estado livre, que, ao mesmo tempo, concede segurança aos seus súditos e se mantém livre para com os outros Estados. “A liberdade dos súditos está, somente, naquelas coisas permitidas pelo Soberano ao regular suas ações” .

Essa liberdade, porém não abole nem limita o Poder Soberano de vida e de morte, pois já foi demonstrado que nada pode fazer um Representante Soberano a um Súdito, sob nenhum pretexto, que possa vir a ser propriamente chamado Injustiça ou Injúria. Isso porque cada Súdito é Autor de todos os atos praticados pelo Soberano, de modo que nunca necessite o Direito, seja ao que for, a não ser na medida em que ele próprio é Súdito de Deus, e está, por ele obrigado a respeitar as leis de Natureza.

O homem não é livre para resistir à força do Estado, pois, se o súdito possuir essa liberdade de ir de encontro com o Poder Soberano, priva o poder de proteção social. Mesmo porque essa privação destruiria o próprio Estado e a razão de se ter um pacto social.

Hobbes acredita que o Estado necessita manter a vida (por meio da segurança e propriedade) de seu povo, assegurado por canais adequados, traduzidos por boas ordens instituídas: as leis civis e de transgressões. As leis existem desde o momento de constituição do Estado (onde há Estado, há regramento), já que servem para diferenciar o certo do errado, o justo do injusto, bem como predispõe o homem para a paz e a obediência.

A Obrigação dos Súditos para com o Soberano permanece apenas enquanto durar o Poder, através do qual os protege. Porque o direito que, por Natureza, os homens têm de se defender, não pode ser abandonado através do Pacto. A Soberania é a Alma do Estado e, uma vez separada do corpo, tira os movimentos dos membros. A finalidade da Obediência é a Proteção e, quando um homem a vê, seja em sua própria espada seja na de outro, a Natureza determina que a obedeça e se esforce por conservá-la. Embora a soberania seja imortal, na intenção daqueles que a criaram, ela está, por sua própria Natureza, sujeita à morte violenta através da guerra exterior; devido à ignorância e às paixões dos homens, desde o momento de sua instituição, a Soberania conserva sementes de mortalidade natural, através da Discórdia Intestina.

Percebe-se que Hobbes não se preocupava mais com os anseios individuais dos súditos. O ser individual dá lugar ao ser coletivo, representado pelo Estado. Este, por sua vez, é a junção das vontades e desejos de todos. O Leviatã (Estado), portanto, surge como uma forma de proteção do coletivo contra os ataques individuais.

Em contraponto a Hobbes, Locke acreditava que, no estado de natureza, o homem não era um ser autodestrutivo. Ele possuía a liberdade de dispor de si mesmo e de seus bens, mas isso não significava que poderia aniquilar a si próprio ou qualquer outra pessoa que estivesse sob sua posse, “salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua própria conservação” .

O "estado de natureza" é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens; [...].

A sociedade política, para o autor, é a renuncia que cada membro concede de seu poder natural para dá-lo a comunidade firmada pela proteção à lei. "Aqueles que estão reunidos para formar um único corpo, com um sistema jurídico e judiciário com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os ofensores, estão em sociedade civil uns com os outros" .

Cada vez que um homem entra na sociedade civil e se torna membro de uma comunidade civil, renuncia a seu poder de punir ofensas contra a lei da natureza na realização de seu próprio julgamento particular, mas tendo delegado ao legislativo o julgamento de todas as ofensas que podem apelar ao magistrado, delegou também à comunidade civil o direito de requerer sua força pessoal, sempre que quiser, para a execução dos julgamentos da comunidade civil; que, na verdade, são seus próprios julgamentos, pois são feitos por ele ou por seu representante.

O jusnaturalista ainda faz uma crítica ao conceber que a Monarquia absoluta não é uma sociedade civil organizada e, sim, a mantença do estado de natureza. Acredita, pois, que, a partir do momento que as pessoas não podem apelar a uma autoridade e decidir a diferença entre eles, esse povo está subjulgado e dominado pelas vontades e verdade de um princípio absoluto. Ou seja, a sociedade civil só pode ser considerada como tal, se democrata.

O homem permanece naturalmente livre, quando ele entra em sociedade. Para Locke, não renunciamos essa essência de liberdade e nos tornarmos um súdito do Estado. Esse direito é irrenunciável, já que o homem pode deixar a comunidade a qualquer momento e se autodeterminar. A proteção e o privilégio de uma vida pacífica e de conservação da propriedade não é o que conduz e caracteriza o homem a viver em sociedade, pois, a partir do momento que seus desejos e opiniões não fossem satisfeitos, o homem pode se deslocar e buscar uma terra sem dono para montar sua própria comunidade. O ser político para ser considerado como tal, deve ter um compromisso especial, uma promessa e um acordo explícitos, para estar efetivamente em sociedade. Essa fidelidade ao governo é traduzida por atos, o homem se compromete a fazer parte do grupo por decisão perpétua, renunciando aquela total liberdade do estado de natureza.

Por isso é preciso admitir que todos aqueles que saem de um estado de natureza para se unir em uma comunidade abdiquem de todo o poder necessário à realização dos objetivos pelos quais eles se uniram na sociedade, em favor da maioria da comunidade, a menos que uma estipulação expressa não exija o acordo de um número superior à maioria. Para isso basta um acordo que preveja a união de todos em uma mesma sociedade política, e os indivíduos que se inserem em uma comunidade política não necessitam de outro pacto. Assim, o ponto de partida e a verdadeira constituição de qualquer sociedade política não é nada mais que o consentimento de um número qualquer de homens livres, cuja maioria é capaz de se unir e se incorporar em uma tal sociedade. Esta é a única origem possível de todos os governos legais do mundo.

Em suma, para Locke, os homens não renunciavam seus direitos naturais para a constituição de um Estado. Esse novo poder é necessário apenas para delimitar e evitar eventuais ameaças contra a vida, a liberdade, a igualdade e os bens, já que os homens se inclinam para buscar o benefício próprio. Assim, o indivíduo deixa seu estado de natureza (iguais, independentes e governados pela razão) e cria uma sociedade, por meio de um contrato, um acordo entre homens iguais e livres.

Dessa forma, não há renuncia dos direitos essenciais dos indivíduos, como Hobbes acreditava. Para Locke, se o homem dá o poder a um Estado, ele pode também retirar. O Estado serve apenas para dar maiores liberdades e propriedade aos seus membros.

Ao contrário dos demais jusnaturalistas, vê-se que Rousseau entende que a sociedade deveria se aproximar mais o estado de natureza, pois a essência do corpo político está na harmonia entre liberdade e obediência. “Encontrar uma forma de associação, que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se uniria a todos, obedecendo, entretanto só a si mesmo e permanecendo tão livre quanto antes” .

O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que o tenha e que pode atingir; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. Para não se enganar nessas compensações, é preciso distinguir muito bem a liberdade natural, que não tem por limites senão as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral, e da posse, que não passa do efeito da força ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade que não pode ser fundada senão num título positivo.

Poder-se-ia acrescentar, ao que precede a aquisição do estado civil, a liberdade moral, que por si só torna o homem senhor de si; pois o impulso do único apetite é a escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu é liberdade.

A vida em comunidade remodela o homem natural, formando um ser competitivo sobre a propriedade alheia. O indivíduo olha para o que é do outro e cobiça. A sociedade promove a desigualdade, que, para Rousseau, não existia no estado de natureza. Nesse estado, o homem é essencialmente bom, porque vive para suprir apenas suas necessidades vitais. Dessa forma, é a comunidade que traz a desigualdade.

O modelo de pacto social proposto por Rousseau leva em consideração que o governo assegurará a todos a igualdade, por meio da lei. A lei é sempre geral, “considera os súditos como corpos e as ações como abstratas, jamais um homem como indivíduo, nem uma ação particular” .

O autor acredita que para uma sociedade manter a igualdade, ela deve resguarda a liberdade e a propriedade de cada um. A desigualdade seria desconstituída com a proteção de seus associados de forma igual, e cada um, como um todo, obedecesse a si mesmo e permanecesse tão livre quanto antes.

Esses princípios jusnaturalistas foram consagrados nas modernas Constituições como princípios fundamentais destinados a todos os indivíduos, inclusive ao poder público e ao legislativo. “O fundamento político ou externo do moderno Estado de direito tem, com efeito, a função de garantia dos direitos fundamentais mediante a sanção de anulabilidade dos atos inválidos [...]” .

O Estado de Direito entendido como Estado legal caracteriza-se pelo princípio da legalidade submetendo todo poder público às leis gerais e abstratas, bem como pela garantia dos direitos fundamentais a todos, por meio das vedações legais de lesão aos direitos naturais.

O direito natural, dessa forma, foi colocado como fundamento do Estado de direito:

O resultado deste processo de positivação do direito natural tem sido uma aproximação entre a legitimação interna ou dever ser jurídico e a legitimação externa ou dever ser extrajurídico, que dizer, a sua juridificação por meio da interiorização no direito positivo de muitos velhos critérios e valores substanciais de legitimação externa.

Tomando por base esses ensinamentos dos doutrinadores, pode-se dizer que o poder estatal nasce limitado pelos direitos naturais. “A criação do Estado não implica a concessão de poderes plenos e absolutos, mas vincula a legitimidade de sua atuação (negativa e/ou positiva), à conformação dos direitos antecedentes, mantidos na seara individual e, portanto, incapazes de violação pelo Estado” .

A criação normativa, nesse âmbito, é vinculada a esses valores e primados iniciais dos membros da sociedade, trazendo a impessoalidade e abstração das normas jurídicas perante os súditos do Estado, com sua consequente legitimação. Uma vez garantidos os direitos fundamentais de uma sociedade, é aferido o grau de eficácia da democracia dela.

1.2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ELEMENTO AGREGADOR E LIMITADOR DO EXERCÍCIO ESTATAL

A ciência jurídica brasileira está escalonada pelo modelo Kelseniano, no qual a Constituição Federal, regida por uma norma fundamental, define os objetivos e os critérios da criação de novas normas inferiores.

A natureza da norma fundamental determina, estabelece e torna eficaz uma Constituição na ordem jurídica, bem como “se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada” .

A Constituição exprime as ideias do dever ser determinada pelas relações do ser e se caracteriza por reflexos das relações fáticas sociais e políticas.

Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.

A conceituação da normal estrutural de um Estado pode ser definida no viés formal e no material. No primeiro diz respeito à formação legislativa da norma. A Constituição tem um processo legislativo, tanto de sua formação ou de reforma, diferenciados das demais leis do ordenamento. No sentido material, ela deve trazer conteúdos essenciais e importantes que estruturam uma sociedade política organizada. Matérias essas designadas como verdadeiramente constitucionais.

Paulo Bonavides explica que o conceito material de Constituição é

o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo que for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição. Grifo do autor.

Mas não é só de conceitos e matérias que a Constituição existe. Na verdade, ela é determinada também pelas forças de vontade de poder num Estado. Apesar de a norma fundamental delimitar os assuntos que serão abrangidos pela Constituição, são as relações do ser que positivam as matérias essenciais dessa norma.

Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem consequência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas. Não perceber esse aspecto da vida do Estado representaria um perigoso empobrecimento de nosso pensamento. Não abarcaríamos a totalidade desse fenômeno e sua integral e singular natureza. Essa natureza apresenta-se não apenas como problema decorrente dessas circunstâncias inelutáveis, mas também com problema de determinado ordenamento, isto é, como um problema normativo.

As relações de poder (entre os indivíduos) saem do convívio e ingressam no ordenamento por meio do Poder Legislativo. No Brasil, é esse poder que inova, reforma e extingue as legislações, em consonância aos art. 59 a 69 da CRFB.

O Poder Legislativo é o reflexo e o demonstrador da força ativa determinante do Estado. É a imagem da sociedade refletida no espelho político. Seu compromisso está “ligado à procura das melhores oportunidades, dos melhores recursos e dos meios mais adequados para o aperfeiçoamento da cidadania” .

Dessa forma, a função de legislar deve suprir os anseios populares e, principalmente, respeitar os limites que o Estado impõe a todos, pois, por mais que seja um Poder do Estado, não se pode esquecer que aqueles que operam o Legislativo também são pessoas que se submetem as mesmas leis e requerem as mesmas proteções do governo estatal como os demais súditos.

A par disso, percebe-se que as forças que constituem essa norma central no ordenamento devem ser preservadas. Obviamente, a sociedade passa por diversas transformações culturais e a Constituição deve se moldar a isso. Mesmo porque, dentre as funções legislativas está aquela que acompanha e amolda a dinâmica e desenvolvimento das demandas sociais.

O elemento componente de toda a dinâmica constitucional que explica as variações ou mudanças profundas que tomam os textos constitucionais é o poder constituinte material e de caráter difuso. Esse poder, por sua vez, não é específico, visível ou definido.

Há um poder constituinte de titularidade indeterminada, fugaz, indecisa, cuja rara e difícil identificação no seio de uma ordem jurídica já estabelecida não deve eximir-nos da obrigação de examinar-lhe os efeitos, sempre patentes em mudanças de aparência imperceptível numa época, mas que com o tempo avultam a consideráveis proporções.

Paulo Bonavides desdobra que “o poder constituinte, se fizermos abstração de seu agente ou titular, se reduz formalmente a uma ação constituinte, capaz de criar ou modificar a ordem constitucional ou de produzir as instituições fundamentais de uma determinada sociedade” .

Indagar, por conseguinte, quem seria o titular desse poder constituinte ou de onde surgira sua formação e sua percepção, esbarrar-se-ia nas vontades supremas dos indivíduos para ditar as regras básicas de comportamento e de organização institucional a que todos se submetem para formar um Estado de segurança, proteção e paz. Ou seja, nas relações do ser.

Por outro lado, apesar da dinâmica de vontades dos titulares do poder constituinte se modificar a cada avanço social surgido, não significa que a Constituição necessita de reformulação estrutural a todo o momento. As novas interpretações dadas (as mutações interpretativas constitucionais do Poder judiciário e até do próprio Legislativo) aos princípios e elementos, já dispostos no texto, resguardam a sua estrutura normativa e a confiança dos governados do Estado. Konrad Hesse já dizia que a “estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição” .

Infelizmente, o clamor social vem por outro viés. A eficácia legislativa e do ordenamento, principalmente na tipificação penal de condutas, têm se medido pelo número de leis que são lançadas para a sociedade. O que é totalmente errôneo para se analisar e se pedir da autoridade de um país. Todavia, não é só o povo que protesta por essa enxurrada, os próprios parlamentares querem produzir, votar e aprovar, a fim de mostrarem trabalho para a população. “A quantidade, não é qualidade, é o critério que tem sido usado para avaliação do Legislativo. [...], é assim nossa cultura política” .

Essa ânsia legiferante [...] gera consequências deletérias para a boa distribuição da justiça. Dificulta e retarda as decisões judiciárias, faz nascer sentenças contraditórias e perturba o trabalho do advogado que, no emaranhado do legislativo, pode invocar leis ou preceitos não mais vigorantes. Agride, portanto, o princípio da segurança e certeza jurídica, que dá ao cidadão firmeza na postulação de seu direito. Dificulta, já se vê, o acesso do indivíduo ao Judiciário.

Com base nesses ensinamentos, que não se pode esquecer que acima de qualquer Poder do Estado, está a norma que o fundamenta e o cria: a Constituição. Ela é a verdadeira soberania nacional, é ela que vai limitar e ditar os preceitos que os seus Poderes subalternos terão que abrigar dentre de sua função típica (e atípica). A Constituição é o poder soberano e mandante das relações dos demais poderes.

