Artigo Destaque dos editores

Artigo 299 do Código Eleitoral:

a corrupção eleitoral à luz do Tribunal Superior Eleitoral

Exibindo página 4 de 5
Leia nesta página:

4. Casuística

4.1. O posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral ante casos concretos

Estabelecidos os fundamentos do crime de corrupção eleitoral, esquadrinhado o tipo penal, diferenciando-o do ilícito cível-eleitoral da captação ilícita de sufrágio, e destacadas algumas das questões processuais pertinentes mais relevantes – em todos os casos, com referências à doutrina e à jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral –, o leitor certamente disporá de maiores subsídios para analisar criticamente as decisões emanadas da Corte Superior Eleitoral, proferidas exclusivamente a partir de casos concretos[40].

Como se verá, o domínio sobre o arcabouço teórico do artigo 299 do Código Eleitoral é de suma importância para sua aplicação, a qual ocorre, não raras vezes, em situações limítrofes, que exige, sobretudo do julgador, além de conhecimento técnico, sensibilidade para o deslinde de cada causa e suas peculiaridades.

A inventividade do ser humano faz com que a dinâmica da vida jamais seja alcançada em sua plenitude pela lei penal em sentido estrito. Essa situação não é diferente na seara penal-eleitoral, que, como visto anteriormente, sequer possui autonomia disciplinar. A corrupção, em especial, denota “crescente expansão, tomando aspectos cada vez mais engenhosos, prejudicando, em larga escala, a austeridade do processo eleitoral” (RIBEIRO, 1998, p. 634).

Contudo, assim como no Direito Penal comum, ainda que o legislador não tenha a capacidade de positivar todas as relações do mundo fenomênico, o julgador, ao deparar-se diante de um caso concreto, tem o dever de resolver a lide, a partir do ordenamento jurídico como um todo e da interpretação que a ele se conferirá.

Esse exercício, no entanto, não se dá sem esforço, o que pode ser notado a partir da análise de casos concretos, como os a seguir descritos.

Esclareço, por fim, que não é a pretensão deste trabalho – e nem poderia sê-lo – assentar a correção ou a incorreção das decisões do Tribunal Superior Eleitoral (embora por vezes analisadas criticamente), senão, como afirmado alhures, buscar pontos de convergência entre julgados aparentemente contraditórios e, na medida do possível, traçar balizas sobre as diversas matizes conferidas pela prática. O objetivo, pois, coincide com a procura de parâmetros minimamente precisos, sob o pálio da segurança jurídica em matéria penal-eleitoral.

4.1.1. Bingo: distribuição de brindes

No afã de angariar apoio político, os postulantes ao exercício de mandato eletivo empenham-se sobremaneira. Todavia, muitas vezes, lançam mão de artifícios que geram dúvidas até mesmo para o julgador.

Uma dessas hipóteses remete à realização de bingos, com distribuição de brindes e pedidos de voto ou apoio político.

Ao apreciar casos semelhantes, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu de modo diametralmente oposto.

No julgamento do REspe nº 4454-80, o Colegiado concluiu, à unanimidade, que a realização de bingos, com distribuição gratuita de cartelas e cujos vencedores foram contemplados com bicicletas, televisores e aparelhos de “DVD”, caracterizou o crime de corrupção eleitoral, haja vista que o candidato fomentador dos eventos neles discursou, com referência direta à candidatura e com pedido de voto[41].

Por outro lado, o mesmo Tribunal, ao apreciar o AgR-REspe nº 4453-95, consignou, por maioria, que a promoção de bingos, “com a distribuição de brindes e pedido de apoio político aos presentes, apesar de não ser conduta legalmente autorizada, não se adéqua ao tipo do art. 299 do Código Eleitoral.”[42]

Curiosamente, neste caso, os fatos ensejadores dos recursos especiais eleitorais foram os mesmos. As conclusões diametralmente opostas, no entanto, resultaram de dois fatores: a composição do Tribunal (apenas dois dos sete Ministros participaram de ambos os julgamentos) e a análise da prova.

