A aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial

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04/07/2016 às 23:06
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A autoridade policial, como operador do direito, pode filtrar condutas penalmente irrelevantes para o direito penal com fulcro no princípio da insignificância, o qual exclui a tipicidade material.

1. Considerações iniciais

É pacífico a aplicação do princípio da insignificância pelos tribunais. O debate se torna relevante, o que é o cerne desta pesquisa, quando a autoridade policial aplica o princípio da insignificância, ex oficio, na fase pré-processual. A aplicação do referido princípio, se daria com fundamento de que a autoridade policial, como operador do direito, pode filtrar condutas penalmente irrelevantes para o direito penal, com base, inicialmente, em princípios de política criminal (exclusiva proteção de bens jurídicos, intervenção mínima, da proporcionalidade, falta de lesividade ou ofensividade ao bem jurídico tutelado na norma penal, etc.).[1]

 Com efeito, o princípio da insignificância exerce função hermenêutica para afastar do âmbito do direito penal a conduta tipicamente formal. O referido princípio está intimamente relacionado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito e, desse modo, “se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo”. (GAMA e GOMES, p.136).

 As palavras do delegado de polícia Roger Spode Brutti esclarecem o tema:

As autoridades policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso. (BRUTTI, 2006).

Assim, é da essencial da atividade da autoridade policial, na análise do caso concreto, verificar a tipicidade. Porém, não pode o Delegado se limitar a aplicar letra fria da lei e fazer a subsunção ao caso concreto. É preciso verificar o grau de lesividade e ofensividade ao bem jurídico, com base em decisões dos tribunais superiores para fundamenta a decisão e retirar da esfera penal condutas atípicas materialmente.  


2. Delegado de polícia: relaxamento da prisão em flagrante

O art. 5º, LXV, da CF reza que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Verifica-se que se atribuiu ao Juiz de Direito, pela literalidade do texto constitucional relaxar a prisão qualquer ilegal. Entretanto, surgiu na doutrina hipótese denominada relaxamento da prisão em flagrante delito pela Autoridade de Polícia Judiciária.

A doutrina não é uniforme quanto à natureza jurídica da prisão em flagrante, pois para uns seria ato administrativo, outros seria medida acautelatória e outro a considera ato complexo com duas fases, sendo a primeira a prisão captura, de ordem administrativa e a segunda de natureza processual, quando homologada pelo juiz. (SILVA JÚNIOR, p. 879-881)

Se filando a doutrina de Fernando Tourinho, a prisão em flagrante é composta por três fases distintas: prisão captura e consequente condução coercitiva, lavratura do auto de prisão em flagrante e recolhimento ao sistema prisional.

 Assim, quando o Delegado de Polícia, no exercício das atribuições de polícia judiciária, após a receber uma ocorrência policial, se convencer que o fato é atípico ou a situação não é flagrancial, coloca em liberdade o conduzido. Neste caso, há o relaxamento da prisão em flagrante.

Assim escrevem Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2010, p. 475-476) sobre o tema relaxamento de prisão pela autoridade policial:

Ao final, convencida a autoridade que a infração ocorreu, que o conduzido concorreu para o fato e que se trata de hipótese legal de flagrante delito, determinará ao escrivão que lavre e encerre o auto de flagrante. A toda evidência, não assiste razão para a autoridade determinar a lavratura do auto se não houver lastro legal para tanto, devendo até mesmo apurar a responsabilidade do condutor, se houver algum excesso. Assim, é factível que a autoridade policial relaxe a prisão, liberando o conduzido e deixando de proceder à lavratura do auto. Entendemos que o § 1º do art. 304 deve ser interpretado à luz do caput, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 11.113/2005. A lavratura do auto é o termo final, ocorrida após a oitiva dos envolvidos. Não estando convencida a autoridade de que o fato apresentado autorizaria o flagrante, deixará de autuar o conduzido, isto é, não lavrará o auto, relaxando a prisão, que já existe desde a captura, e por isso, não mandará recolher o indivíduo ao xadrez (§ 1º), pois a liberdade é de rigor. (grifo nosso).

Dessa forma, se o fato narrado não constituir crime (atipicidade material) ou ausentes o estado flagrancial, previsto no art. 302, do Código de Processo Penal, o Delegado de Polícia não ratifica a voz de prisão em flagrante delito. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. 


3. Relaxamento da prisão em flagrante pela atipicidade material da conduta

 A doutrina majoritária assevera que o princípio da insignificância, como já dito, na seara penal, afasta a tipicidade material do fato, o que retira a conduta do âmbito de proteção do Direito Penal.

No caso concreto, o Delegado de Polícia, ao se deparando com uma infração bagatelar própria, aplicará o princípio da insignificância.[2] Neste contexto, não irá ratificar a voz de prisão dada pelo agente de polícia, por ausência de tipicidade material, tampouco instaurará o inquérito policial para apurar o fato, uma vez que não há justa causa para a instauração da ação penal.