Separar, portanto, o poder de formação de uma constituição dos poderes constituídos traz uma garantia de natureza formal, que se traz eficácia à proteção dos direitos individuais colocados na Constituição, sendo uma das medidas mais importantes e acauteladoras que a organização de um país pode oferecer à garantia desses direitos.

Paulo Bonavides traz ensinamento importante do livro de Carré de Malberg:

A separação do poder constituinte forma o corolário lógico e necessário das ideias individualistas. Se, como afirma Sieyès, “uma Constituição pressupõe antes de mais nada um poder constituinte’ é por essa razão, entre outras, que ela ‘somente pode ter por objeto assegurar os direitos do homem e do cidadão’. Um dos meios essenciais de afiançar, pois, os direitos individuais, consiste em traçar limites ao poder das autoridades constituídas, nomeadamente ao do legislador, impondo-lhe no ato constitucional regras superiores das quais não possa eximir—se e cuja alteração lhes escape: essas regras limitativas, obra de uma autoridade constituinte superior, comporão a garantia dos particulares.

Assim, ao fundamentar suas relações com base na prevalência dos direitos humanos, o Brasil reconheceu os limites e condicionamentos da soberania estatal.

[...] a soberania do Estado brasileiro fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Rompe-se com a concepção tradicional de soberania estatal absoluta, reforçando o processo de sua flexibilização e relativização, em prol da proteção dos direitos humanos. Este processo é condizente com as exigências do Estado Democrático de Direito constitucionalmente pretendido.

Acrescenta-se, ainda, que todas as legislações procedentes da Constituição (todo o ordenamento jurídico brasileiro), firmada pela vontade das normas de direitos fundamentais, devem resguardar os mesmos princípios e ideologia, pois a Constituição é “a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais” .

A relação entre indivíduo e Estado é respaldada pela proteção desses direitos fundamentais, em razão de que eles “cumprem uma função muito específica, que é a de regular as relações entre sociedade política e a sociedade civil e, portanto, constituir um limite à intervenção do Estado com relação aos cidadãos” . 

Dentre esses bens merecedores da tutela constitucional estão inseridos aqueles protegidos pelo direito penal, seja de modo explícito. São direitos tidos como os de maior relevância social para a sua proteção e conservação. Essa liberdade do constituinte em escolher os bens essenciais para imputar condutas, acaso esses direitos sejam violados, embasado na vontade social, expressa a harmonia com a noção de Estado Democrático de Direito.

Lança-se mão do ensinamento de Konrad Hesse novamente:

[...] vontade da Constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado Democrático.

Infere-se, desta sorte, que as relações de Poder dentro do Estado para serem legítimas e preponderantes devem respeitar as relações instituídas originalmente (primórdios da vontade social em firmar um Estado soberano capaz de preservar a paz e propriedade para com seu povo). Esse Estado Democrático de Direito, pelo seu modo, conserva os direitos essenciais e fundamentais de cada indivíduo por meio de sua legislação. Essa legislação tem como norma delimitadora uma norma suprema, criada para proteger os anseios sociais e é ela que agrega e respalda os demais textos normativos. Não se pode esquecer, que é essa lei central que garante os verdadeiros desejos expressos pelo ser, traduzidos como direitos fundamentais humanísticos.

1.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO VIESES DA DEMOCRACIA

O Estado de Direito significa que o Poder Político está subordinado a um direito objetivo, fruto da própria natureza humana: as leis estabelecidas pela vontade. E a supremacia desse direito está na Constituição, entendida como lei das leis. É esta que estabelece a organização e limitação do poder, “por meio dela busca-se instituir o governo não arbitrário, organizado segundo normas que não podem alterar, limitado pelo respeito devido aos direitos do Homem” .

As primeiras constituições e declarações a reconhecer os direitos naturais como direito fundamentais e positivá-los foram as constituições americanas do século XVIII (Bill of Rights de 1776) e a Declaração francesa de Direitos do Homem e do Cidadão. “Atente-se, ainda, para a circunstância de que a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais, recém-traçada de forma sumária, culminou com a afirmação (ainda que não em caráter definitivo) do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa [...]” .

A própria Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1798, documento culminante da Revolução Francesa, diz que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (art. 16) .

Acrescenta-se, ainda, que essa declaração francesa leva em conta que “o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei” (art. 4º) .

Nesse sentido, os direitos do homem limitam o exercício do poder, definindo a fronteira do que é licito e justo e do que não é para a sociedade, guardando a característica de sua universalidade e de supremacia.

Estabelecida essas bases (juntamente com a Declaração de Independência Americana e sua Constituição e a Magna Carta Inglesa de 1215), os direitos do homem tomaram proporções internacionais, bem como se inseriu dentro dos ordenamentos jurídicos de cada país. No âmbito, extraestatal, firmou-se a Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948, no pós das grandes guerras mundiais. Seu principal objetivo foi o estabelecimento da paz mundial com ideal a ser perseguida, evitando guerras, promovendo a democracia e estabelecendo os direitos do homem a nível internacional.

Apesar de o contorno internacional vir só no século XX, esses direitos estavam dispostos em alguns Estados Nacionais, desde o modelo dos contratualistas. Eles foram, gradualmente, incorporados às Constituições, ganhando uma maior garantia de sua observância de acordo com as transformações históricas que passavam, sendo, paulatinamente, positivados e chamados de direitos fundamentais. Essas mutações reconheceram classes desses direitos (internacionais ou não) chamadas de dimensões.

Os direitos humanos de primeira dimensão são de cunho “individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face do seu poder” . São os direitos à vida, liberdade, propriedade e igualdade, ou seja, todos aqueles de resistência ou oposição perante o Estado. Consideram-se essas liberdades mais de cunho abstrato, porque, apesar do ser humano ter direito à vida, positivá-la e torná-la efetiva é uma tarefa árdua e de difícil delimitação, mesmo porque o que é vida com bem-estar para um, raramente é para outro.

Já os direitos econômicos, sociais e culturais são classificados na segunda dimensão. Também de caráter individual, esses direitos buscam, todavia, uma ação positiva do Estado para a realização de uma justiça social, baseada “nas prestações sociais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc” . Em contraposição aos direitos angariados de primeira dimensão, os de segunda revelam uma liberdade material concreta (não apenas formal), já que a prestação assistencial do Estado engloba todos os indivíduos de uma forma mais indeterminada e concreta. Concreta porque uma escola ou hospital são bens físicos, perceptíveis a qualquer olho nu, ou seja, para se comprovar que o Estado assegura tal direito, deve-se apenas utilizar esse benefício.

A terceira dimensão, por seu turno, particularizada pelos direitos de solidariedade e fraternidade, nasce “do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas [...] pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes consequências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais” . O homem despreza a figura uníssona do individual e destina-se a proteção do grupo, família e povo, titularizando os direitos coletivos ou difusos (caráter transindividual). Um exemplo de tal direito é a proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Em resumo, Robert Alexy nos diz as condições que o direito do homem são definidos pelo direito positivo. Entende-se que o reconhecimento dos direitos fundamentais do homem se dá com a percepção de quais os interesses e carências devem ser protegidos e fomentados pelo direito. Além disso, esses interesses e carências precisam ser tão fundamentais para que realmente exista a necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito.

A fundamentalidade fundamenta, assim, a prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também o legislador. Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca no núcleo essencial da autonomia.

Todas as Constituições brasileiras enunciaram as Declarações de Direito. A atual trouxe uma maior originalidade, ao dispor das três dimensões dos direitos fundamentais: “no capítulo sobre os direitos e deveres individuais e coletivos (onde não se encontram deveres) estão os direitos de primeira dimensão, mais as garantias, no seguinte obviamente os direitos econômicos e sociais, a segunda dimensão. Quanto à terceira, esta se faz representar pelo solitário direito ao meio ambiente (art. 225)” .

Além desses, a Constituição ainda admite a insurgência dos direitos fundamentais implícitos, induzidos ou deduzidos de outros direitos e princípios, projetados, principalmente, de tratados internacionais (art. 5º, §2º, da CRFB) e do princípio da dignidade da pessoa humana (essência dos direitos humanos/fundamentais), com respaldado nos direitos do homem.

Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais – tidos como invioláveis, inalienáveis, indisponíveis, universais e, ao mesmo tempo, personalíssimos – abarcam a essência de um Estado de Direito, trazendo garantias contra o arbítrio da autoridade sobre seu povo.

[...] a Constituição (e, neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar a eficácia no âmbito de um autêntico Estado constitucional. Os direitos fundamentais, consoante averbou H. –P. Schneider, podem ser considerados, neste sentido, conditio sine qua non do Estado Constitucional Democrático. Grifo do autor.

Os direitos fundamentais socorrem a noção de Estado de Direito, estabelecendo metas, parâmetros e limites da atividade estatal, e possuem a ideia de justiça indissociável a tais direitos. Os direitos fundamentais, como elementos da ordem jurídica objetiva, integram “um sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico” .

Robert Alexy ensina que “o Estado é, portanto, necessário não só como instância de concretização, mas também como instância de decisão para a realização dos direitos do homem” . Continua o autor:

Acresce que a realização de numerosos direitos do homem não é possível sem organização. Nem a proteção diante de atos de violência de outros cidadãos nem o cuidado pelo mínimo existencial podem ficar a cargo de ação espontânea, se se tratar de uma garantia. Os direitos do homem conduzem, portanto, por três fundamentos para a necessidade do Estado e do direito: por causa da necessidade de sua concretização, se for necessário, também a coação, da necessidade de não só discutir sobre questões de interpretação e ponderação, mas também decidi-las, e por causa da necessidade de organizar o cumprimento de direitos do homem.

Dessa forma, os direitos fundamentais são democráticos porque dão garantias (de liberdade, igualdade, asseguram o desenvolvimento e existência de pessoas no processo democrático, bem como as condições funcionais desse processo) dentro de um Estado.

A democracia existe para a realização e concretização dos direitos fundamentais e estes para dar suporte ao sistema estatal democrático. A democracia como instrumento de justificação do Estado e tutela dos direitos fundamentais não é só a democracia política ou formal, fundada no consenso dos contraentes do pacto social, mas também a democracia social ou substancial, firmada na garantia dos direitos fundamentais.

[...] o problema da legitimação substancial do que é devido decidir ou não decidir forma precisamente o objeto das doutrinas liberais-contratualistas sobre a razão e sobre precisamente os limites do Estado: aos quais se deve, de um lado, a elaboração de uma noção de “direito fundamental”, que [...] é idônea a ser utilizada por todos os direitos tidos como vitais, sejam estes liberais ou sociais, e, por isso, a servir de base para uma doutrina geral da democracia substancial; por outro lado, e correlativamente, a configuração do direito e do Estado não mais, como na tradição aristotélica e medieval, como entidades naturais quanto aos “artifícios” ou “criaturas”, ou “invenções”, ou “convenções”, justificados unicamente pela sua função de instrumentos para finalidades externas identificadas com a satisfação dos direitos naturais ou fundamentais do cidadão.

O conceito de democracia é traduzido pelo postulado descrito no art. 1º, parágrafo único, da CRFB: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou indiretamente”, segundo seus preceitos de justiça, igualdade e adequação social. Preceitos que emergem dos direitos naturais refletidos nos direitos fundamentais.

 [...] os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito à participação (com liberdade e igualdade), na conformação da comunidade e do processo político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo exercício de direitos políticos (no sentido de direitos de participação e conformação do status político) podem ser consideradas o fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, parâmetro de sua legitimidade .

Especificamente, no caso brasileiro, a Constituição de 1988 agraciou em seu art. 1º que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, sob os fundamentos da soberania e cidadania (discurso democrático) e dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (conceitos dos direitos fundamentais). Além do próprio conceito de democracia expresso no parágrafo único do art. 1º, como já dito.

César Peluso afirma, em seu discurso em Washington, que:

A Carta de 1988, no entanto, foi além da promessa da democracia como regime de governo. Aos direitos de participação política e às liberdades individuais, nossa Constituição somou extenso elenco dos chamados direitos econômicos e sociais. A democracia brasileira é marcada pela garantia de direitos sociais próprios a um Estado que tem objetivos declarados de transformação social, redução das desigualdades de renda e de oportunidades, bem como a eliminação das assimetrias regionais que ainda distanciam as unidades da federação.

Diante dos ensinamentos trazidos, percebe-se que os direitos fundamentais de vida, liberdade, econômicos, sociais, difusos e coletivos são as bases da democracia e cidadania de um país, pois são esses pressupostos que fornecem condições dignas de vida e estabelecem as igualdades. “Uma democracia sem igualdade de oportunidades e que não se apresenta como instrumento para diminuir aberrantes distâncias sociais é mera caricatura de si mesma” .

Portanto, quando em uma democracia baseada em direitos fundamentais humanistas não há observância espontânea de tais direitos, a função de sua garantia cabe especialmente à jurisdição constitucional, a qual terá a dura missão de equilibrar, como dois lados da mesma moeda desejável ao fortalecimento da vida em sociedade, o exercício do poder político por meio da regra da democracia e a manutenção de direitos fundamentais que devem proteger pluralmente não só a maioria dos cidadãos, mas todos os cidadãos, inclusive os que compõem grupos sociais minoritários, pois o objetivo do constitucionalismo é harmonizar esses ideais de democracia e direitos fundamentais até um ‘ponto ótimo’ de equilíbrio institucional e desenvolvimento da sociedade política, sendo tal ponto a medida de sucesso de uma Constituição.

É a lei, portanto, que dá alicerce maior da democracia, que “organiza, que determina, que dá estabilidade às relações sociais” e que impõe a observância da igualdade formal.

Em contrapartida, apesar de o Brasil se firmar numa Constituição Cidadã e Democrática, a desigualdade entre seu povo é evidente. São essas deficiências e distorções que geram a falta de credibilidade no sistema democrático, mesmo que se resguardem os valores dos direitos fundamentais, em diversos momentos eles são violados. É nesse ponto que nasce e cresce a estipulação de direitos penais, para punir, segregar e reeducar aquele que fere os direitos básicos do outro, bem como o de toda a sociedade, de forma reflexiva. 

2 O DIREITO PENAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O direito penal é a relação mais restrita e pura entre Estado e indivíduo, no sentindo de que seus braços punitivos atingem de maneira mais significativa e danificadora a vida e a liberdade daqueles que sofrem a incursão dessa ciência.

Instituído no ordenamento jurídico para impedir a arbitrariedade do exercício das próprias razões, bem como a minimização da violência na sociedade, o direito penal se tornou a maior forma de contenção do indivíduo natural, apesar de sua evolução histórica demonstrar que se buscou, paulatinamente, o respeito pela dignidade.

Sabe-se, dessa forma, que o direito penal serve para regular as condutas que atingem e, por vezes, aterrorizam os valores fundamentais de uma convivência social sadia. Todavia, esse controle da sociedade deve ser imposto quando não houver outras medidas suficientes para solucionar o conflito e revigorar a paz pública. Por essa forma, entende-se que o direito penal deve combater condutas que ferem os bens jurídicos essencialmente relevantes dos indivíduos, buscando uma atuação mais limitativa dos Estados na aplicação das sanções penais.

Não se acredita, todavia, que o abolicionismo penal (a limitação total da soberania do poder público em tipificar condutas) é a eficácia de um Estado Democrático de Direito. Não. O que se vê é um Estado, que é do povo e feito para o povo, que se aproxima mais da noção de igualdade e respeito ao princípio da dignidade da pessoa, quando age de maneira menos violenta e repressiva. Ao contrário, caso se pretenda a avassaladora regulação dos atos e suas tipificações, perder-se-á a noção de democracia, pois o povo se protegerá contra si por meio do direito que mais limita e denigre sua essência como pessoa.

Daí decorre a proteção e o resguardo dos direitos fundamentais dentro do direito de punir estatal como essenciais para manter a soberania e a existência em comunidade digna.