Sobre esse segundo aspecto, destaca-se que, no primeiro julgado, o Tribunal assentou, com esteio nos fatos e provas descritos no acórdão regional, que houve a distribuição de brindes com o fim específico de obter votos – inclusive com referência à candidatura e o pedido respectivo. Ademais, a Corte firmou o entendimento de que, sendo o crime formal, a aferição da capacidade eleitoral ativa do destinatário da ação criminosa seria irrelevante. Logo, seria desnecessária a identificação do eleitor a que se pretendeu corromper.

Lado outro, extrai-se da fundamentação do voto condutor do segundo precedente que “não houve a descrição na denúncia do oferecimento, da doação, solicitação ou do recebimento de dinheiro ou de vantagem a determinado eleitor, para obter ou dar voto”. Além disso, assinalou-se que sequer teria havido a identificação dos eleitores corrompidos.

Assim, a par das diferentes composições nos dois julgamentos e de resultados a princípio absolutamente contrários, é possível identificar uma premissa comum, qual seja, a distribuição de benesses com o fim de obter votos subsume-se ao artigo 299 do Código Eleitoral.

Tal conclusão decorre do fato de um dos motivos que levou o Tribunal Superior Eleitoral a manter a condenação do primeiro réu foi justamente a análise soberana da instância ordinária que confirmou a entrega de bens em troca de voto, fatos que não teriam sido descritos na denúncia da segunda ação. Contrario sensu, se o fossem, a conduta se amoldaria ao tipo penal.

Não se olvida, no entanto, que os julgados divergiram acerca de questão essencial para a solução da contenda, a saber, a necessidade de identicação do eleitor supostamente corrompível.

Frisa-se, pois, que a análise verticalizada de duas decisões com desfechos contrários pode indicar a existência de pontos comuns.

4.1.2. Candidatura frustrada

No tópico 2.1.6.1 vimos que, na corrupção eleitoral ativa, o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa; na passiva, ao menos para a doutrina dominante, apenas o eleitor.

Apesar disso, em ambos os casos, a doutrina inclina-se a afirmar a necessidade da existência de uma candidatura a ser beneficiada pela conduta criminosa, sem a qual não há crime, na medida em que o bem jurídico tutelado não seria atingido (GOMES, 2008, p. 248). Existe, inclusive, precedente do Tribunal Superior Eleitoral a respeito, datado de 1990. Confira-se a respectiva ementa:

“REPRESENTACAO CONTRA FUTURO CANDIDATO A PRESIDENCIA DA REPUBLICA PELO PARTIDO MUNICIPALISTA BRASILEIRO - PMB.

CRIME ELEITORAL (CE, ART. 299). CASO EM QUE NAO SE VERIFICA: O REQUERIDO SEQUER VEIO A SER CANDIDATO.

ARQUIVAMENTO.”[43]

A discussão, entretanto, não se encerra neste ponto. Há que se determinar o exato momento a partir do qual o chamado pré-candidato torna-se candidato de fato, para o este fim específico.

Para Joel J. Cândido (2006, p. 183), a condição de candidato, “para este fim, dá-se com o encerramento da ata da convenção que o escolheu para concorrer, e não com o pedido de registro de sua candidatura. E, muito menos, com o eventual deferimento desse pedido”. No mesmo sentido, Antônio Carlos da Ponte (2008, p. 104).

Lado outro, José Jairo Gomes (2012, p. 240-241) – embora verse sobre a questão em contexto extrapenal – entende que o postulante a concorrera mandato eletivo torna-se candidato somente com a efetivação de seu registro de candidatura, ainda que vulgarmente seja tratado como candidato bem antes disso. Vale a transcrição:

“A qualidade de ‘candidato’ só é alcançada com a efetivação do registro, o que ocorre com o ‘trânsito em julgado’ ( = preclusão) da decisão que defere o respectivo pedido. Nesse diapasão, Soares da Costa (2006, p. 403) salienta que a ‘candidatura e a condição de candidato são efeitos jurídicos do registro, operados em virtude de sentença constitutiva prolatada no processo de pedido de registro de candidatos’.