Neste sentido são basilares as palavras da doutrina de Fernando Capez:

Antes da lavratura do auto, a autoridade policial deve entrevistar as partes (condutor, testemunhas e conduzidos) e, em seguida, de acordo com a sua discricionária convicção, ratificar ou não a voz de prisão do condutor. Não se trata, no caso, de relaxamento da prisão em flagrante, uma vez que, sem a ratificação, o sujeito encontra apenas detido, aguardando a formalização por meio da ordem de prisão em flagrante determinada pela autoridade policial. O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causa de exclusão da antijuricidade (...). (CAPEZ, 2008, p. 262) (Grifos nossos).

O fundamento legal para o delegado de polícia aplicar, de ofício, o princípio da insignificância, diante de ausência de tipicidade material de um fato “supostamente” criminoso se respalda no artigo 304, §1º, do Código de Processo Penal por interpretação a contrário sensu do dispositivo.[3]

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. 

§ 1o  Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja. (Grifo nosso).

 Não resultando fundadas suspeitas de que o conduzido cometeu crime (juízo de valor negativo) não deve a autoridade policial proceder à ratificação da voz de prisão em flagrante, deixando de encarcerar o conduzido. Neste caso, o conduzido seria colocado em liberdade, porque não haveria cometido crime (por ausência de tipicidade material).

O julgado a seguir deixa claro que o delegado de polícia tem discricionariedade, dentro da legalidade, de analisar o caso concreto para fazer ou não o auto de prisão em flagrante.

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face dosistema processual vigente, o delegado de polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (TACRIM, HC 215.540-1 - 4a C. - rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351).


4. O princípio da insignificância como elemento da falta de justa causa para a persecução penal

Cabe de início ressaltar, que neste ponto, iremos se restringir apenas em discutir o elemento justa causa, sem adentrar nas outras condições da ação penal.

A falta de justa causa é invoca, via habeas corpus, para trancamento da ação penal ou do inquérito policial, quando o fato imputado ao suposto infrator não constitui crime (fato atípico), quando o crime está prescrito ou quando o sujeito atuou sob uma causa excludente de antijuridicidade. Assim, a aplicação do princípio da insignificância, como causa de descaracterização da tipicidade material, leva à ausência de justa causa para a ação penal.

Este é posicionamento dos tribunais quando enfrentam o tema:

INQUÉRITO POLICIAL - Justa causa - Apreciação em "habeas corpus" visando ao seu trancamento - Medida excepcional somente cabível e admissível quando verificada desde logo a clamorosa atipicidade do fato investigado ou a evidente impossibilidade de o indiciado ser seu autor (TJSP) RT 649/267.

Para corroborar que a falta de justa é medida para a não instauração de inquérito policial, o Superior Tribunal de Justiça, assim decidiu:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. CRIME DE SONEGAÇÃO DE AUTOS JUDICIAIS. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA.

O trancamento de ação penal pela via estreita do habeas corpus é medida de exceção, só admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca e sem a necessidade de valoração probatória, a inexistência de autoria por parte do indiciado ou a atipicidade da conduta. Processo: HC 39231-CE 2004/0154784-5, Relatora :Ministra LAURITA  VAZ;Julgamento:28/02/2005; Órgão Julgador:T5 - QUINTA TURMA;Publicação:DJ 28.03.2005 p. 300. (Grifo nosso)

Como já dito, o princípio da insignificância é analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, fins de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal. Neste contexto, para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica causada.

Assim, quando o delegado de polícia, no exercício das funções, verificar a insignificância jurídica da conduta, pois não colocou e risco o bem jurídico protegido pela norma penal, que em tese, se amolda em uma figura típica formal, impõe-se que não se seja ratificada a voz de prisão ou se instaure o inquérito policial por falta de justa causa.

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Portanto, a falta de justa causa atua para que seja desnecessário movimentar a maquina do estado repressor, quando já de plano se verifica que o fato é atípico. 


5. A autoridade policial atuando no caso concreto para aplicar o princípio da insignificância

Neste momento, cabe destacar que a autoridade policial, ao aplicar o princípio da insignificância no caso concreto, não está usurpando as funções do magistrado ou Ministério Público. De fato, juízo de valor sobre a necessidade de denúncia ou arquivamento, cabe membro do parquet. Entretanto, o delegado de polícia é o primeiro operador do direito, a lidar com o fato possivelmente criminoso. Ele realiza uma análise mais aprofundada da necessidade de encarceramento em situações de infração bagatelar própria, sem que isto naturalmente saia ao controle jurisdicional e ao controle externo do Ministério Público.