2.1 CONCEITOS DE DIREITO PENAL

Instituído pelo Poder Legislativo, o direito penal é um ramo do direito público, já que exercido pelo Estado soberano, com a finalidade de preservar a sociedade e proporcionar-lhe a paz e o desenvolvimento, reprimindo os autores que vão de encontro com esses fins. 

Fundou-se o direito penal baseado no ideário libertador, caracterizado, basicamente:

[...] pelo contratualismo de Rosseau (premissa de que o cidadão cede parcela de sua liberdade ao Estado, que representa a vontade geral e que assim se encarrega de proteger toda a sociedade); pelo utilitarismo (pena com finalidade preventiva geral negativa, ou seja, o objetivo maior é a defesa da sociedade – em vez do caráter puramente retributivo – castigo); pelo legalismo (não mais haveria crime sem prévia previsão legal – o juiz está adstrito à lei, sendo-lhe defeso interpretá-la); pela secularização (distinção entre pecado e crime); pela prisionização (difusão da pena de prisão como castigo estatal – ironicamente, a humanização da época, diante da crueldade e brutalidade das penas então vigentes – não sabiam os iluministas que a pena então criada se transformaria, nos séculos seguintes, em razão de sua forma de execução na maioria dos lugares, em abominável meio de afronta à dignidade do ser humano) .

Por conseguinte, a repressão advinda desse sistema é com imposição de sanções com caracteres coercitivos e restritivos. O Poder Judiciário, por sua vez, é quem comanda os atos do direito penal, por meio do jus puniendi (direito de punir) do Estado.

Diante disso, percebe-se que a principal distinção da legislação penal para as demais leis é a instituição da infração penal como delito, traduzindo a coerção penal na imposição de pena. “A pena se distingue das restantes sanções jurídicas [...], porque procura conseguir, de forma direta e imediata, que o autor não cometa novos delitos, enquanto as restantes sanções jurídicas têm uma finalidade, primordialmente ressarcitória ou reparadora” .

Para Guilherme de Souza Nucci, o direito penal é “o conjunto de normas jurídicas voltadas à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação” .

Em um conceito mais abrangente e simplista, Fernando Capez traduz a verdadeira concepção para o qual o direito penal surge no ordenamento:

O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação .

Dentro do conceito principal, o direito penal ainda se divide em objetivo e o subjetivo. O primeiro com a ideia de que o direito penal é “o corpo de normas jurídicas destinado ao combate à criminalidade, garantindo a defesa da sociedade” [...]. Para o segundo conceito, “o Direito Penal subjetivo emerge do bojo do próprio Direito Penal objetivo, constituindo-se no ius puniendi, cuja titularidade exclusiva pertence ao Estado, soberanamente, como manifestação do seu poder de império” .

Somente o Estado, em sua função de promover o bem comum e combater a criminalidade, tem o direito de estabelecer e aplicar essas sanções. É, pois, o único e exclusivo titular do “direito de puni” (jus puniendi) que constitui o que se denomina Direito Penal subjetivo. O direito de punir, todavia, não é arbitrário, mas limitado pelo próprio Estado ao elaborar este as normas que constituem o Direito subjetivo de liberdade que é o de não ser punido senão de acordo com a lei ditada pelo Estado. Só a lei pode estabelecer o que é proibido penalmente e quais as sanções aplicáveis aos autores dos fatos definidos na legislação como infrações penais.

[...] Só após a elaboração da norma que define as infrações penais, vigente a lei penal, surge o jus puniendi, ou seja, o direito de punir, de acordo com a legislação e não como resultado de dominação do Estado.

Para Artemio Zanon, o direito penal se divide em ciência jurídica, ciência social, ciência normativa e ciência jurídica sociocultural. Como ciência jurídica, ocupa-se da infração típica penal e da pena, com objetivo de determinar, caracterizar e classificar as várias infrações nos seus elementos constitutivos e estabelecer um sistema de repressão e reparação, sem esquecer a natureza e gravidade do delito e as condições e o grau de responsabilidade do sujeito.

Já como ciência social, o direito penal seria o estudo do crime como fenômeno natural biofísico social, ou seja, “investiga as causas da conduta desviada, as condições em que se desenvolve e o agente é estudado em sua personalidade orgânica e psíquica, levando-se em consideração que a pena é o meio da reação social contra a criminalidade” . 

Adiante, o direito penal sob o viés de ciência normativa é, puramente, o estudo da norma comportamental penal. Por outro lado, como ciência jurídica sociocultural, tem-se que as normas jurídicas vigem para todos, sem reserva, e também como conjunto de meios que efetivam a realização do Direito. 

Dessa forma, pontua o mesmo autor que o direito penal possui características normativas (estuda a regra jurídica penal), valorativas (cada norma penal possui um valor de acordo com seu conteúdo), finalista (resguarda os bens jurídicos materiais e pessoais, bem como seus interesses fundamentais) e sancionadoras (a sanção protege, assegura e garante o respeito à norma penal).

Observa-se, portanto, em apertada síntese, que o direito penal é, na verdade, a aplicação (e o estudo, muitas vezes) de normas jurídicas em atos descritos como marginalizados e descritos pela sociedade como delitos a serem combatidos com sanções restritivas e coercitivas. Mas não pode ser um objeto de estudo e aplicação que se esgote em si mesmo.  Necessita ser lembrado que o direito penal possui um caráter programático de realizar a paz e o bem-estar social, inclusive daqueles que sofrem as sanções penais. O delinquente, após sofrer a consequências penais dos seus atos, é um sujeito que deve estar apto a ser inserido novamente no sistema social com todos os seus direitos fundamentais garantidos e respeitados. Para isso serve o direito penal: ressocializar aqueles que não tiveram o ensinamento de preservação do bem comum e da paz social.

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2.2 O CRESCIMENTO HISTÓRICO DO DIREITO PENAL

Estudar a história do Direito Penal é perceber o crescimento e as conquistas, além de aprimorar o conhecimento da legislação penal vigente.

2.2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E AS ESCOLAS PENAIS

Nos tempos primitivos, não havia os princípios e leis que regem o sistema penal moderno. Suas ordens estavam baseadas nos resultados das forças divinas, foi a fase da vingança divina. Os fenômenos maléficos eram considerados como essas manifestação dos deuses, chamadas de totem. A repreensão dava satisfação a divindade – esse era o princípio primordial. 

Segundo Mirabete:

A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente, denominados “crime” e “pena”. O castigo inflingido era o sacrifício da própria vida do transgressor ou a “oferenda por este de objetos valiosos (animais, peles e frutas) à divindade, no altar montado em sua honra”. A pena, em sua origem remota, nada mais significava senão a vingança, revide à agressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação de justiça.

A fase vingança divina (pelo menos era o que eles acreditavam naquela época) impregnou-se na forma de punição, no direito penal, em razão da religião reger a vida daqueles antepassados (não que o nosso direito atual esteja distante desse reflexo). A repressão do crime era para a “satisfação dos deuses pela ofensa praticada no grupo social” .

O castigo, ou oferenda, por delegação divina era aplicado pelos sacerdotes que inflingiam penas severas, cruéis e desumanas, visando especialmente à intimidação. Legislação típica dessa fase é o Código de Manu, mas esses princípios foram adotados na Babilônia, no Egito (Cinco Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta) e pelo povo de Israel (Pentateuco) .

Essa vingança tomou caráter público com o crescimento da organização social. Visando dar maior segurança as potestades e a grande nobreza da época, aplicou-se a pena, de forma mais severa e cruel. “O Estado justificava a proteção ao soberano que, na Grécia, por exemplo, governava em nome de Zeus, e era seu intérprete e mandatário. O mesmo ocorreu em Roma, com aplicação da Lei das XII Tábuas” .

Cezar Roberto Bitencourt afirma que essas leis visavam também evitar a dizimação das tribos:

Com a evolução social, para evitar a dizimação das tribos, surge a lei de talião, determinando a reação proporcional ao mal praticado: olho por olho, dente por dente. Esse foi o maio exemplo de tratamento igualitário entre infrator e vítima, representando, de certa forma, a primeira tentaiva de humanização da sanção criminal. A lei do talião foi adotada no Código de Hamurabi (Babilônia), no Êxodo (hebreus) e na Lei das XII Tábuas (romanos).

O povo hebreu evolui na sua sistematização do direito penal com a criação do Talmud. As antigas penas são substituídas pela prisão, multa e gravames físicos, inclusive com a aplicação da pena de morte. Apesar de ser hoje inconcebível, o Talmud foi um suavizador à aplicação das leis da vingança anteriores.

Estabeleciam-se, inclusive, garantias rudimentares em favor do réu, contra os perigos da denunciação caluniosa e do falso testemunho, de consequências gravíssimas e tantas vezes irreparáveis para o condenado inocente, máxime num sistema repressivo em que a palavra das testemunhas assumia excepcional importância na pesquisa da verdade.

Em Roma, delito e religião se separaram. A pena passa a ser para todos, abolindo-se a pena de morte, em razão da sua substituição pelo exílio e deportação. “Contribui o Direito Romano decisivamente para a evolução do Direito Penal com a criação de princípios penais sobre o erro, culpa (leve e lata), dolo (bonus e malus), imputabilidade, coação irresistível, agravantes, atenuantes, legítima defesa etc” .

Essas contribuições são ditas por Luiz Régis Prado e Cezar Roberto Bitencourt, descrevendo, pormenorizado, as principais características desse período:

[...] a) a afirmação do caráter público e social do Direito Penal; b) o amplo desenvolvimento alcançado pela doutrina da imputabilidade, da culpabilidade e de suas excludentes; c) o elemento subjetivo doloso se encontra claramente diferenciado. O dolo – animus –, que significa a vontade delituosa, que se aplicava a todo campo do direito, tinha juridicamente, o sentido de astúciadolus malus –, reforçada a maior parte das vezes, pelo adjetivo má, o velho dolus malus, que era enriquecido pelo requisito da consciência da injustiça; d) a teoria da tentativa, que não teve um desenvolvimento completo, embora se admita, de modo excepcional, das causas de justificação (legítima defesa e estado de necessidade); f) a pena constitui uma reação pública, correspondendo ao Estado a sua aplicação; g) a distinção entre crimina publica, delicta privata e a  previsão dos delicta extraordinária, h) a consideração do concurso de pessoas, diferenciando a autoria e a participação.

Divergente dos demais, por ser um direito baseado nos costumes, o Direito Germânico primitivo era formado pela vingança privada, a qual determinava a punição do autor sempre com base no dano que ele causava, sem relevar o animus (dolo, culpa e as excludentes) do seu ato. Eles acreditavam que “o direito era concebido como uma ordem da paz e a sua transgressão como ruptura da paz, pública ou privada, segundo a natureza do crime, público ou privado” .

Antes da implementação do direito penal moderno, surgiu um novo paradigma de punição com o direito penal canônico. E foi de grande relevância para os homens. Tomando por base que as pessoas são iguais, “acentuou-se o aspecto subjetivo do crime e da responsabilidade penal e tentou-se banir as ordálias e os duelos judiciários” .

Além disso, o direito canônico promoveu “a mitigação das penas que passaram a ter como fim não só a expiação, mas também a regeneração do criminoso pelo arrependimento e purgação da culpa, o que levou, paradoxalmente, aos excessos da Inquisição” .

As práticas do Direito Medieval, por seu turno, eram mais cruéis e bárbaras, já que visavam também a intimidação. “As sanções penais eram desiguais, dependendo da condição social e política do réu, sendo comuns o confisco, a mutilação, os açoites, a tortura e as penas infamantes” . Essas incertezas de aplicação da pena geram a insegurança jurídica na aplicação da pena e dos atos do Judiciário.

É apenas com o Iluminismo do século XVIII que se inicia o chamado Período Humanitário do Direito Penal. O grande precursor desse movimento foi o Marquês de Beccaria, Cesar Bonesana, com o livro “Dos Delitos e Da Penas”, cuja obra demonstra um novo fundamento para a justiça penal, acreditando que a sociedade política deve ser limitada pela lei moral. Beccaria ainda acresce, estabelecendo princípios básicos dessa ciência jurídica, os quais são vistos pelos direitos fundamentais do homem até hoje:

1. Os Cidadãos, por viverem em sociedade, cedem apenas parcela de sua liberdade e direitos. Por essa razão, não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontece nos casos de pena de morte e das sanções cruéis.

2. Só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente.

3. As leis devem ser conhecidas pelo povo, regidas com clareza para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidadãos.

4. A prisão preventiva somente se justifica diante de prova da existência do crime e de sua autoria.

5. Devem ser admitidas em Juízo todas as provas, inclusive a palavra dos condenados (mortos civis).

6. Não se justificam as penas de confisco, que atingem os herdeiros do condenado, e as infamantes, que recaem sobre toda a família do criminoso.

7. Não se deve permitir o testemunho secreto, a tortura para o interrogatório e os juízos de Deus, que não levam à descoberta da verdade.

8. A pena deve ser utilizada como profilaxia social, não só para intimidar o cidadão, mas também para recuperar o delinquente .

Essas ideias de Beccaria se difundiram e permearam o pensamento dos doutrinadores do século seguinte, formando a chamada Escola Clássica.

Para a Escola Clássica, o método que deve ser utilizado no Direito Penal é o dedutivo ou lógico-abstrato (já que se trata de uma ciência jurídica), e não experimental próprio das ciências naturais. Quanto à pena, é tida como tutela jurídica, ou seja, como proteção aos bens jurídicos tutelados penalmente. A sanção não pode ser arbitrária; regula-se pelo dano sofrido, inclusive, e, embora retributiva, tem também finalidade de defesa social.

O movimento criminológico, cabeceado pela escola Positivista, inter-relacionou o pensamento filosófico com o penalista. Iniciado por César Lombroso, o qual acredita que o criminoso possui características físicas e sociais diversas dos não criminosos, estudo o delinquente de maneira biológica, afastando, por completo, o lado racional da ciência jurídica penal, mas firma estudos de novos conceitos de crime e criminoso, a criminologia.

Mirabete afirma que os principais dogmas da Escola Positiva são:

1. O crime é fenômeno natural e social, sujeito às influências do meio de múltiplos fatores, exigindo o estudo pelo método experimental.

2. A responsabilidade penal é responsabilidade social, por viver o criminoso em sociedade, e tem por base a sua periculosidade.

3. A pena é medida de defesa social, visando à recuperação do criminoso ou à sua neutralização.

4. O criminoso é sempre, psicologicamente, um anormal, de forma temporária ou permanente” .

Com base nessa pequena síntese, percebe-se que:

[...] a história do direito penal e da pena corresponde a uma longa luta contra a vingança. O primeiro passo desta história ocorreu quando a vingança foi disciplinada com o direito-de-ver privado a pesar sobre o ofendido e sobre o seu grupo de parentes, segundo os princípios de vingança de sangue e da regra do talião. O segundo passo, muito mais decisivo, aconteceu quando se produziu uma dissociação entre juiz e parte lesada, e a justiça privada – as vinganças, os duelos, os linchamentos, as execuções sumárias, os ajustamentos de contas – foi não apenas deixada sem tutela, mas vetada. O direito penal nasce, precisamente, neste momento, quando a relação bilateral ofendido/ofensor é substituída por uma relação trilateral, que coloca em posição imparcial uma autoridade judiciária. É por isto que cada vez mais um juiz é movido por sentimentos de vingança, ou de parte, ou de defesa social, ou o Estado deixa espaço à justiça sumária dos particulares, pode-se dizer que o direito penal regrediu a um estado selvagem, anterior à formação da civilização.

2.2.2 A FORMAÇÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O Direito Penal, logo após a colonização do Brasil, estava ligado ao direito costumeiro pelas tribos indígenas, regido, principalmente, pela vingança privada.