Desde a indicação na convenção partidária até a efetivação da candidatura, o cidadão goza do status de pré-candidato, encontrando-se investido em uma situação que lhe assegura o gozo de alguns direitos. Entre outros, tem o direito de ver requerido seu registro pelo partido perante a Justiça Eleitoral, pena de fazê-lo ele próprio, conforme lhe autoriza o § 4o do artigo 10 da LE; é que sua candidatura não poderá ser retirada sem motivo e sem sua anuência (TSE – AC. no 12.774, de 25-9-1992 – juristse 7:73). Note-se, porém, que na linguagem comum já é tratado como ‘candidato’.”

Ocorre que a aludida contradição é apenas aparente, porquanto independentemente da denominação que se dê àquele que pretende concorrer a mandato eletivo, este já faz as vezes de candidato a partir do momento em que é escolhido por seu partido político, o qual detém o monopólio do lançamento de candidaturas – artigo 14, § 3o, V, da Constituição Federal.

Entendimento contrário levaria à intepretação que beira ao absurdo, qual seja, a inexistência do crime praticado por candidato que venha a ter seu registro de candidatura indeferido, com trânsito em julgado, somente após às eleições – fato, inclusive, corriqueiro.

Ademais, reitere-se que o arrazoado articulado por José Jairo Gomes não se dá no âmbito penal eleitoral. A despeito disso, seu registro é necessário para que eventuais dúvidas acerca do momento a partir do qual o filiado passa a ser candidato não interfiram na configuração do crime de corrupção eleitoral.

Assim, conclui-se que o crime de corrupção eleitoral somente ocorrerá se houver um candidato – entendido como aquele indicado na ata da convenção partidária – a cuja candidatura procura-se beneficiar. Em outras palavras, aquele que eventualmente tenha praticado a descrição típica do artigo 299 do Código Eleitoral antes da convenção partidária não terá incorrido em crime na hipótese de seu nome não ter sido escolhido nessa convenção, frustrando seu intento de se lançar como candidato a mandato eletivo, pois não houve ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma.

4.1.3. Compra de apoio político

Dúvida não há sobre a configuração da corrupção eleitoral diante do oferecimento de uma vantagem monetária em condicionamento ao voto ou abstenção. Desse modo, se diante da compra de um único voto perfaz-se o ilícito, o que dizer da negociação havida de modo difuso?

Trata-se da compra de apoio político, existente há tempos e cada vez mais comum. Marcelo Ribeiro de Oliveira (2012, p. 509) tratou da questão tendo como ponto de partida os seguintes exemplos: em uma disputa eleitoral, certo candidato renuncia em favor de outro, que, em contrapartida, oferece-lhe determinadas vantagens; ou ainda, determinada pessoa vende seu apoio a um candidato, com a promessa de que este nomear-lhe-á para um cargo público, se eleito.

As situações fáticas descritas, ambas, amoldam-se perfeitamente ao tipo penal em apreço, tal como decidiu o Tribunal Superior Eleitoral em mais de uma ocasião.

Certa feita, mais precisamente no julgamento do REspe nº 28.396, concluiu que caracterizou corrupção eleitoral a promessa de manter pessoas em seus cargos na Prefeitura Municipal se estas votassem em determinado candidato, dando-lhe, ainda apoio político eleitoral[44].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Já no exame do RCED nº 671, julgado de grande repercussão (que levou à cassação do mandato de Jackson Lago, então Governador do Maranhão), o Tribunal assentou que o oferecimento de cargo no governo também se subsumia ao crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral[45].

Contudo, em decisão mais recente prolatada no HC nº 31-60, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu de maneira completamente oposta. Confira-se:

HABEAS CORPUS. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. ATIPICIDADE. CONCESSÃO.

 1. O tipo penal previsto no art. 299 do Código Eleitoral, o qual visa resguardar a vontade do eleitor, não abarca eventuais negociatas entre candidatos, visando à obtenção de renúncia à candidatura e apoio político, em que pese o caráter reprovável da conduta.