Neste momento, ressaltamos que não se está discutindo se a autoridade policial pode arquivar autos de inquérito policial de ofício. Somente o Ministério Público, titular da ação Penal, órgão para o qual se destina o caderno inquisitorial, pode pedir o seu arquivamento, dando por encerrados as possibilidades de investigações, até o surgimento de novas provas. Após o requerimento do parquet, cabe ao magistrado decidir pelo arquivamento do inquérito policial.

O Código de Processo Penal veda expressamente, bem com a jurisprudência dos tribunais o arquivamento de inquérito policial de ofício, pela autoridade policial: “Art. 17.  A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”.

É pacifico na doutrina a jurisprudência que a autoridade policial não deve realizar qualquer juízo de valor sobre a antijuridicidade e a culpabilidade. Ainda há parte da doutrina que perfilha do entendimento que a autoridade policial cabe apenas a analise da tipicidade formal. Neste sentido Paulo Rangel (2010, p. 90-91):

O inquérito policial tem um único escopo: apuração dos fatos objeto de investigação (cf. art. 4º, in fine, do CPP). Não cabe à autoridade policial emitir nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como, por exemplo, que o indiciado agiu em legítima defesa ou movido por violenta emoção ao cometer o homicídio. A autoridade policial não pode (e não deve) se imiscuir nas funções do Ministério Público, muito menos do juiz, pois sua função, no exercício das suas atribuições é meramente investigatória. (grifo nosso).

Respeitamos a opinião do ilustre doutrinador, todavia é preciso verificar que a aplicação do Direito Penal e Processual Penal pela autoridade policial, a qual possui a formação jurídica, não pode ser meros expectadores da evolução do Direito Penal.

De fato, o Ministro do STF Gilmar Mendes deixa claro que autoridade policial pode retirar do âmbito penal condutas tipicamente formal. Segundo ele, “não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta”. (grifo nosso).

O Direito Penal brasileiro, no contexto da Constituição Federal de 1988, emerge sob uma nova ótica que se traduz principalmente na sua função garantidora. Assim temos a autoridade policial não como instrumento político de perseguição que estigmatizou a carreira pelo longo período da ditadura militar. O delegado de polícia está diante de uma nova ordem jurídica e deve atuar como um garantidor dos direitos humanos e na legalidade buscando a máxima eficácia da norma.

Opor-se contra a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, em casos específicos e de clara hipótese de infração bagatelar própria, é impor a violação de uma série de princípios jurídicos que se originam na própria dignidade da pessoa humana.

Destacamos o posicionamento do ministro do STF Gilmar Mendes que ressaltou: “quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade, não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz sejam provocados’’.

Vejamos, se trata de real incidência de atipicidade material (furto de um bombom), que consequentemente não gerará denúncia ou condenação, qual a necessidade, ou melhor, a proporcionalidade de manter-se uma pessoa presa em flagrante diante destas circunstâncias.

Por outro lado, é de bom alvitre inserir-se neste texto interessante decisão do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (TACRIM, HC 215.540-1 - 4a C. - rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351).

Por ocasião desse decisum colegiado, pois, fica clara a faculdade de o Delegado de Polícia levar a efeito, conforme o seu juízo de valor, nas hipóteses de flagrante delito, a melhor decisão que lhe surgir à consciência, vertendo para a lavratura do auto ou não, consoante sua apreciação daquilo que for, diante do caso em concreto, o mais conveniente e o mais oportuno.

Assim, é sustentável, à luz do sistema jurídico, que é um conjunto de leis e de princípios que se entrelaçam sob a égide dos ditames maiores lançados na Constituição Federal, que a Autoridade Policial possa, por meio da sua discricionariedade, não lavrar autos de prisão em flagrante acerca de infrações que são, em tese, materialmente atípicas.

A decisão de valoração a ser levado a efeito pela Autoridade Policial bastará que contenha fundamentação razoável, fulcro no princípio da persuasão racional, como, de resto, é a atribuição de todos aqueles que levam a efeito atos administrativos em geral.

O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimas e isoladas, sejam sancionados pelo rigor do direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal.

Portanto, cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, utilizando-se de princípios de política criminal tais como a exclusiva proteção de bens jurídicos, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da falta de lesividade ou ofensividade ao bem jurídico, além dos requisitos utilizados pelo STF e STJ para formar o convencimento jurídico, no caso concreto, fins de aplicar ou não o princípio da insignificância na seara penal.

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Sobre o autor
Alexandre Cesar dos Santos

Delegado de Polícia Civil do Estado de Alagoas. Professor de Direito Penal da Faculdade da Cidade de Maceió (FACIMA) . Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco- UFPE (2006). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp - LFG. Especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública pela Universidade de Federal de Rondônia/SENASP. (Delegado de Polícia do Estado de Rondônia 2011-2014).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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