Na verdade, o primitivismo de nossos silvícolas não autorizava a falar em uma verdadeira organização jurídico-social. Havia simplesmente regras consuetudinárias (tabus), comuns ao mínimo convívio social, transmitidas verbalmente e quase sempre dominadas pelo misticismo.

Para regulamentar melhor as suas condutas e se defender da arbitrariedade dos índios brasileiros, no período colonial entrou em vigor as Ordenações Afonsinas, Manuelinas, o Código de D. Sebastião e as Ordenações Filipinas, respectivamente. Todas essas leis vigoraram em Portugal e a colônia recebia o reflexo dessa legislação.

[...] havia uma inflação de leis e decretos reais destinados a solucionar casuísmos da nova colônia; acrescidos dos poderes que eram conferidos com as cartas de doação, criavam uma realidade jurídica muito particular. O arbítrio dos donatários, na prática, é que estatuía o Direito a ser aplicado, e, como cada um tinha um critério próprio, era catastrófico o regime jurídico do Brasil Colônia.

Após a proclamação da Independência e com a vigência da Constituição brasileira de 1824, foi sancionado o Código Criminal do Império em 1830, pelo imperador D. Pedro I. A legislação “fixava um esboço de individualização da pena, previa a existência de atenuantes e agravantes e estabelecia um julgamento especial para os menores de 14 anos” . Todavia, por seu turno, o Código de Processo Criminal só surgiu em 1832.

O primeiro estatuto com a denominação de Código Penal foi no período republicano, editado em 1890. Ele aboliu a pena de morte e instalou um regime penitenciário de caráter correcional.

O atual Código, sancionado em 1940, entrou em vigor só em 1942. 

É uma legislação eclética, em que se aceitam os postulados das escolas Clássica e Positivista, aproveitando-se, em regra geral, o que melhor havia nas legislações modernas de orientação liberal, em especial nos códigos italiano e suíço. Seus princípios básicos, conforme assinala Heitor Costa Júnior, são: a adoção do dualismo culpabilidade-pena e periculosidade-medida de segurança; a consideração a respeito da personalidade do criminoso; a aceitação excepcional da responsabilidade objetiva .

2.3 FUNÇÃO SOCIAL-REGULADORA DO DIREITO PENAL

O ordenamento jurídico brasileiro se converte em uma unidade de leis, que possui como elemento agregador e limitador a Constituição Federal. É ela que define os pressupostos de criação, vigência e execução de todas as normas. O direito penal se insere, nesse contexto, como aquele que dá proteção para a sociedade e, mais precisamente, defende os bens jurídicos fundamentais.

Nota Mirabette, que

O Direito Penal é uma ciência cultural e normativa. É uma ciência cultural porque indaga o dever ser, traduzindo-se em regras de conduta que devem ser observadas por todos no respeito aos mais relevantes interesses sociais. [...] 

É também uma ciência normativa, pois seu objeto é o estudo da lei, da norma, do direito positivo, como dado fundamental e indiscutível em sua observância obrigatória.

A competência do direito penal é para decidir condutas que atinjam valores fundamentais para a convivência social. E, caso essas condutas sejam infringidas, devem ser evitadas e reprimidas, a fim de que as pessoas que a violaram sofram aprendizado e ressocialização com o direito penal. Assim, tem-se em vista que o Direito Penal é uma “técnica de controle social, é um só instrumento, um só meio - não o mais importante nem o mais indicado - a serviço daqueles fins constitucionalmente outorgados ao Estado (CF, arts. 1º, 3º e 5º). É o braço armado da Constituição Nacional e, portanto, o último guardião da juridicidade” .

Na visão de Vanderson Roberto Vieira, a sanção criminal possui como finalidade principal a preventiva, com o fim de manter a viabilidade da vida em sociedade e controlar o fenômeno criminal dentro do Estado social. Essa finalidade preventiva se divide em: prevenção geral positiva, prevenção geral negativa e prevenção especial positiva.

A prevenção geral positiva “tem seu efeito preventivo ligado ao sentimento de tranquilidade que surge nas pessoas do corpo social quando verificam que no caso concreto houve a indispensável proteção do bem jurídico essencial, provocando na sociedade a crença de que ocorreu a real manutenção da vigência da norma violada” . Todavia, essa prevenção geral positiva gera certo grau de intimidação pelas pessoas, com o medo de que suas atitudes gerem uma possível intervenção penal. E essa é a prevenção geral negativa.

A prevenção especial positiva “orienta-se pelos ditames da (res)socialização do delinquente e pela sua não estigmatização pela resposta penal” .

Esses ditames da prevenção especial positiva são metas da execução penal na nossa ordem jurídica, repleta de disposições que a obrigam. A finalidade de prevenção especial positiva está expressamente prevista: I) art. 6º do Pacto de San José da Costa Rica: ‘as penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados’; II) art. 1º da Lei de Execução Penal (lei 7.210/84): ‘a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado’. Na nossa Constituição, a prevenção especial positiva está implicitamente prevista: 1) na proteção da dignidade humana (art. 1º, III). Sustenta Alice Bianchini que ‘o princípio da dignidade da pessoa exige que todos os esforços sejam empreendidos no sentido de se evitar os efeitos deletérios da prisionização, e que não se abandonem, mas, antes, até mesmo se intensifiquem, também, as preocupações no âmbito da reinserção social do condenado’; 2) no objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Uma sociedade solidária deve se sensibilizar e ter uma atuação positiva para com os apenados; 3) na proibição de se submeter alguém a tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); 4) no princípio da humanidade das sanções (art. 5º, XLII), que veda a pena de morte (exceto em caso de guerra), de caráter perpétuo, de trabalho forçado, de banimento e cruel; 5) na garantia de respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX). O enumerado nos itens 1, 3 e 5 já constavam no Pacto de San José: ‘Art. 5º - Direito à integridade pessoal. 1 - Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2- Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano’.

O sistema jurídico penal do Estado é tido como o mais rigoroso instrumento de controle social. Por esse motivo, que deve ser imposta a pena quando não houver outras medidas suficientes para solucionar o conflito, reabilitar o sujeito e manter a paz social.

Segundo Michel Foucault, a detenção penal deve ter por função essencial a transformação do comportamento do indivíduo. A pena no olhar jurídico-social exerce função de reeducar e ressocializar o apenado. No entanto, por vezes, a emoção humana desconhece a razão e, diante de determinados crimes, acaba chamando por penalidades destoantes dos valores humanos, como no caso da prisão perpétua e da pena de morte. Já ensinava Beccaria que as penas não podem ainda assim ultrapassar aquela força última que estão limitada.

Daí decorre a função subsidiária do direito penal, preconizado como a ultima ratio do ordenamento jurídico, “do fato de que o Direito Penal destina-se à proteção de bens cuja regulação jurídica em outras áreas mostra-se insuficiente em relação às possibilidades de danos e à repercussão pessoal ou social” .

Dentro dessas explicações, deve-se ter em mente sempre que, a “lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade de um sujeito” . Mesmo porque, é sabido que “o direito possa agir diretamente sobre situações de forma preventiva e não sobre pessoas e de forma exclusivamente repressiva” .

O direito penal, portanto, deve apenas tutelar os bens juridicamente relevantes. Nesse conceito tão amplo de “bens juridicamente relevante”, entende-se como aqueles valores que a Constituição assegurou. Valores essenciais à vida humana e que agora são protegidos pelo direito, tais como: vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade, intimidade, vida privada, honra, trabalho, etc.

Leva-se em consideração, dessa forma, que, em que pese o ordenamento jurídico optar por tutelar determinados bens, não necessariamente a proteção será no âmbito penal.

Claus Roxin entende que a proteção criminal deve ser para aqueles “bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos” .

O Direito é, enquanto regulador das relações sociais, âmbito de tutela de bens jurídicos. Ou seja, cada norma protetiva e/ou reguladora de direitos, ou impositiva de proibições, vai ter um bem jurídico no seu âmago, na sua essência. Há algo que está sendo protegido e garantido por tal norma, buscando resguardar o equilíbrio social no conflito de interesses. Nesse sentido, ensina Roxin que em cada situação histórica e social de um grupo humano os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum se concretizam numa série de condições valiosas como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação ou a propriedade, as quais todo o mundo conhece; numa palavra os chamados bens jurídicos; e o direito penal tem que assegurar esses bens jurídicos, punindo sua violação em determinadas condições.

Dessa forma, se é capaz de notar uma função éticossocial e uma função preventiva do direito penal. Aliás, leciona Cezar Roberto Bitencourt sobre a primeira função:

A função ético-social é exercida por meio da proteção dos valores fundamentais da vida social, que deve configurar-se com a proteção de bens jurídicos. Os bens jurídicos são bens vitais da sociedade e do indivíduo, que merecem proteção legal exatamente em razão de sua insignificância social. O direito penal objetiva, assim, assegurar a validade dos valores ético-sociais positivados e, ao mesmo tempo, o reconhecimento e proteção desses valores, que, em outros termos, caracterizam o conteúdo ético-social positivo das normas jurídico-penais. A soma dos bens jurídicos constitui, afinal, a ordem social. O valor ético-social de um bem jurídico, no entanto, não é determinado de forma isolada ou abstratamente; ao contrário, sua configuração será avaliada em relação à totalidade do ordenamento social. A função ético-social é inegavelmente a mais importante do Direito Penal, e, baseada nela, surge a sua segunda função, que é a preventiva.

Adiante, o autor explicita que o direito penal, inicialmente, serve para garantir a segurança e a estabilidade do juízo éticossocial da comunidade e, no segundo plano, insurge-se contra a violação do ordenamento com a imposição de pena.

Orienta-se o Direito Penal segundo a escala de valores da vida em sociedade, destacando aquelas ações que contrariam essa escala social, definindo-as como comportamentos desvaliosos, apresentando, assim, os limites da liberdade do indivíduo na vida comunitária. A violação desses limites, quando adequada aos princípios da tipicidade e da culpabilidade, acarretará a responsabilidade penal do agente. Essa consequência jurídico-penal da infração ao ordenamento produz como resultado ulterior o efeito preventivo do Direito Penal, que caracteriza a sua segunda função.

Vê-se, portanto, que a pena deve estar adstrita dentro desses limites do direito penal. Violar esses freios e limites que resguardam os direitos fundamentais da pessoa, violará também o Estado social e democrático de Direito.

Sabe-se que, em uma sociedade (qualquer que seja), há diferenças de poder e de sociedade. Essa diferença acentua o fenômeno da marginalização social dos que não detém o poder e o saber político. Lamentavelmente, é dessa casta social que vem o maior número de delinquência. Pode-se dar diversos significados para isso: educação deficitária, necessidades básicas não supridas pelo Estado, falta de oportunidade para a mudança de vida, etc. Não importa a justificação, o que importa é que é sobre eles que o direito penal mais se insere. O pior disso é que essas normas penais se intensificam e se tornam mais violentas nesses contextos sociais. Ou seja, o que já era marginalizado pela sociedade, se mantém e se intensifica na marginalização, gerando um distanciamento cada vez maior entre os níveis sociais.

O que se pretende com o direito penal é uma aplicação de soluções punitivas de uma maneira mais limitativa possível, buscando uma redução da intervenção punitiva. Não se quer segregar indivíduos da mesma sociedade, se quer ressocializá-los da melhor maneira possível. Deve-se lançar mão do direito penal com a finalidade de redução da violência, garantindo a proteção dos direitos fundamentais de todas as pessoas abrangidas pelo Estado Democrático.

2.4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO ALICERCE DO JUS PUNIENDI

A ciência jurídica foi criada, conforme já transcrito no capítulo primeiro desse trabalho, para regular a vida em sociedade. A sociedade, por sua vez, é representada, interna e externamente, por um ente soberano chamado de Estado. Este ser figurativo nada mais é do que a representação da vontade de seu povo. O povo, no seu entender, cria o Estado para assegurar suas condições mínimas e essências de existência, mas, ao mesmo tempo, essas condições não são irrestritas, devem estar limitadas pela vontade geral.

As condições mínimas e essenciais de existência em comunidade são os direitos fundamentais assegurados e protegidos a todos os indivíduos. Em complemento, o direito é capaz, segundo o primado da cidadania digna para todos, de repensar as possibilidades normativas e políticas da sociedade. O direito transforma o convívio social em instrumento útil para a qualificação da vida humana.

Ferrajoli demonstra, em belas palavras, a inserção da doutrina iluminista de proteção dos direitos fundamentais fixada como limite do poder punitivo:

É exatamente o bem-estar dos cidadãos, realizado através da tutela das suas vidas e de seus outros bens fundamentais o ponto de vista externo sobre o qual até mesmo Hobbes baseará a justificação daquele “grande Leviatã chamado Estado, o qual nada mais é do que um homem artificial, ainda que de maior estatura e força do que o natural, para cujas proteção e defesa foi concebido. “O governo”, proclama no art. 3 da Declaração da Virgínia, “é, ou deve ser, instituído para a utilidade comum, proteção e segurança do povo, da nação ou comunidade. De todos os diversos modos e formas, o melhor é aquele que consegue produzir o maior grau de felicidade e de segurança”. No direito penal este nexo entre utilitarismo, contratualismo, convencionalismo e racionalismo se revela na fundação das proibições e das penas enquanto “instrumentos” de tutela dos cidadãos.

Os direitos fundamentais constroem uma racionalidade prática do direito penal, buscando equilibrar as forças do interesse punitivo do Estado e a preservação da liberdade e segurança de seu povo.

Com inspiração em Luigi Ferrajoli, trata-se de entender que a forma de se evitar que o Direito Penal seja apenas um instrumento de controle social (ou ao menos um mero instrumento de controle social dos mais fortes sobre os mais débeis) está em se garantir que a dignidade de todos e de cada um seja normativamente consagrada como indispensável para qualquer atuação jurídico-penal.

Dessa forma, entende-se que a preservação e efetivação dos direitos fundamentais dentro de um Estado soberano tem como escopo central o ser humano. Foca-se no indivíduo para insurgir-se contra o arbítrio e a coisificação dos sentimentos e vontades das pessoas.

Edihermes Marques Coelho ensina a abrangência dentro de uma estrutural estatal dessa preservação dos direitos fundamentais como alicerce do próprio Estado e, por conseguinte, da própria estrutura normativa:

Internamente, trata-se de desenvolver e consolidar a interpretação crítica da dogmática penal, focada nos direitos humanos e seguindo uma política criminal minimalista. Externamente, a abordagem garantista está focada na legitimação do Direito frente à centralidade do ser humano no mundo, a partir da reflexão sobre os fundamentos da política criminal.

O direito penal, por seu modo, apresenta-se, dentro do ordenamento, como um “conjunto de diretrizes a serem perseguidas, construídas historicamente como garantias individuais contra a possibilidade de arbítrio estatal, mas temperadas com a necessidade de controle social da criminalidade” .

Um programa de direito penal, dessa forma, deve apresentar-se como massivo protetor dos bens essenciais e com consequentes proibições legais capazes de evitar as violações desses direitos. Por outro lado, deve-se também assegurar direitos daqueles que infringem essas normas, bem como não se pode tipificar toda e qualquer conduta social. 

O princípio norteador da política criminal, não há crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, inc. XXXIX, da CRFB), é um exemplo claro de garantia do indivíduo e de limitação do poder de punir estatal. Afirma Claus Roxin que “o princípio ‘nullum crimen sine lege’ não deixa de ser um postulado político criminal, enquanto imperativo de combate eficaz ao crime. Ele não só é um elemento de prevenção geral, mas a limitação do poder de punir pelo Direito é também em si uma finalidade importante da política criminal”.