 2. Ordem concedida.”[46]

Logo, não se pode afirmar que a questão encontra-se pacificada no âmbito do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral.

4.1.4. Concurso formal imperfeito

O concurso formal imperfeito, também denominado impróprio, é a modalidade de concurso formal caracterizada pela existência de desígnios autônomos dos quais derivam os crimes concorrentes (MASSON, 2013, p. 746). Ou seja, há concurso formal imperfeito ou impróprio quando o agente, mediante uma só ação, almeja mais de um resultado (ou aceita o risco de sua produção). Nesse caso, aplicam-se as penas cumulativamente, nos termos do artigo 70, caput, parte final, do Código Penal, que assim dispõe:

“Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.” (Grifos acrescidos).

Assim, no caso de determinada pessoa ofertar, mediante ação única, a mais de um eleitor, alguma vantagem em troca de votos, configura-se a hipótese de concurso formal imperfeito, razão pela qual as penas serão aplicadas cumulativamente.

Este é o posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral, conforme se extrai do julgamento do REspe nº 12266-97[47], cujo substrato fático indica que a ré ofereceu vantagens financeiras condicionadas à obtenção de votos de duas eleitorais por meio de uma única conduta.

Contudo, cumpre salientar a  existência de voto divergente naquela assentada, sob o fundamento de se tratar de concurso formal perfeito, haja vista que a conduta teria ferido apenas o mesmo bem jurídico, alertando, ainda, para o fato de que, na hipótese de a oferta atingir vários eleitores, a penalidade seria aplicada de forma “indefinida”.

4.1.5. Incomunicabilidade entre as instâncias cível e penal

Como referido no tópico 2.2, uma mesma conduta ilícita pode ser avaliada sob diversas óticas de responsabilização, o que, notadamente, ocorre com a vulgarmente chamada “compra de votos”, cuja prática pode implicar, de forma concomitante, captação ilícita de sufrágio (artigo 41-A da Lei no 9.504/1997) e corrupção eleitoral (artigo 299 do Código Eleitoral).

A prática forense demonstra ser bastante comum a tese defensiva segundo a qual a improcedência da ação que visa apurar a captação ilícita de sufrágio obsta a instauração ou o prosseguimento da ação penal destinada ao exame dos mesmos fatos.

Contudo, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral vem rejeitando tal alegação há, pelo menos, uma década, com fundamento da independência ou na incomunicabilidade entre as instâncias cível e penal.

A respeito, menciono três excertos de ementas que bem ilustram esse posicionamento:

RECURSO ESPECIAL. CRIME CAPITULADO NO ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. DENÚNCIA CIRCUNSTANCIADA. AFERIÇÃO DE MATERIALIDADE E AUTORIA. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. ESFERAS CÍVEL E PENAL. INDEPENDÊNCIA.

(...)

5.   Independência das esferas cível e penal quanto à denúncia que apura os mesmos fatos objeto de ação de investigação judicial eleitoral, julgada improcedente. (...).”[48]

“HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS ESFERAS CÍVEL-ELEITORAL E A PENAL. ORDEM DENEGADA.

(...)

3. A eventual improcedência do pedido da ação de investigação judicial eleitoral não obsta a propositura da ação penal, ainda que os fatos sejam os mesmos, tendo em vista a independência entre as esferas cível-eleitoral e a penal. Precedentes.

4. Ordem denegada.”[49]

“ELEIÇÕES 2004. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. COMPRA DE VOTOS. CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 71 DO CÓDIGO PENAL). OCORRÊNCIA. CRITÉRIO TRIFÁSICO (ART. 68, CP). INOBSERVÂNCIA. MULTA. ART. 72 DO CÓDIGO PENAL. NÃO INCIDÊNCIA.