Constata-se, portanto, que o direito penal, ao enaltecer a aplicação dos direitos fundamentais, intensifica a função de prevenção contra a criminalidade ao mesmo tempo em que limita o arbítrio do poder de punir do Estado. O reflexo dessa proposta, de certa forma, é a preocupação com as necessidades básicas e essenciais do indivíduo, preservando esse direito contra qualquer autoritarismo e incrementando princípios e objetivos a serem perseguidos na política penal e na processual penal do ordenamento jurídico.

[...] as funções do Direito Penal, assim, configuram-se, por um lado, na busca de controle social, através de mecanismos simbólicos de prevenção. Por outro lado, volta-se para a garantia do indivíduo frente ao Estado e suas pretensões de intervir sobre a liberdade. São no contraponto entre essas duas faces da esfera penal que se pode defender que o Direito Penal contemporâneo caminhe para ser uma esfera jurídica centrada no enaltecimento do ser humano como referência e razão principal das relações sociais.

A Constituição Federal já consagra essa abrangência dos direitos fundamentais como alicerce do jus puniendi. Limita-se o estudo a esse texto normativo, pelo seu caráter de soberania e limitação que ele perpassa para todo a criação das leis brasileiras, o que também já foi esclarecido no primeiro capítulo desse trabalho.

Assim, no âmbito penalista, a Constituição Federal ampara os princípios penais em diversos pontos do seu texto, em especial no Título I e Título II do corpo normativo, de modo explícito ou implícito. O primeiro é o princípio da Dignidade da Pessoa humana (art. 1º, inc. III), adiante se tem o princípio da legalidade, que se desmembrado se vê o princípio da reserva legal e o da anterioridade da lei penal (art. 5º, inc. XXXIX), princípio da humanidade das penas (art. 5º, incs. III, XLVI, XLVII, XLIX), o princípio da intervenção mínima, princípio da culpabilidade ou da responsabilidade subjetiva, princípio da taxatividade, princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e princípio da vedação da punição pelo mesmo fato. Esses últimos são implícitos.

Especificamente no art. 5º, a Constituição ainda consagra a igualdade no tratamento em direitos e obrigações entre os homens e mulheres (inc. I), a vedação da submissão a tortura ou a qualquer tratamento desumano ou degradante (inc.III), a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (inc. VI), a ausência de privação do exercício dos direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (inc. VIII), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inc. IX), a inviolabilidade da intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (inc. X), a inviolabilidade de domicílio (inc. XI), a inviolabilidade de correspondência e de comunicações telefônicas (inc. XII), o acesso à informação (inc. XIV), o repúdio ao juízo ou tribunal de exceção (inc. XXXVII), o tribunal do júri (inc. XXXVIII), o princípio da anterioridade da lei penal (inc. XXXIX), a garantia da irretroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu (inc. XL), garante a punição legal contra qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inc. XLI), o princípio da intranscendência da pena ou da personalidade ou responsabilidade pessoal, ou ainda, da pessoalidade da pena (inc. XLV) e o princípio da individualização da pena (inc. XLVI).

A partir do inciso 50º do mesmo art. 5º da CRFB, encontra-se também: o principio do juiz natural (inc. LIII), a garantia do devido processo legal em privação da liberdade e de bens (inc. LIV), os princípios do contraditório e da ampla defesa (inc. LV), a inadmissibilidade das provas ilícitas (inc. LVI), a garantia da presunção de inocência até o trânsito em julgado do processo penal (inc. LVII), a garantia de que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal (inc. LVIII), a restrição da a publicidade dos atos em caso de defesa da intimidade (inc. LX), a prisão legal e fundamentada (inc. LXI), a garantia de comunicação da prisão aos familiares do preso e ao juiz (inc. LXII), a informação ao preso de seus direitos (inc. LXIII), a garantia de identificação do responsável pela prisão (inc. LXIV), o relaxamento da prisão ilegal (inc. LXV), a possibilidade da liberdade provisória (inc. LXVI), o ajuizamento do habeas corpus (inc. LXVIII), do mandado de segurança (inc. LXIX) e do habeas data (LXXII) na esfera criminal; a assistência jurídica gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (inc. LXXIV), a indenização, por  parte do Estado, pelo erro judiciário (inc. LXXV) e a garantia a todos a razoável duração do processo, seja ele judicial ou administrativo (inc. LXXVIII).

Além de outros princípios que não foram erigidos à ordem constitucional, apesar de possuírem seu respaldo lá, mas que estão dispostos no Código Penal, no de Processo Penal e até na Lei de introdução ao Direito Brasileiro, como exemplo tem-se a disposição da interpretação analógica (art. 4º da LIDB) e sua limitação (art. 345 do CP).

A positivação desses princípios traz um grande incremento para a tutela penal. Não só de preservação subjetiva da dignidade humana, mas como garantia de um processo formal penal que não violará, de forma objetiva, esses princípios. 

A afirmação dos direitos fundamentais do homem no Direito Constitucional positivo reveste-se de transcendental importância, mas não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo. Ruy Barbosa já dizia que uma coisa são os direitos, outras as garantias, pois devemos separar, no texto da lei fundamental, as menções meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam

o poder. Aquelas instituem os direitos, estas as garantias.

O modelo garantista possui essa visão: além de prever a proteção dos direitos essenciais dos indivíduos, mantém um Estado que resguarda o direito em si, por meio de sua tutela jurisdicional. Mesmo porque, um direito sem garantia firmada no texto fundamental de um Estado não é direito.

3 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA NO MODELO PENAL BRASILEIRO

A cada dia percebe-se a ingerência de discursos humanistas no convívio social e na regência de novas condutas. A preservação dos direitos fundamentais da pessoa, essa tida como indivíduo e como comunidade, torna-se, paulatinamente, o grande valor da convivência em sociedade e da preservação do pacto social. 

Dessa forma, a intervenção violenta do sistema penal na vida de um indivíduo está em total dissonância com o pensamento humanitário. Mas, infelizmente, há poucos que percebem esse contrassenso. 

Ao contrário, o povo, de maneira geral, clama pela maior criminalização, inclusive, com graus irreversíveis, como a pena de morte. Essa convicção popular de maior tipificação de condutas está firmada na insegurança que o atual sistema nos traz (a grandiosidade de violências nas cidades).

Nesse capítulo, busca-se uma esperança para o sistema penal, por meio do princípio da intervenção mínima, resgatando os dogmas humanistas, a fim de penalizar apenas aquilo que for essencial para preservar a vida em sociedade. Toma-se esse princípio como um salvador, porque, além do direito penal ter sido empregado e moldado sob esse postulado, acredita-se que a partir do momento que o legislador se preocupar apenas com que for, de fato, relevante para a sociedade, o direito penal poderá cumprir seu papel sancionatório (com a pena adequada para o crime), educativo e ressocializador.

3.1 CONCEITO E INSERÇÃO NO MODELO JURÍDICO BRASILEIRO DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

Os princípios são preceitos universais e abstratos, aplicáveis a todo o ordenamento jurídico, por mais que não dispostos expressamente na Constituição do Estado. Robert Alexy afirma que os “princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes” .

Acrescenta o autor que os princípios são mandados de otimização, pois “são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas” .

Enraizados dentro de um sistema estatal legislativo, os princípios tomaram proporções normativas e não apenas declarações descritas. Ensina Agostin Gordilho:

Diremos então que os princípios do Direito Público contidos na Constituição são normas jurídicas; mas não só isso, enquanto a norma é um marco dentro no qual existe certa liberdade, o princípio tem substância integral [...]. A norma é limite, o princípio é limite e conteúdo [...]. O princípio estabelece uma direção estimativa, em sentido axiológico, de valoração, de espírito [...]. O princípio exige que tanto a lei como o ato administrativo lhe respeitem os limites e que além do mais tenham o seu mesmo conteúdo, sigam a mesma direção, realizem o seu espírito.

Ao elevar os princípios às Constituições, incrementam-se ainda mais a superioridade e prevalência dos princípios sobre os demais tipos normativos, pois, enquanto valores fundamentais que são, os princípios regem e governam a Constituição e, por conseguinte, a ordem jurídica.

A esta altura, os princípios se medem normativamente, ou seja, têm, alcance de norma e se traduzem por uma dimensão valorativa, maior ou menor, que a doutrina reconhece e a experiência consagra. Consagração observada de perto na positividade dos textos constitucionais, donde passam à esfera decisória dos arestos, até constituírem com estes aquela jurisprudência principal, a que se reporta, com toda a argúcia [...].

A nossa Constituição Federal, por sua vez, consagra princípios que dão diretrizes e metas para todo o ordenamento. Especificamente, no direito penal, os princípios constitucionais limitam a intervenção estatal nos direitos primordiais da coletividade.

Segundo Maurício Antônio Ribeiro Lopes, os princípios penais implícitos e explícitos no art. 5º da CRFB “têm a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, em Direito Penal mínimo e garantista” .

Logo no art. 1º, inc. III, da CRFB, aparece o princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo o mais importante princípio do Estado Democrático de Direito. Inclusive, é por meio desse princípio que deriva os demais princípios constitucionais penais, como o da intervenção mínima.

A Constituição Federal, ao proclamar, em seu art. 5º, que os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade são invioláveis e colocar, no art. 1º, inciso III, como fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, permite-nos deduzir nesses princípios expressos o da intervenção mínima, pois somente se admite a restrição ou privação de tais direitos, com a aplicação de sanções, se for necessário proteger os direitos fundamentais do homem.

Antes de adentrar no princípio da intervenção mínima, precisa-se ter em mente o caráter fragmentário do direito penal. O legislador penal não pode tutelar todos os bens jurídicos, ele possui limites substanciados no retalho legislativo que rege a atuação do direito penal.

A fragmentariedade é a “tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa” .

Muñoz Conde ensina a dimensão dessa característica:

O caráter fragmentário do Direito Penal [...] apresenta-se sob três aspectos: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico somente contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punibilidade da prática imprudente de alguns casos; em segundo lugar, tipificando somente parte das condutas que outros ramos do Direito consideram antijurídicas e, finalmente, deixando, em princípio, sem punir ações meramente imorais, com a homossexualidade ou a mentira.

O significado do caráter fragmentário dessa ciência jurídica em análise é que não se sancionam todas as condutas lesivas aos bens jurídicos, apenas aquelas, que se violadas, são perigosas e graves para o convívio social. Ou seja, "apenas as condutas deletérias da espinha dorsal axiológica do sistema global histórico-cultural da sociedade devem ser tipificadas e reprimidas" .

Daí decorre o princípio da intervenção mínima:

[...] o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. Como preconizava Maurach, “na seleção dos recursos do Estado, o Direito Penal deve representar a ultima ratio legis, encontrar-se em último lugar e entrar somente quando resulta indispensável para a manutenção da ordem jurídica”. Assim, o Direito Penal assume uma feição subsidiária e a sua intervenção se justifica quando – no dizer de Muñoz Conde – “fracassam as demais formas protetoras do bem jurídico previstas em outros ramos do direito”. A razão desse princípio – afirma Roxin – “radica em que o castigos penal coloca em perigo a existência social do afetado, se o situa à margem da sociedade e, com isso, produz também um dano social” .

O programa de minimização da intervenção penal baseia no princípio da dignidade da pessoa, bem como se a inserção da penalização é necessária. No Código Penal, esse ideário está disposto no art. 59: a penal estabelecida para cada delito deve ser “necessária e suficiente para a reprovação do crime” .

Segundo o pensamento de Binding e Jescheck, o Direito Penal tem, assim, um caráter fragmentário, pois não encerra um sistema exaustivo de proteção aos bens jurídicos, mas apenas elege, conforme o critério do “merecimento da pena”, determinados pontos essenciais. Mas, enquanto o primeiro entendia ser esse o defeito do Direito Penal, Jescheck considera um mérito e uma característica essencial do Estado liberal do Direito que se reduza a criminalização àquelas ações que, por sua perigosidade e reprovabilidade, exigem e merecem interesse da proteção social, inequivocamente, a sanção penal.

Pode-se, dizer, assim, que o fim do Direito Penal é a proteção da sociedade e, mais precisamente, a defesa dos bens jurídicos fundamentais (vida, integridade física e mental, honra, liberdade, patrimônio, paz pública etc.). Deve-se observar, contudo, que alguns desses bens jurídicos não são tutelados penalmente quando, a critério do legislador, não é relevante antissocial a ação que o lesou, ou seja, não é acentuado o desvalor da conduta do autor da lesão. Por isso, não estão sujeitos às sanções penais [...].

Não obstante os ensinamentos teóricos preconizarem a fragmentariedade  e o princípio da intervenção mínima do direito penal, não é assim que o Poder Legislativo se porta. Eles inflaram o sistema penal com a finalidade de buscar maior segurança a coletividade, mas geraram a ineficiência das penas clássicas, a lentidão da administração da justiça, os custos sociais e individuais do delito e a sobrecarga dos Tribunais. Ou seja, os legisladores contemporâneos, ao abusar da penalização, levaram ao descrédito, com a perda da função intimidativa, o Direito Penal e a sanção criminal.

O medo (Malaguti Batista, 2003) que vira medo do crime, e a insegurança, que vira insegurança contra a criminalidade, aparecem como a base da grande demanda por segurança pública, cujo sistema se torna o mais hipertrofiada do CGN [ideologia neoliberal] e acarreta a saturação punitiva das agência policial (civil e militar) e prisional, que está na base de uma das mais espetaculares expansões punitivas que o capitalismo tem vindo a experimentar, dando espaço a um gigante punitivo, ao agigantamento do “Papai Noel”.

A equação “aumento e alarma (midiático) da criminalidade = medo e insegurança = demanda por segurança = expansão do controle penal” obedece as ilusões da infância criminológica (Criminalidade positivista) em que se acreditava no Papai Noel (sistema penal) distribuindo presentes (combatendo e reduzindo a criminalidade, ressocializando os criminosos e provendo segurança).

Assim, o discurso social de que o Estado se fortalecerá e trará a segurança para o seu povo, por meio da criminalização, com a maior penalização das condutas, está fundamentado na desconfiança que esse mesmo Estado tem em punir e ressocializar quem já faz parte do seu sistema. A solução, na verdade, é o contrário desse pensamento, pois quanto maior a limitação do direito penal no Estado Social e Democrático de Direito, tutelando apenas os bens jurídicos fundamentais à coexistência, maior também será o livre desenvolvimento da personalidade humana e da paz social.

Direito Penal que se quer democrático deve se utilizar da pena aferindo no caso concreto a sua real necessidade e eficácia, tanto para o agente do delito quanto para a sociedade que sofreu o prejuízo com a infração. Para tanto, o legislador e o juiz devem estar atentos aos princípios norteadores da sanção penal em um Estado Democrático de Direito, máxime na imposição da pena privativa de liberdade que, não obstante seja a de maior utilização, é a que menos tem auferido resultados no sentido de satisfazer as aspirações de um moderno direito penal democrático.

Nesse mesmo rumo, Fernando Capez acredita que o princípio da intervenção mínima para ser eficaz tem que ser observador por dois destinatários principais: o legislador e o operado do direito. Assim leciona o autor:

Ao legislador o princípio exige cautela no momento de eleger as condutas que merecerão punição criminal, abstendo-se de incriminar qualquer comportamento. Somente aqueles que, segundo comprovada experiência anterior, não puderam ser convenientemente contidos pela aplicação de outros ramos do direito deverão ser catalogados como crimes em modelos descritivos legais.

Continua Capez que “ao operador do Direito recomenda-se não proceder ao enquadramento típico, quando notar que aquela pendência pode ser satisfatoriamente resolvida com a atuação de outros ramos menos agressivos do ordenamento jurídico” .

Em suma, o princípio da intervenção mínima se fixa no conceito que a pena para ser aplicada deve ser o único e último recurso para a proteção do bem jurídico violado, pois só assim há uma distribuição mais equilibrada de justiça.

3.2 A TEORIA GARANTISTA DE LUIGI FERRAJOLI: DIREITO PENAL MÍNIMO E DIREITO PENAL MÁXIMO

O modelo garantista, advindo da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo, e teorizado por Luigi Ferrajoli, possui dois elementos constitutivos: o convencionalismo penal e o cognitivismo processual.

O primeiro se traduz no princípio da reserva legal, que Ferrajoli chama de legalidade estrita, que é “aquele formalmente indicado pela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena” . O desvio punível de conduta não poderá ser imputado com referência a figuras subjetivas de status ou de autor, há a necessidade da materialidade (a existência do crime) e a configuração de alguns dos elementos subjetivos do tipo (dolo ou culpa do agente), o que se substancia na máxima latina nulla poena sine crimine et sine culpa.

Explicita, dessa forma, o autor:

A primeira condição equivale ao princípio da reserva legal em matéria penal e da consequente submissão do juiz à lei: o juiz não pode qualificar como delitos todos (ou somente) os fenômenos que considere imorais ou, em todo caso, merecedores de sanção, mas apenas (e todos) os que, independentemente de sua valoração, venham formalmente designados pela lei como pressupostos de uma pena. A segunda condição comporta, além disso, o caráter absoluto da reserva da lei penal, em virtude da qual a submissão do juiz é somente à lei.

Sob o mesmo pensamento, o nosso ordenamento prescreve: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, inc. XXXIX, da CRFB). De teor igual, esse princípio se materializa também no art. 1º do Código Penal.

No que tange à submissão do juiz à lei, a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro também já disciplina: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º do Decreto-Lei n. 4.657/1942).

O segundo elemento constitutivo (cognitivismo processual) da teoria garantista reflete que o princípio da estrita jurisdicionariedade, que significa:

[...] o pressuposto da pena deve ser a comissão de um fato univocamente descrito e indicado como delito não apenas pela lei mas também pela hipótese da acusação, de modo que resulte suscetível de prova ou de confrontação judicial, segundo a fórmula nulla poena et nulla culpa sine judicio. Ao mesmo tempo, [...] é preciso também que as hipóteses acusatórias, como exige a segunda condição, sejam concretamente submetidas a verificações e expostas à refutação, de modo que resultem apenas convalidadas se forem apoiadas em provas e contraprovas, segundo a máxima nullum judicium sine probatione.

Para Ferrajoli, o garantismo possui três vieses de significações, que, ao mesmo tempo, se complementam: a) um modelo normativo de direito (um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos do cidadão); b) uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” (o espírito crítico e a incerteza sobre a validade das leis e de suas aplicações, bem como a consciência do caráter em larga medida ideal de suas fontes de legitimação jurídica, e c) uma filosofia jurídica (que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade).

Em resumo, Ferrajoli diz que:

Uma teoria do garantismo, além de fundar a crítica do direito positivo referente aos seus parâmetros de legitimação externa e interna e, por consequência, também uma crítica das ideologias: das ideologias políticas sejam estas jusnaturalistas ou ético-formalistas, as quais confundem, sob o plano político externo, a justiça com o direito, ou pior, vice-versa; e das ideologias jurídicas, sejam estas normativas ou realistas, que paralelamente confundem, sob o plano jurídico ou interno, a validade com o vigor, ou, ao contrário, a efetividade com a validade.

Esse modelo foi criado para ser perseguido pelo direito e, quiçá, para satisfazer os bens protegidos pela ciência jurídica. Para alcançar tais finalidades, necessita ser inserido dentro da axiologia de princípios considerados fundamentais, a saber: Nulla poena sine crimine (Não há pena sem crime), Nullum crimen sine lege (Não há crime sem lei), Nulla lex (poenalis) sine necessitate (Não há lei penal sem necessidade), Nulla necessitas sine injuria (Não há necessidade sem injúria), Nulla injuria sine action (Não já injúria sem ação), Nulla actio sine culpa (Não há ação sem culpa), Nulla culpa sine judicio (Não há culpa sem sentença), Nulla judicium sine accusatione (Não há sentença sem acusação), Nulla accusatio sine probatione (Não há acusação sem prova), Nulla probatio sine defensione (Não há prova sem defesa).

Todos esses dez axiomas possuem correspondência no direito penal, respectivamente, como: princípio da retributividade, princípio da legalidade, princípio da intervenção mínima, princípio da ofensividade, princípio da exteriorização, princípio da culpabilidade no processo, princípio da jurisdicionalidade, princípio acusatório ou inquisitório, princípio do ônus da prova, princípio o contraditório e da ampla defesa.

Esses elementos dão limites à intervenção punitiva estatal contra o arbítrio e erro penal, identificadas como as garantias dos indivíduos perante um Estado.

Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente preestabelecidos.

Dentro desse paradigma, conceitua-se o direito penal mínimo como limitador e condicionador ao máximo do Estado, o que corresponde ao grau máximo de tutela das liberdades das pessoas frente ao arbítrio punitivo e um ideal de racionalidade e de certeza. Portanto, exclui-se a responsabilidade penal todas as vezes que seus pressupostos sejam incertos e indeterminados, pois “um direito penal é racional e correto à medida que suas intervenções são previsíveis” .

Essa minimização do direito penal traz dois objetivos: a prevenção do delito e a prevenção das penas informais. O primeiro encapa-se com a ideia do máximo bem-estar possível dos não desviantes com o mínimo mal-estar necessários dos desviantes. Já o segundo se traduz que “a pena não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições” , ou seja, tutela a pessoa do delinquente contra atitudes informais, públicas ou privadas, minimizando a reação violenta do delito.

Ferrajoli concatena esses objetivos, dizendo que “o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outra negativa, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas” . Dessa forma, essa ciência impede o exercício das próprias razões, impedindo a violência na sociedade e legitimam o direito penal como tutela dos direitos fundamentais.

Garantismo, com efeito, significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à verdade. É precisamente a garantia desses direitos fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela maioria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio princípio majoritário.

Por outro lado, tem-se o modelo de direito penal máximo (apesar de não ser o objeto desse estudo, sua conceituação traz validade para a tese). Para um sistema de controle penal próprio do Estado absolutista ou totalitário, o direito penal máximo se reveste de incondicionalidade e ilimitariedade, ou seja, dar incerteza e imprevisibilidade as condenações e a penas. “Configura-se como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação” .

Percebe-se que o modelo brasileiro traz na sua essência (na sua forma positivada) esse direito penal mínimo. Por outro lado, as novas determinações de pena e as paixões que regem a sociedade buscam o direito penal máximo. Contudo, essa proposta da maximização das normas trará consequências de caráter negativo, se não mudada do pensamento popular. O direito penal máximo está vinculado a arbitrariedade de governança.

Não querer ter os direitos fundamentais garantidos de forma segura, é perder o senso de democracia e preconizar um regime totalitário e ditatorial. E mesmo que se acredite que essa será a solução (ou até uma forma de transição para a mudança da atual sociedade pós-moderna), afastaria, por completo, a criação, evolução e firmamento dos direitos humanos teorizados para assegurar os primados básicos de sobrevivência com dignidade e respeito das pessoas, os quais nasceram de pensamentos críticos e necessidades sociais após as tentativas de imposições de regimes totalitários nas grandes guerras.

Alexandre Morais da Rosa define o garantismo jurídico, sob a interpretação de Ferrajoli, da seguinte forma:

O garantismo jurídico, como visto, consiste na tutela de todos esses Direitos Fundamentais (liberdades e direitos sociais) assim estabelecidos pela ordem constitucional vigente, os quais representam os alicerces da existência do Estado Democrático de Direito, que o alimentam e são, assim, a base da democracia material. Logo, a democracia entendida como garantista significa o Estado de Direito munido tanto de direitos liberais (direitos de) como de direitos sociais (direitos a), próprios, esses últimos, dos Estados intervencionistas como o Brasil, não obstante, na prática, se constituírem em promessas (retóricas) sonegadas.

O mesmo autor ainda entende que esta teoria está baseada no respeito à dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais, sendo que as práticas jurídicas devem se sujeitar aos conteúdos constitucionais.

Pelo o até agora estabelecido, eis que, inicialmente, o garantismo prega a efetivação dos direitos fundamentais existentes nas constituições de cada Estado. Esta é simplesmente, conforme já dito, a base fundamental na existência dos Estados Democráticos de Direito. Dentro desse entendimento, portanto, é possível dizer que apenas os partidários de Estados Totalitários e contrários à proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana é que podem se dizer não-garantistas, ou seja, não protetor dos direitos essenciais de uma vida digna do indivíduo.

Por outro lado, Alexandre Morais da Rosa respalda o garantismo de Ferrajoli a partir da teoria iluminista e dos autores contratualistas, principalmente de John Locke.

Segundo ele, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau entendem que na formação da sociedade os indivíduos alienam todos os seus direitos ao Estado para, após, e por decisão dos detentores do poder, receber novamente seus direitos mitigados e na medida em que o “Estado” quiser devolver. Porém, em John Locke, o entendimento é de que o indivíduo jamais deixa de ser “proprietário” dos seus direitos fundamentais, sendo que a criação do Estado é limitada por esses direitos:

Salo de Carvalho entende que o “raciocínio de Locke se desenvolve desta forma em quatro assertivas: as leis naturais podem ser violadas; as violações das leis naturais devem ser punidas e os danos reparados; o poder de punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza, à própria pessoa vitimada; quem é juiz em causa própria habitualmente não é imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.”

Por essa concepção, a criação do Estado não implica a concessão de poderes plenos e absolutos, mas vincula a legitimidade de sua atuação (negativa e/ou positiva), à conformação dos direitos antecedentes, mantidos na seara individual e, portanto, incapazes de violação pelo Estado. O poder estatal nasce, desde o início, limitado pelos direitos pré-existentes e inalienáveis, constituindo a esfera do indecidível, avivada no modelo garantista.

Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais escrevem: “Desse modo, para Locke, o homem traz consigo, quando do estabelecimento da sociedade civil, os direitos presentes no estado de natureza; não há um despojamento nesta passagem, tal qual em Hobbes. Assim, o estado civil nasce duplamente limitado. Por um lado, não pode atuar em contradição com aqueles direitos; por outro, deve oportunizar, o mais completamente possível, a usufruição dos mesmos. Nasce, assim, como poder circunscrito àquela esfera de interesses pré-sociais do indivíduo natural. O estabelecimento da lei civil, do juízo imparcial e da força comum tem um papel de reforço dos direitos naturais não alienados através do contrato social. Os indivíduos, ao contrário do que ocorreu em Hobbes, abandonam um único direito; o de fazer justiça com as próprias mãos”.

Neste sentido, em John Locke, mesmo em Estados autoritários haveria o impedimento de se violar os direitos fundamentais, pois que jamais saíram da esfera de direitos do indivíduo e não podem ser modificados pelos detentores do poder.

Seguindo este entendimento, não haveria a possibilidade de qualquer pessoa ser contrária ao garantismo jurídico, pelo simples fato de que não haveria discussões acerca da mitigação dos direitos fundamentais do indivíduo em prol do Estado, devendo ser sempre assegurados os direitos individuais e protegidos contra a violação dos poderes estatais.

Isto, inclusive, é o que entende Luigi Ferrajoli, citado por Alexandre Morais da Rosa, ao afirmar que a violação dos direitos do indivíduo causa uma ruptura do contrato social estabelecido:

[...] pero es también una metáfora de la democracia sustancial, puesto que este contrato no es un acuerdo vacío, sino que tiene como cláusulas y a la vez como causa precisamente la tutela de los derechos fundamentales, cuya violación por parte del soberano legitima la ruptura del pacto y el ejercicio del derecho de resistencia.

Isso quer dizer que, se violados os direitos fundamentais do indivíduo, viola-se todo o pacto social.

Por este motivo, é inviável qualquer argumento democrático contrário ao garantismo. Ser contrário às garantias constitucionais e às garantias do indivíduo é ser contrário aos contratos sociais que formam o Estado e concedem o poder, seja a um soberano, seja a uma classe ou a um povo.

3.3 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA COMO GARANTIDOR DA EFETIVIDADE DO SISTEMA PENAL

O sistema penal, representado, precipuamente, pela legislação criminal, é a maior forma de evolução de uma sociedade. Isso porque se acredita que a humanidade chegue a um nível de compreensão tal, que perceba a necessidade de sua própria regulação. Corrobora com esse pensamento José Faria da Costa, ao afirmar que “o direito penal hodierno, não obstante tudo o que se possa dizer em contrário – e tanta é a erosão que ele está sofrendo -, é a expressão de um dos mais expressivos saltos qualitativos que a humanidade tenha vivido” .

Esse entendimento, que deriva na pactuação do contrato social, demonstra a vontade popular de preservar muito de seus desejos e paixões. Quer dizer, apesar de transferir parcela de sua autonomia a um Estado, o indivíduo ainda conserva suas virtudes, que, inclusive, são transferidas e lançadas do convívio social para o ente soberano cuidar e proteger, seja porque o povo esteja feliz ou não com o modelo atual de governança.

Tanto é verdade, que se vê o crescimento de manifestações populares nas ruas públicas, bem como discursos de concordância nos meios de comunicações, mormente nas redes sociais. 

No âmbito penal, por exemplo, percebem-se constantes rodas de debates e apelos sociais com o propósito de buscar uma resposta estatal mais dura e contundente contra a criminalidade no Brasil. A súplica popular, alimentada pela repercussão midiática da violência cotidiana transmitida, gera uma grande insegurança e imponência do público frente aos casos descritos de violência.

Vera Regina Pereira de Andrade descreve o atual posicionamento popular, ao enunciar que:

[...] a comunidade (o “povo”), que na fundação da modernidade e do controle penal havia rompido com a relação de cumplicidade que no medievo mantinha com o carrasco, para se colocar ao lado e se solidarizar com a dor dos condenados (Foucault, 1987) reúne-se agora novamente a ele, voltando a hipotecar cumplicidade ao carrasco, quando não se fazendo, ele próprio, carrasco. O “povo” está de novo do lado do soberano e alimenta o espetáculo punitivo.

 Essa disposição no novo pensamento e na atitude popular é originária de diversos pontos de vistas, referente à descrição feita por Edihermes Marques Coelho:

Tal sensação decorre de vários aspectos, dentre os quais: - há um aumento do número de crimes brutais, violentos; - as classes sociais mais abastadas têm sido mais atingidas por tais crimes brutais do que em anos anteriores; - há uma crença geral na população que os órgãos policiais soa compostos por muitas pessoas corrompidas; - a maioria dos crimes mais graves não chega a ser elucidada, a ação penal não chega a ser proposta ou não chega a se ter uma condenação; - os criminosos habituais têm agido com organização em rede e com planejamento que em alguns casos lembra atividades empresariais; - o Judiciário é lento no processamento e julgamento dos crimes;  - o sistema punitivo não funciona, ou não funciona adequadamente.

Acrescenta André Fernandes Indalencio, ensinando que a globalização produz, ainda mais, a desigualdade existente:

Outro argumento que permite sustentar a assertiva da prevalência do controle institucional no gerenciamento da miséria produzida pela globalização reside na ponderação dos custos das diferenças vias que se pretenda adotar para a administração do problema: entre direcionar o Estado para a implementação de medidas tendentes à incorporação dos excluídos no processo consumerista (o que leva a consequências políticas e ambientais imprevisíveis) e lançar mão do incremento do sistema de repressão, direcionado a violência institucional para a contenção pura e simples dos inconformados, fica clara a prevalência deste último, o que, aliás, fica bem evidenciado nos movimentos de política criminal dos últimos tempos.