1. São independentes as esferas cível-eleitoral e a penal, de sorte que eventual improcedência do pedido, na primeira, não obsta o prosseguimento ou a instauração da ação penal para apurar o mesmo fato. Precedentes. (...).”[50]

4.1.6. Oferta de vales-combustível

Uma das formas mais corriqueiras de promover candidaturas é a distribuição de vales-combustível.

Em situações como essa, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral demonstra que a análise dos fatos pode levar a conclusões diversas, a depender da finalidade da conduta. Por conseguinte, no campo judicial, as provas adquirem maior importância em casos como os a seguir descritos.

No julgamento do REspe nº 2-91, por exemplo, o Colegiado, por maioria, absolveu o réu por entender que a denúncia, tal como formulada, carecia da indicação do elemento subjetivo do tipo (ou do injusto; ou, ainda, segundo o acórdão, do “dolo específico”), qual seja, “para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção”[51].

Nesse caso, o Tribunal consignou que a concessão de vales-combustível a eleitores fora condicionada à fixação de adesivo de campanha eleitoral em veículos, e não à obtenção do voto. Colhe-se, ainda, do acórdão que a vantagem ofertada deve estar vinculada “a uma promessa concreta de voto ou abstenção”, o que não se confunde com o aparelhamento da propaganda eleitoral.

Esse mesmo entendimento foi sufragado no RHC nº 1423-54, porquanto ausente o elemento subjetivo do tipo na peça inaugural[52].

Assim, contrario sensu, uma vez que o abastecimento gratuito de veículos de eleitores estiver condicionado ao voto ou à abstenção, configurado estará o tipo penal.

A corroborar essa tese, merece referência o AgR-REspe nº 35.933, em cujo julgamento – no qual, nada obstante a conduta tenha sido examinada exclusivamente sob a ótica do artigo 41-A da Lei nº 9.504/1997 –, ficou decidido que a distribuição de combustível “atrelada a pedido de votos”, configura ilícito eleitoral[53].

4.1.7. Pedido implícito de votos

Como amplamente demonstrado neste trabalho, a corrupção eleitoral ativa não prescinde do elemento subjetivo do tipo (“para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção”).

É sabido, no entanto, que nem sempre – ou na maioria das vezes – esse pedido de voto ou abstenção é explícito. E nem há de ser, por ausência de previsão legal. Comprovada a existência de alguma oferta ao eleitor condicionada ao voto ou à abstenção a partir das circunstâncias fáticas (SILVA, 2012, p. 158), desnecessário o pedido expresso de voto (TENÓRIO, 2014, p. 364).

Para jurisprudência penal eleitoral não é diferente. Em diversas oportunidades o Tribunal Superior Eleitoral pontificou que a “verificação do dolo específico em cada caso é feita de forma indireta, por meio da análise das circunstâncias de fato, tais como a conduta do agente, a forma de execução do delito e o meio empregado”[54].

Por outro lado, importante salientar que este é o posicionamento atual do Tribunal, que, outrora, já decidira que o “pedido de obtenção de voto efetuado de forma genérica, ou meramente implícito, não se enquadra na ação descrita no artigo 299 do Código Eleitoral”[55].

Contudo, julgados mais recentes sufragam a primeira tese, como o ocorrido ED-REspe nº 582-45, no qual a Corte Superior Eleitoral consignou que o “pedido expresso de voto não é exigência para a configuração do delito previsto no art. 299 do Código Eleitoral, mas sim a comprovação da finalidade de obter ou dar voto ou prometer abstenção”[56].

Em tempo, esclarece-se que, no último julgado citado, os fatos que levaram a Justiça Eleitoral a proferir decisão condenatória pela prática criminosa consubstanciaram-se na visita de candidato a determinada eleitora, durante a qual teria lhe dito que, “caso ganhasse as eleições, a ajudaria a terminar o reboco da sua casa”, ofertando-lhe, ainda, um saco de cimento. Evidente, pois, a presença do elemento subjetivo do tipo, ainda que inexistente o pedido expresso de voto.