Prosseguindo, Edihermes Marques Coelho exibe sua manifestação dos fatores que representam problemas para o acréscimo da criminalização. Diz o autor que “o crescimento populacional e das demandas sócio-econômicas não tem sido acompanhado de políticas públicas de desenvolvimento econômico a igualdade social capazes de contornar os problemas crescentes” .

Adiciona-se a esse pensamento,

[...] uma incapacidade progressiva do sistema penal para responder aos problemas ligados à criminalidade. A falta de pessoal (ou de pessoal capacitado) e de estrutura material nas polícias macula a capacidade de investigar – além de supostamente haver a necessidade de meios efetivos e eficientes de garantir a moralidade e licitude das atividades policiais. O Ministério Público e o Judiciário não parecem estar aparelhados suficientemente para agilizar a persecução penal em juízo e a decorrente efetividade punitiva. O Executivo não demonstra compromisso com um funcionamento minimamente efetivo (muito menos eficiente) do sistema punitivo, especialmente quanto às condições materiais para o cumprimento das penas.

Prossegue Edihermes Coelho, nesse mesmo pensamento, que a legislação criminal inflacionada pela quantidade de crimes previstos vem para agregar ao descrédito do sistema penal, pois fere “o pressuposto de que a esfera penal deveria ser encarada como fragmentária e residual, voltando-se apenas para os ilícitos mais graves, que exigissem uma intervenção diferenciada através do direito punitivo” .

Diante dessas imperfeições, as manifestações públicas postulam por maiores atuações estatais com a imposição de elevação de penas e o endurecimento do seu cumprimento. Expandem-se essas convicções para tentar resolver os problemas criminais. As principais propostas são: diminuição da idade de imputabilidade penal para 16 anos; aumento da pena máxima de 30 para 50 anos; eliminação do protesto por novo júri; acabar com as figuras do concurso formal de crimes e do crime continuado; vincular diretamente a concessão de benefícios ao preso ao trabalho, e a adoção da prisão perpétua e da pena de morte.

A fim de suprir esse clamor, o sistema está cada vez mais violento e regulando o maior número de condutas humanas. Emerge daí o jus puniendi que atenta contra os mais comezinhos direitos fundamentais da pessoa criminalizada. 

Por causa disso, André Fernandes Indalencio diz que “o exercício do poder de punir, todavia, não pode ser exercido abertamente sem que se lhe agregue um elemento legitimador. Necessita ele de um discurso capaz de afastar a aparência arbitrária sem o qual nenhuma intervenção se sustenta”. Na verdade, continua o autor, isso “se resume o drama que sempre envolveu o direito penal através dos tempos: a busca de um fundamento racional para a legitimação do uso do controle institucional da violência” .

A ideia de que maior punição é igual a maior segurança se espalha sob um ideal errôneo. “Estudos criminológicos têm mostrado que a prevenção geral (em que o indivíduo deixa de praticar o crime pelo temor da gravidade da pena) possui um efeito muito pequeno no controle da criminalidade” .

Ademais, sob o viés do criminoso:

Entretanto, diante da inoperância (ou mal operação) do sistema de persecução penal (investigatório ou em juízo), entende-se que a realidade é outra: há uma sensação de impunidade corrente entre aqueles que cometem crimes, especialmente os criminosos habituais. Junte-se a isso a pressão sobre a juventude no sentido de que o crime é um modo fácil de ganhar dinheiro (ao menos mais fácil e rápido do que o sub-emprego ou o emprego mal remunerado) e tem-se um quadro propício para a vida na criminalidade.

A inoperância do sistema para o marginalizado se resume pelos custos sociais, econômicos e políticos da globalização. O primeiro é a distribuição desigual, por força da seletividade das classes, “o sistema penal não afeta a desigualdade social existente nem ameaça posições privilegiadas consolidadas na estrutura social (ao contrário)” , ou seja, a pena recai, quase que exclusivamente, para essa parcela social.

Para o custo econômico, “revela-se menos, já que a implementação da estrutura punitiva constitui encargo muito menos oneroso economicamente do que a implementação de medidas de efetiva inclusão social”. A causa disso é “a existência de toda uma gama de serviços e bens de natureza privada voltada para o mercado específico da segurança, fazendo com que o sistema penal, de tal forma, se constitua em atividade [...] lucrativa, agregando-se, com isso, à lógica do sistema globalizado (prevalência do lucro)” .

Da mesma forma, o custo político “é inferior, dado que os movimentos de criminalização – principalmente a legislativa, pela força simbólica que contém, passam à população uma falsa impressão de segurança, gerando dividendos eleitoreiros contingenciais, porém essenciais ao processo de manutenção do poder político” .

Sintetiza Vera Regina Pereira de Andrade:

Nas enunciações desta demanda, se fundem às exigências do poder globalizado, as necessidades de acumulação do capital em nível planetário, as idiossincrasias do consumo fetichista, e suas consequências culturais, e o individualismo possessivo, o mesmo que produz o medo e a insegurança difusas na comunidades.

Estamos perante um protagonismo do capital e das finanças, social e ecologicamente predatório, que produz desemprego estrutural, desordem social e exclusão, e necessita neutralizá-la, à custa da culpabilização individual neoliberal, em prisões exterminadoras (periferia capitalista) ou de segurança máxima (centro capitalista), e, ainda, com extraordinária capacidade lucrativa; que amplia a produção de mercadorias e necessita maximizar o consumo, bem como a proteção destes consumidores ávidos por mais e mais patrimônio e dinheiro, e que por todos os motivos da existência contemporânea gera insegurança ontológica (Bauman, 1999), então invertida e reduzida à insegurança e medo do crime, como decisiva mediação estatal e midiática.

Dessa forma, continua a autora:

Vê-se, então, que os enunciadores são os excluídos do contrato social fundador da modernidade (Baratta, 1995), um contrato cujos atores e beneficiários foram homens, adultos jovens brancos e proprietários, e do qual foral excluídos e coisificados (tornados objeto de domínio e sujeição) todos os “improdutivos” na ascendente industrialização capitalista: os homens pobres, os negros, os nãoproprietários, as mulheres, os homossexuais, as crianças, os idosos, os que nada tinham, os animais e a natureza. Assim, mesmo estas demandas, que parecem projetadas unicamente no campo da proteção da subjetividade e da diferença, da proteção contra violências diferenciadas, têm condicionamentos estruturais, e remetem a uma crítica da ordem: o capitalismo explorador do trabalho masculino produtivo, o capitalismo patriarcal e sua sujeição de gênero e sexual (originariamente baseado na família monogâmica heterossexual e na sujeição da mulher ao domínio masculino e ao espaço privado da vida), o capitalismo coisificador e depredador da animalidade e da natureza, que primeiro destrói para depois, frente aos limites naturais da exploração, erguer a bandeira salvacionista. Eis o retrato de uma “sociedade excludente” (Young, 2002), cujo capitalismo, ademais da exploração de classe e da exclusão social, ou seja, da desigualdade social, produz, através de múltiplos cruzamentos estruturais e culturais (antropocentrismo, catolicismo, androcêntrico, sexismo, racismo...) múltiplas dominações e assimetrias sociais.

Essas distorções de ineficácia do sistema penal devem ser corrigidas, mas não será como a grande maioria populacional requer para o Estado. As soluções imediatas são aquelas destinadas a controlar e amenizar a deterioração do sistema, além da modulação do sistema (leis, posicionamento policial, do juiz, do ministério público, a elaboração de políticas públicas penais etc).  A principal reforma que se pretende é o repensar e o reaplicar a legislação penal, enxugando a quantidade de fatos tipificados e impedir a judicializar de tudo que não for essencial para a lei penal.

Essa limitação máxima do poder punitivo – caracterizadora, portanto, do direito penal mínimo – acompanhada de uma cultura de efetivo reconhecimento do respeito às garantias individuais e da busca da efetividade dos princípios constitucionais democráticos, apresenta-se como pauta mínima a qualquer pretensão de manutenção de uma feição minimamente ética do sistema institucional de controle social. Sua implementação, portanto, levada a efeito mediante a elaboração de políticas de tolerância para com o desvio punível (traduzida, sobretudo, em processos de descriminalização formal e material nos planos legislativo e judicial, respectivamente, bem como na elaboração de política de redução de violência institucional cotidianamente empregada pelas agências oficiais de repressão) a par de constituir-se na via que mais de perto diz com a ocorrência de um efetivo Estado Democrático de Direito é, de fato, a proposta que melhor se dispõe para a atenuação dos efeitos próprios a uma ordem em si já perversamente excludente, e que tende a ser manipulada de forma a agravar ainda mais os níveis de injustiça social.

Para Ferrajoli, “um sistema penal somente se justifica se a soma das violências – delitos, vinganças e punições arbitrárias – que este é capaz de prevenir for superior àquela das violências constituídas pelos delitos não prevenidos e penas a estes cominadas” .

E, conforme visto, não é assim que ocorre no Brasil. O sistema penal pune de acordo com a opinião pública momentânea, a mídia e a classe social dominante. O ordenamento jurídico penal cresce e se insurge contra a sociedade sem critérios de elaboração, são as paixões de poucos que são vistas e respeitadas. "A norma, portanto, deixaria de exprimir o tão propalado interesse geral, cuja simbolização aparece como justificativa do princípio representativo para significar, muitas vezes, simplesmente manifestação de interesses partidários, sem qualquer vínculo com a real necessidade da nação" .

A justiça criminal gera a insegurança tão dita e tão noticiada. Dessa forma, "A observância do princípio da intervenção mínima para conter a criminalização excessiva e reduzir condutas típicas já previstas, como descreve Luiz Luisi, é fundamental para que não se implemente o “jargão jurídico da anomia, ou seja: temos muitas leis, e não temos, a rigor, leis”, pois lhes falta a necessária eficácia" .

Por essa exposição, o direito penal deve descriminalizar, despenalizar e desjudicializar condutas, a fim de evitar as ingerências gravosas do sistema na vida contemporânea.

Descriminar é a retirada do mundo jurídico de uma conduta considerada antes criminosa.

Segundo Luisi, ela pode ser realizada por meio de lei que revogue expressamente certas condutas típicas, ou através da substituição da sanção penal por formas não penais de sanção, ou pela derrogação fática, isto é, o fato considerado formalmente como crime deixa de assim o ser por não existir eficácia do sistema penal. Nesse último caso, do ponto de vista técnico-jurídico, a conduta continua a ter o caráter de ilícito criminal, apenas não ocorre a efetiva aplicação da lei penal.

Advoga na mesma linha Paulo de Souza Queiroz, declarando que "a descriminalização, com o objetivo de diminuir a incidência das normas penais, além de ser feita através de lei posterior (abolitio criminis), [...] pode ocorrer por meio de interpretações judiciais restritivas das leis penais, ou no caso da declaração de inconstitucionalidade de lei penal" .

Observa-se, por outro lado, que não é apenas a descriminalização de condutas necessária para salvaguardar e demonstrar a eficiência do sistema penal, há a necessidade de se criminalizar também. Os bens fundamentais de um Estado Democrático e Social de Direito devem ser protegidos por meios de critérios coercitivos e sancionatórios. 

O que se pretende, na verdade, é a retirada do caráter criminal nas condutas sem relevância social. Toma-se, como exemplo, os crimes contra a honra, que poderiam ter valor social recuperado com a aplicação apenas de indenização moral, sem a aplicação de uma pena privativa de liberdade para aquele que infringiu.

O Professor e Promotor de Justiça de Santa Catarina Isaac Sabbá Guimarães leciona a seguinte argumentação:

Apesar de estar-se a falar do contexto propiciador da menor intervenção penal, através do sistema do bem jurídico e do estabelecimento de uma linha indissociável entre direito penal e Constituição e do relevante auxílio promovido pela criminologia e pela política criminal, não é descabido se falar além da orientação de descriminalização, na determinação de uma política de criminalização. A menor intervenção penal, antes de significar um corte radical do direito penal, ou sua completa negação, à maneira que propugna Hulsman (45), é a ideia representativa de uma atuação sensata do Estado, voltado a proteger penalmente os bens relevantes da comunidade. Por isso, o princípio da menor intervenção não descarta a criminalização, desde que ela se estabeleça dentro da filosofia de uma real necessidade e quando outros meios da política criminal mostrarem-se ineficazes.

Ainda assim, há o instituto da despenalização, o qual “consiste na atenuação das penas ou na substituição das mais graves por outras medidas mais brandas, chamadas de ‘alternativas penais’” .

Existem alguns exemplos que refletem a inserção da despenalização, tais como: a aplicação das penas restritivas de direito ao invés das privativas de liberdade (arts. 43 e 44 do Código Penal); a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95); a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) e a composição civil extintiva da punibilidade (art. 74 da Lei 9.099/95).

Isaac Sabbá Guimarães resume como a Lei dos Juizados Especiais, na parte criminal, logrou êxito com a adoção de um modelo penalista menos intervencionista:

A Lei dos Juizados Especiais Criminais é a tentativa incipiente de inserir o Estado na moderna concepção menos intervencionista. Através de normas de caráter processual e penal, a referida lei instrumentaliza a justiça para atingir esse fim. Ao mesmo tempo, oferece um sistema de controle da contumácia não punida. Por outro lado, a lei concebe uma atividade judicial mais célere e eficaz, na medida em que dispensa, nos casos de menor complexidade, a fase de inquérito policial, remetendo o delinquente e vítima à apresentação imediata ao juiz e ao representante do Ministério Público. Já nesse momento, pode ocorrer a transação civil entre ofendido e delinquente, significando em reparação de danos materiais ou morais. Nos casos em que a persecução do crime dependa de representação do ofendido, a transação civil importa na extinção de punibilidade. Também na apresentação inicial, pode o representante do Ministério Público propor a pena, não consistente em segregação que, aceita pelo delinquente, é de imediato executada.  A lei remeteu aos juizados especiais todos os crimes de menor potencial lesivo, tidos como tais aqueles em que a pena máxima não fosse superior a um ano de prisão. Nesse longo rol incluíram-se as contravenções. Como medida acertadíssima de política criminal, condicionou a persecução das lesões leves, culposas ou dolosas, à representação do ofendido. A este cabe a prerrogativa de compor acordo civil, excludente de punibilidade, ou de dar autorização ao Ministério Público para a transação penal ou ajuizamento da ação.  [...] Ao invés da pena de prisão, degradante da pessoa humana e formadora de delinquentes profissionais, deu-se ênfase às penas restritivas de direito, de prestação de serviços à comunidade e de multa. A intenção é, notoriamente, a de evitar o meio pernicioso das prisões para os delinquentes não habituais e menos perigosos. A prisão ficou restrita para os casos graves, em que a retirada do delinquente do meio social é medida necessária.

Por fim, existe também a iminência de desjudicializar condutas, o que significa a retirada da esfera judicial de alguns conflitos, que podem ser resolvidos em outras esferas extrajudiciais. 

Figueiredo Dias explica melhor esse conceito:

conjunto de processos usados pelas instâncias formais ou informais de controle com vistas a alcançar uma solução dos conflitos jurídico-penais fora do sistema formal de aplicação da justiça penal [...], afastando correspondentemente as pessoas daquele sistema e do respectivo ‘corredor da delinquência’, ou de parte deles. [...] O efeito político-criminal positivo que deste movimento se espera é, antes de tudo, o de impedir o efeito estigmatizante, em alta medida criminógeno, da submissão ao sistema formal da justiça penal e, em particular, da aplicação de sanções criminais. Desse modo se procura favorecer a socialização ou a não dessocialização dos delinquentes ou desviantes, sem fazer cair abaixo de quotas mínimas exigíveis o efeito estabilizador das expectativas comunitárias que à ordem jurídica pertence tutelar. A diversão é, assim, em certo sentido, o correlato adjetivo da descriminalização, sendo por isso ao nível da política processual penal que devem discutir-se e avaliar-se as suas realizações e os seus resultados .

No Brasil, há o instituto da arbitragem (um terceiro não interessado ajuda as partes conflitantes a achar a melhor solução para o interesse dos dois lados) e a conciliação (apesar de ainda ser feita nas salas de audiência dos fóruns, muitas são realizadas por juízes leigos), bem como há a possibilidade dos conselhos comunitários em oportunizar esses momentos de conversa. 

Além disso, no âmbito civil, o Ministério Público possui a prerrogativa de instaurar, dentro de suas atribuições e interesses, Inquéritos Civis, Procedimentos Preparatórios, Termos de Compromisso de Ajustamento de Condutas, que são procedimentos extrajudiciais, na sua grande maioria, são resolvidos sem necessitar da interferência do Judiciário para resolver os conflitos.

Nessa linha de raciocínio, sob os institutos da descriminalização, despenalização e desjudicialização, presencia-se um verdadeiro Estado Democrático, que respeita os direitos fundamentais essenciais de seu povo. O ente público apenas regula os valores de interesse social, a fim de proteger os danos de grande relevo, promovendo o equilíbrio, a paz e a segurança da sociedade.

3.4 A APLICAÇÃO CONCRETA DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA – ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

O princípio da intervenção mínima, como já dito, limita o direito de punir do Estado, estabelecendo que a tutela penal só deva tratar de bens jurídicos fundamentais que ferem a sociedade de forma gravosa e perigosa. E, mesmo assim, deve ser a última opção do legislador, não podendo haver outros métodos mais eficientes e menos gravosos que apresentam respostas satisfatórias para o corpo social.

Para demonstrar que sua existência sai do plano teórico e se incide no nosso ordenamento de maneira concreta, colacionam-se entendimentos jurisprudenciais ao presente trabalho.

O primeiro que se destaca é o julgado do Supremo Tribunal Federal, o qual analisou o princípio em debate em correspondência com o princípio da insignificância:

RECURSO ORDINÁRIO EM “HABEAS CORPUS” – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQUENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO (CP, ART. 155, “CAPUT”) – “RES FURTIVAE” NO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 60,00 (EQUIVALENTE A 8,85% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: “DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR”. - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. - O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada esta na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Precedentes. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. A MERA EXISTÊNCIA DE PROCEDIMENTOS PENAIS (ARQUIVADOS OU EM CURSO), NOS QUAIS INEXISTENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO, NÃO BASTA, SÓ POR SI, PARA JUSTIFICAR A FORMULAÇÃO DE JUÍZO NEGATIVO DE MAUS ANTECEDENTES. - A mera sujeição de alguém a simples investigações policiais (arquivadas ou não) ou a persecuções criminais ainda em curso não basta, só por si – ante a inexistência, em tais situações, de condenação penal transitada em julgado –, para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes. Somente a condenação penal transitada em julgado pode legitimar a recusa de aplicação, ao réu, do princípio da insignificância, pois, com o trânsito em julgado (e somente com este), descaracteriza-se a presunção “juris tantum” de inocência do acusado, que passa, então, a ostentar o “status” jurídico-penal de condenado, com todas as consequências legais daí decorrentes. Precedentes. Doutrina (RHC 113381, do Rio Grande do Sul, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 25/06/2013). Grifei.

O Superior Tribunal de Justiça corrobora com esse posicionamento e nos diz que "A lei penal não deve ser invocada para atuar em hipóteses desprovidas de significação social, razão pela qual os princípios da insignificância e da intervenção mínima surgem para evitar situações dessa natureza, atuando como instrumentos de interpretação restrita do tipo penal" (STJ, Agravo Regimental em Agravo de Recurso Especial n. 473032, do Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, j. 24/04/2014).

Em sede estadual, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao decidir sobre o crime de esterilização cirúrgica disposto na Lei n. 9.263, de 1996, aplicou o princípio da intervenção mínima, afastando a sanção penal, para afirmar que o casal possui autonomia para efetivar o seu planejamento familiar de acordo com sua realidade, tomando as decisões que melhor lhe aprouver. Afirmou, ainda, que a questão seria de política pública e controle de taxa de natalidade, pois o constituinte não teria emitido a ordem criminalizadora no art. 226 da CRFB para ir de encontro com a autonomia da entidade da família em definir a quantidade de filhos. Mesmo porque, acredita o julgador que a criminalização da esterilização pode até estimular a sujeição das gestantes a métodos contraceptivos clandestinos, que violam agressivamente a integridade física. É a ementa: 

CRIME DE ESTERILIZAÇÃO CIRÚRGICA IRREGULAR. ARTIGOS 15, 16 E 19, TODOS DA LEI 9.263/96. DIPLOMA QUE REGULAMENTA O PLANEJAMENTO FAMILIAR. ARTIGO 226, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.    CRIMES PREVISTOS NA LEI 9.263/96. CONSTITUCIONALIDADE POLÊMICA. DISSONÂNCIA COM O ARTIGO 226, § 7º, DA CARTA MAGNA. RESTRIÇÃO DE NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA PLENA. PLANEJAMENTO FAMILIAR. LIVRE DECISÃO DO CASAL. FUNDAMENTO NOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL.    Discutível a constitucionalidade da proibição da laqueadura tubária durante o parto, pois a disposição da Lei n. 9.263/96 está em dissonância com o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal. A Magna Carta estabelece que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, o qual é fundado, inclusive, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.    PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. QUESTIONAMENTO REFERENTE À NECESSIDADE DE MODERAÇÃO DO LEGISLADOR NO MOMENTO DE ELEGER AS CONDUTAS DIGNAS DE PROTEÇÃO PENAL. DISPOSIÇÃO DE GERAR FILHOS. BEM JURÍDICO PROTEGIDO CUJA DECISÃO NÃO SERIA RELEVANTE À SOCIEDADE. Milita contra a criminalização da esterilização cirúrgica a aplicação do princípio da intervenção mínima. Cuida-se de princípio que tem como destinatário não só o legislador, como o intérprete do Direito, recomendando moderação no momento de eleger as condutas dignas de proteção penal. Isso é feito justamente para afastar a "proliferação legislativa" de crimes cujo bem jurídico protegido não é penalmente relevante ao indivíduo, tampouco, à sociedade. [...] REFORMA DA DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU. RECURSO PROVIDO. (TJSC, Apelação Criminal n. 2011.085665-2, de Campo Erê, Relator: Des. Jorge Schaefer Martins, j. 13-02-2014).

Outros Tribunais pátrios decidem de igual modo:

APELAÇÃO CRIME. DEMAIS INFRAÇÕES PENAIS. VIAS DE FATO. AÇÃO PENAL INCONDICIONADA. De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal proclamado na ADI 4424, a ação penal para apuração dos delitos envolvendo violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada. ABSOLVIÇÃO. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA. A descrição fática contida na denúncia, no sentido de que o acusado teria desferido socos e pontapés contra a ofendida, não veio confortada pela prova judicial. O acervo reunido no curso da instrução revela que, após discussão ocorrida no âmbito doméstico, o réu e a vítima trocaram empurrões, sendo que, pela superioridade física daquele, esta foi colocada para fora da cama. Nesse contexto, em se tratando do primeiro processo criminal a que responde o acusado, que tinha 40 anos de idade ao tempo do fato, e considerando que o episódio foi isolado na vida do casal, que mantém laço matrimonial há mais de 20 anos, o Direito Penal não pode ser usado para a resolução do conflito. Em virtude das peculiaridades que revestem a excepcional hipótese dos autos, afigura-se possível a aplicação do princípio da intervenção mínima, que reserva o âmbito de incidência do Direito Penal aos casos dotados de maior significância social ou que acarretem lesões de maior gravidade a direitos individuais. Sentença condenatória reformada, com a consequente absolvição do denunciado. APELAÇÃO PROVIDA. (TJRS. Apelação Crime Nº 70055985709, de Ibirubá. Oitava Câmara Criminal, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 28/05/2014).

Ainda:

APELAÇÃO. DANO QUALIFICADO (ART. 163, INC. III DO CP) E CORRUPÇÃO DE MENORES (ART. 244-B DA LEI 8.069/1990). SENTENÇA CONDENATÓRIA.RECURSO DA DEFESA, VISANDO ABSOLVIÇÃO COM FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PARECER FAVORÁVEL DA PROCURADORIA DE JUSTIÇA. ACUSADO QUE ARRANCOU ESTACAS DE PROTEÇÃO DE ÁRVORES, AVALIADAS EM R$72,00. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO, MÍNIMA REPROVABILIDADE PENAL À CONDUTA E DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO EM CONCRETO. PROEMINÊNCIA AOS POSTULADOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DO CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL.RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (TJPR, Apelação Criminal n. 1054319-6, de Pato Branco. Acórdão n. 24505. Relator: Des. Joscelito Giovani Ce. 4ª Câmara Criminal. J. em 24/04/2014).

Por fim:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. DESCAMINHO. ART. 334 DO CP. CRÉDITO TRIBUTÁRIO INFERIOR A R$ 10.000,00. LIMITE MÍNIMO. EXECUÇÃO DE DÉBITOS FISCAIS. FAZENDA NACIONAL. ART. 20, LEI 10.522/02. REDAÇÃO DA LEI 11.033/04. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. MERCADORIA APREENDIDA DE VALOR INEXPRESSIVO.

1. Em face do advento de regramento que manifesta o desinteresse do erário com arrecadação de determinados valores (art. 20 da MP 2.095-76, de 13/06/01, convertida na Lei 10.522, de 19/07/02), cabível é o princípio da insignificância na esfera penal, mesmo em se tratando de crime de descaminho.

2. O Estado, vinculado pelo princípio da intervenção mínima em direito penal, somente deve ocupar-se das condutas que impliquem grave violação ao bem juridicamente tutelado (STF - HC 95749/PR).

3. A adequação material da tipicidade decorre da necessidade de se dar relevância ao caráter fragmentário do direito penal, afastando da incidência da ultima ratio situações que, por sua inexpressividade, não ofendam ou pouco ofendam os bens jurídicos tutelados pela norma penal.

4. O descaminho de mercadorias de procedência estrangeira, de valor inexpressivo, não deve ser punido por não ofender nenhum bem jurídico. É materialmente irrelevante a conduta de descaminho quando o valor do tributo não recolhido é inferior aos R$ 10.000,00 (dez mil reais) estabelecidos pela Lei11.033/04 para ajuizamento de execução fiscal de crédito tributário.

5. Apelação não provida (TRF1, Apelação Criminal 1092, dos autos n. 0001092-69.2006.4.01.3805, de Minas Gerais. Relator: Des. Federal Tourinho Neto. Terceira Turma. J. 25/03/2013.

O direito penal tem por objetivo fundamental proteger a sociedade dos atos do próprio Estado que agridem os interesses e valores relevantes da comunidade social. Essa proteção é orientada pelo princípio da intervenção mínima. 

Nesse sentido, compreende-se que, ainda que o princípio da intervenção mínima não esteja disposto expressamente na Constituição Federal, esse mandamento é imperativo e vigente dentro do ordenamento jurídico, sendo aplicável, de maneira concreta, na jurisprudência pátria.

Entende-se, portanto, que recusar sua interferência e agir de maneira diversa a sua diretriz, contraria a essência de um Estado Social e Democrático de Direito.

CONCLUSÃO

Os Direitos Fundamentais de uma pessoa dentro do ordenamento jurídico (ou até de caráter supranacional – Declaração Universal dos Direitos Humanos) para se tornar uma norma efetiva precisa ter aplicações e meios que garantem o seu real cumprimento, seja de forma individual ou coletiva. E aqui não me atenho apenas ao direito fundamental a liberdade, preconizado no direito penal, mas, sim, a todos os direitos fundamentais de sobrevivência e de valorização do ser humano, com reflexos no âmbito civilista, administrativista, tributarista ou em qualquer outra área de normatização.

O Estado para se tornar um verdadeiro Estado Democrático de Direito necessita possuir mecanismos que exprime as garantias desses direitos fundamentais a qualquer pessoa em seu território, seja seu nacional ou não. É indispensável que seja universal. Pois, uma vez ferido esse direito a um indivíduo, todos os outros também possuem sua violação de maneira reflexa. Assegurar, portanto, a aplicação e garantia dos direitos fundamentais é dar segurança, segurança da aplicação de uma norma positivada coerente a determinado caso.

Ressalto que os direito fundamentais que se tende garantir num Estado não são apenas aqueles restritos ao sistema de proteção do art. 5º da Constituição Federal. Os direitos fundamentais se confundem, inclusive, com a própria função do Estado – executiva, legislativa e judiciária.

Sei que muitos juristas refutam, por completo, a ideia do garantismo. Mas acho que é pensar como uma única fonte – o garantismo penal – e não como modelo de efetivação de todo o ordenamento jurídico e da real conotação do Estado Democrático de Direito, que garanta a todos os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Pelo menos, eu não consigo pensar em alguém que queira sua própria liberdade sendo violada pelo arbítrio do Estado (como a prisão injusta).

O garantismo é o resgate do compromisso ético com a democracia, cidadania e dignidade da pessoa.

Por outro lado, a teoria garantista (se é que se pode se chamar de teoria e não de exercício) não predispõe que todos os direitos deve ter uma garantia que o resguarde do arbítrio estatal. Esse modelo não é abolicionista, com a finalidade refutar a função jurisdicional, administrativa ou legislativa necessária para a manutenção e andamento de um Estado. Se um indivíduo capaz cometer um crime, ele deve ser punido.

O que se propõem, na verdade, é uma efetivação do sistema normativo, com regulações precisas e mecanismos coerentes de legitimação do Poder Público.

Assim, ao buscar a ideia primária de que o direito penal regulamenta apenas as condutas que geram verdadeiras reprovabilidades sociais, traz á tona a efetividade do sistema. E acredito que essa remodelação é possível por meio da aplicação incisiva do princípio da intervenção mínima.

Esse princípio afasta a incidência da penalização na tipificação de condutas que trazem apenas desconforto ou mero dissabor. Para isso o direito penal não serve, há outros ramos jurídicos que podem regular e dispor imputações (não criminais), mas de consequências eficientes, sem gerar a segregação social e a privação da liberdade.

O direito penal mínimo (ou princípio da intervenção mínima), acompanhado de uma cultura de efetivo reconhecimento do respeito às garantias individuais e da busca da efetividade dos princípios constitucionais democráticos, apresenta-se como pauta mínima de uma feição minimamente ética do sistema institucional de controle social. Sua implementação é levada a efeito, sobretudo, com processos de descriminalização, despenalização e desjudicialização de condutas que podem ser resolvidas em outras esferas do direito (como a civil e a administrativa). Não se busca, em nenhum momento, a absolvição ou a total negação do direito penal. O que se pretende é uma atenuação do atual sistema para que ele se torne eficaz.

O direito penal é essencial para uma sociedade, para a adequação da paz social. Mas ele só é importante se for eficaz e trazer a reeducação e ressocialização daquele que foi segregado. Se a penalização se tornar uma faculdade para o aprimoramento do crime, o direito não nos servirá de nada, já que a sociedade ficará cada vez mais refém da criminalização.

Acredito, portanto, que a efetividade, a confiança e o crédito do sistema penal serão ressurgidos, trazendo a segurança social, com a aplicação do princípio da intervenção mínina para a tipificação das condutas. Deixando, realmente, o direito penal ser um ramo subsidiário do ordenamento jurídico.

Aliás, como diz Zaffaroni, o direito penal não pode terminar num espetáculo para sádicos.

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS

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Dhuanne Sampaio Galvão

Servidora Pública do Ministério Público Estadual de Santa Catarina

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