4.1.8. Princípio da insignificância

O princípio da insignificância está intimamente ligado à natureza fragmentária do Direito Penal e a intervenção mínima do Estado, porquanto ele, Direito Penal, só deve ser atuar diante da necessidade de proteção ao bem jurídico. Com isso, exclui-se a incidência do Direito Penal sobre condutas irrelevantes em determinado contexto, afastando-se, assim, a tipicidade material.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, a adoção de tal princípio está condicionada à mínima ofensividade da conduta do agente, à nenhuma periculosidade social da ação, ao reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e à inexpressividade da lesão jurídica provocada[57].

Merece destaque, ainda, a advertência de Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 79) no sentido de que

“(...) a análise de tal princípio requer comedimento e responsabilidade, posto que compete ao Poder Legislativo a eleição dos bens jurídicos passíveis de proteção, não podendo o intérprete, de maneira aleatória e indiscriminada, simplesmente ignorar condutas lesivas. A proposta do princípio da insignificância não é ignorar a ação legislativa, mas avaliar a extensão do dano efetivo e concluir pela necessidade ou não de punição.”

Por se tratar de um postulado de Direito Penal, não há, a princípio, óbice para que incida sobre os crimes eleitorais, notadamente aqueles de menor potencial ofensivo, desde que sejam observados os requisitos para sua aplicação, conforme destacado no julgamento citado.

Contudo, especificamente quanto ao ao crime tipificado no artigo 299 do Código Eleitoral, o órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, na apreciação do AgR-AI nº 10.672, refutou a tese da aplicabilidade do princípio da insignificância.

Consta no voto condutor do acórdão que o bem tutelado pela norma penal eleitoral – o livre exercício do voto e a lisura do processo respectivo – não é ínfimo. Ademais, o grau de reprovabilidade do comportamento do agente não poderia ser considerado reduzido. Na espécie, a conduta tida por ilícita correspondeu à distribuição de cestas básicas à comunidade carente de determinado município, em troca de votos[58].

Esse entendimento não destoa da doutrina majoritária, a qual rejeita a aplicação do referido princípio em casos como os aqui estudados. Esta, por exemplo, a lição de Tito Costa (2002, p. 59):

“O art. 299 não qualifica a vantagem, dádiva ou doação pecuniária para efeito de configuração do crime. Pouco importa a expressão econômica da oferta ou dação, como, igualmente, a natureza da vantagem pessoal. A ratio da previsão repressiva assenta-se no potencial de captação volitiva que a oferta pode provocar no eleitor, produzindo a indução a votar no ofertante ou doador, ou quem este indica.”

Frise-se que, ao contrário do que possa aparentar, a discussão sobre a insignificância na corrupção eleitoral não reside no valor ou expressão da vantagem oferecida ou aceita, que se mostra absolutamente irrelevante na espécie, porquanto a “compra” ou a “venda” de um único voto ofende o bem jurídico tutelado pela norma penal eleitoral, independentemente de seu “preço”.

Assim, nada obstante a inexistência de precedentes em profusão no âmbito da mais alta Corte eleitoral, pode-se afirmar que a tendência do Tribunal é pela inaplicabilidade do princípio da insignificância em relação ao crime do artigo 299 do Código Eleitoral.

4.1.9. Promessas genéricas

É assente na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral que promessas genéricas de campanha não configuram o crime de corrupção eleitoral. De acordo com o iterativo entendimento da Corte Superior Eleitoral, é “indispensável que a promessa de vantagem esteja vinculada à obtenção do voto de determinados eleitores”[59], conforme decidido, ilustrativamente, no AgR-AI nº 586-48.

No caso do precedente citado, a promessa em questão cuidou-se do comprometimento, por parte do candidato, de conferir isenção do pagamento de passes de ônibus, “vantagem esta que foi entregue no período entre 6 a 13 de outubro de 2008”. No entender do Colegiado, esse fato constituiu “mera divulgação de programa de governo, sem caráter pessoal, que pretendia o candidato desenvolver caso fosse eleito”, tratando-se, portanto, “de promessa genérica, tal como o calçamento de uma rua ou a construção de uma escola”.

O posicionamento predominante da doutrina converge com o esposado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Como exemplo, cito excerto da obra de Suzana de Camargo Gomes (2008, p. 244/245):

“(...) precisa o benefício ser concreto, individualizado, direcionado a uma ou mais pessoas determinadas, não configurando o delito promessas genéricas de campanha, ocorrida em comícios ou mesmo através de televisão, quando não resulta evidenciado nem mesmo o compromisso da entrega da vantagem tendo como contraprestação o voto ou a abstenção.

O caráter negocial é indispensável para a caracterização do delito, ou seja, a vantagem, a promessa, o benefício deve visar à obtenção do voto.”

Todavia, cumpre ressaltar que, sendo a promessa articulada perante um grupo determinado de eleitores, existe o crime de corrupção eleitoral, desde que presente o elemento subjetivo do injusto, a saber, o referido caráter negocial.

É dizer, não é o fato de a promessa ser feita a diversos eleitores que descaracteriza o crime em comento, senão a ausência do elemento subjetivo do injusto. Em outras palavras, se a promessa é feita no intuito de obter voto ou a abstenção de um conjunto de pessoas identificáveis, realiza-se o tipo. Ao contrário, se o compromisso é formalizado de modo a beneficiar genericamente a coletividade, não haveria crime.

No entanto, há situações que podem ser consideradas limítrofes, cuja solução dependerá das circunstâncias fáticas, não se podendo antever uma regra objetiva e universal para tanto.

Seria o caso da promessa, hipoteticamente realizada em comício, de asfaltamento de determinada via em uma eventual comunidade rural composta de apenas uma família. A princípio, não haveria falar em corrupção eleitoral, porquanto a obra prometida estaria a beneficiar indiretamente o eleitorado como um todo – e não apenas aqueles que residem na localidade. No entanto, a depender do contexto em que se deu essa promissão – por exemplo, na casa da própria família a portas fechadas –, cogitar-se-ia da ocorrência do delito eleitoral.

Aliás, o Tribunal Superior Eleitoral já considerou que o pedido de votos atrelado ao comprometimento de pavimentar determinadas ruas de certo município consubstanciou o crime de corrupção eleitoral, haja vista ter sido formulado perante um grupo de pessoas determináveis. Transcrevo ementa do julgado:

“Recurso especial. Agravo regimental. Art. 299 do Código Eleitoral. Corrupção eleitoral. Promessa de realização de obras. Pedido de votos. Caráter não genérico. Grupo de pessoas determinadas e/ou determináveis. Reuniões. Abordagem direta. Conduta típica. Condenação. (...).” [60]

Naquele caso, comprovou-se o candidato promoveu reuniões com líderes comunitários e determinados moradores de bairros carentes do Município de Vila Velha e prometeu a realização de melhorias nos bairros, em troca de votos. Assim, como a promessa fora feita a pessoas determinadas ou determináveis, a Corte concluiu pela subsunção dos fatos ao tipo penal.

A despeito disso, essa decisão, respeitados seus substanciosos fundamentos, aparenta destoar da jurisprudência majoritária do próprio Tribunal. Ao que parece, cuida-se de promessa genérica, tanto que consta do próprio corpo do voto condutor do acórdão que houve a distribuição de panfletos de uma associação de moradores convocando interessados para participar desses encontros. Ou seja, as reuniões eram abertas a toda população, nas quais foi firmado o compromisso de melhorias que beneficiavam toda a municipalidade, o que, ao menos a priori, não configura infração, mas mero proselitismo político (PONTE, 2008, p. 104).

De todo modo, até mesmo pelos debates que pode suscitar, o registro desse julgamento mostra-se importante.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Pedro Luiz Barros Palma da Rosa

Bacharel em Direito pela UFMG. Especialista em Direito Eleitoral pelo Centro Universitário UNI-BH e em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio. Analista Judiciário do TRE-MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Pedro Luiz Barros Palma. Artigo 299 do Código Eleitoral:: a corrupção eleitoral à luz do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4765, 18 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50355. Acesso em: 10 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos