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Teorias naturalista, finalista e social da ação

08/07/2016 às 09:13
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Exitem três entendimentos sobre a causa e tipificação do crime, as teorias naturalista, finalista e social da ação. Resumem-se os três a partir do resgate de doutrinadores brasileiros, ilustrando com situações práticas.

Quando da reforma do Código Penal, já no distante ano de 1984, estabeleceram-se algumas celeumas sobre a natureza finalista ou não da Lei Repressiva que passou a viger.

Um publicação feita pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, intitulada Curso sobre a Reforma Penal de 1984, expunha o parecer dos Procuradores de Justiça sobre esse tema. O livro, que era interessante por si mesmo, tinha um sabor muito especial por desnudar interpretações com algumas divergências de juristas renomados, como Damásio e Mirabete.

Grosso modo, Damásio defendia que o Código adotara a Teoria Finalista da Ação, enquanto Mirabete dizia que apenas foram introduzidos alguns dispositivos consentâneos com essa Teoria. Na oportunidade em que os debates originais ocorreram, segundo registrado no livro, houve a antológica consideração de Damásio acerca do que teria pelo de gato, olho de gato, rabo de gato, mas que não era gato. Ele mesmo respondeu “a gata”... Assim Damásio procurou defender o ponto de vista de que, se existem elementos essenciais suficientes para que o Código se afine com a Teoria Finalista da Ação, assim deve ser considerado.

Interessante registrar que um docente de Direito Penal ainda em plena atividade, membro do mesmo Ministério Público dos citados juristas, defende uma visão muito própria, situando-se entre a Teoria Finalista da Ação e a Teoria Naturalista. Trata-se do brilhante jurista Fernando de Almeida Pedroso, cujas aulas têm a magia de demarcarem-se na memória de modo indelével dada a sua oratória sempre e sempre eloqüente e generosamente didática.

Nos idos de 1984 já havia quem acenasse para uma nova teoria que deveria inspirar os Legisladores no futuro. Falavam da Teoria Social da Ação. Hoje em dia alguns hermeneutas entendem que os dispositivos do Código Penal podem e devem ser interpretados também sob a égide dessa Teoria.

Pensemos, ainda que sob a pequenez de uma síntese precária, no que propõem essas Teorias.

A Teoria Naturalista, ou Teoria Causalista da Ação, parte da premissa de que a conduta do agente delitivo toca-se de vontade mas não se aventa, para fins de averiguação da tipicidade do ato, da existência ou não de uma motivação abrangente do resultado ilícito que a tutela penal resguarda.

A Teoria Finalista da Ação funda-se no conceito de que a conduta delitiva é, como toda conduta, um comportamento humano dirigido a uma finalidade. À exceção de atos involuntários, ou reações impulsivas como aquelas decorrentes de impulsos inatos, toda conduta do homem só se concretiza para que um fim seja atingido. Por essa Teoria já no momento de avaliar se a conduta é típica deve ser considerado se o agente tinha ou não em mente o desejo de obter o resultado delitivo.

Pela Teoria Naturalista o dolo somente seria examinado ao se considerar a culpabilidade do agente. A conduta típica deflagrada, desde que isenta de quaisquer excludentes de ilicitude, era então submetida ao juízo de valor da motivação do agente delitivo.

Pela Teoria Finalista o dolo deve ser avaliado já no momento do exame da tipicidade da conduta. O núcleo do tipo define a conduta criminosa, de modo que a conduta, para ter relevância penal, tem que ao menos iniciar a execução desse núcleo com o agente cônscio do resultado delitivo que pretende alcançar.

O grande mestre Pedroso alerta sobre a vontade básica, inerente ao tipo e suficiente para a averiguação da tipicidade. Defende que o agente assume uma vontade básica de realizar o núcleo do tipo mesmo que não projete o resultado delitivo. Distingue a vontade básica das ações involuntárias (arco reflexo) e a situa muito abaixo da consciência do resultado que a conduta gerará.

Defensores de uma ou de outra exibem vastas argumentações até mesmo de cunho filosófico. Mas ao menos um elemento objetivo existe que aponta para a natureza finalista da estrutura adotada pelo legislador pátrio: o erro sobre elemento constitutivo do tipo tem por conseqüência a exclusão do dolo, sendo possível a eventual punição na forma culposa desde que previsto em lei. É o que dispõe o artigo 20 do CP.

Ora, se o erro sobre elemento constitutivo do tipo exclui o dolo por óbvio o próprio tipo traz em seu regaço o dolo do agente. O exemplo clássico nos reconforta em sua clareza: o agente toma do livro que se acha sobre a estante e só após dali se afastar percebe tratar-se de outro exemplar, não aquele que lhe pertence. O livro idêntico foi pelo agente confundido como sendo o seu. Pode-se aventar da figura típica de furto nesse caso? Não. O elemento constitutivo do tipo em que incide o erro é o caráter “alheio” da coisa móvel. O agente em momento algum cogitou de que ali estivesse um livro pertencente a outra pessoa, de modo que não poderia ter desejado o resultado lesivo ao patrimônio alheio. Fica evidente que não só o tipo se descaracteriza mas também o dolo do agente. Isso porque estão visceralmente vinculados: conduta típica e dolo.

No que concerne à Teoria Social da Ação o Direito dá um passo a mais no sentido de assumir-se enquanto fenômeno essencialmente social. Os bens jurídicos penalmente tutelados só recebem a proteção de leis incriminadoras porque ostentam relevância tal a colocar em risco, caso violados, a própria sociedade. Matar alguém é a definição do crime de homicídio, resguardando-se o mais valioso dos bens jurídicos. Além da vida, a norma penal protege a sociedade na exata medida em que a punição rigorosa de condutas como essa afasta do rompante coletivo a indignação e o desejo de retaliação ou vingança. Ambos os aspectos são de mesma importância do ponto de vista da manutenção da paz social. Há mesmo uma prevalência desta última.

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Tanto é assim que a paz social, desde que não seja atingida pela ação definida a priori como crime, poderá levar à descaracterização do delito. Como se sabe, se o agente agir, por exemplo, em estado de necessidade, até mesmo o ato de matar carece de ilicitude. Em estado de necessidade o ato de matar não é crime. O náufrago que disputa a pequena tábua com outro desafortunado, mesmo que lhe desfira facadas para manter consigo ou arrancar de sua vítima a tábua, não estará cometendo crime de homicídio (artigo 24 do CP). A sociedade não se vê em risco porque dois náufragos lutaram desesperadamente por suas vidas, tentando evitar o afogamento, mesmo que daí resulte a morte de um deles.

Isso já é exatamente assim com a norma vigente. Mas o mesmo raciocínio deve ser empregado para situações outras que não se ajustam às excludentes de antijuridicidade clássicas definidas no artigo 23 do CP. Por óbvio, a preocupação do legislador foi conceituar essas excludentes sob fórmulas rigorosas a fim de evitar aplicação desmedida, gerando-se impunidade. Ainda assim, o Direito é sistema e, enquanto sistema, deve guardar um enredamento orgânico que leve situações de ausência de risco ou dano à paz social à descaracterização de eventuais figuras delitivas em tese ocorridas.

Fernando Capez dá um exemplo muito elucidativo. Um casal que se ponha em avançadas carícias e desnudamento no interior de um veículo estacionado, digamos, no meio da tarde e em uma movimentadíssima avenida do centro da cidade, sob o olhar das miríades de transeuntes, estará cometendo o crime de ato obsceno descrito no artigo 233 do CP. A lesão à sociedade é óbvia, valendo relembrar o bem jurídico penalmente tutelado: o pudor público. Agora imaginemos esse mesmo casal dentro do mesmo automóvel, na mesma avenida porém estacionado às três horas da madrugada, sob torrencial chuva e sem rigorosamente nenhum transeunte ou carro por ali transitando.

A lesão óbvia da primeira situação simplesmente não existe no segundo caso. Por maior que seja a fissura do casal ninguém cogitaria de alegar estado de necessidade. Legítima defesa, tampouco, se mostra um conceito efetivamente cabível. Exercício regular de um direito soaria irônico e, de qualquer modo, não define a situação do casal para fins penais.

Tanto pela Teoria Naturalista como pela Finalista, a figura típica teria ocorrido: Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público.

Não é crível que o agente, nesse caso, seja qual for a hora da ação, não estivesse buscando o resultado, já que o tipo se contenta com a mera prática do ato obsceno em lugar aberto ao público. Em lugar aberto ao público é circunstância pertencente ao tipo, de modo que basta ao agente estar em via pública para que se lhe possa reputar conhecida tal circunstância.

Mas, haverá mesmo sentido em considerar a ação ocorrida durante alta madrugada, na solidão de uma avenida totalmente vazia e sob temporal, como lesiva à sociedade? A resposta é simplesmente não. Por outro lado, cuidando-se de duas pessoas maiores e civilmente responsáveis por si mesmas, que sentido tem imputar-lhes o crime de ato obsceno nessas condições? Um policial que eventualmente esteja por ali patrulhando, ao abordar o casal nesse caso certamente não deve ser considerado uma vítima maculada em seu senso de recato e religiosidade, ao menos não para fins de caracterização da conduta como típica e deflagrar toda uma persecução penal que, a rigor, importaria na prisão em flagrante do casal.

Fácil verificar que a mera aplicação da lei à guisa de tabuada, sem maiores preocupações de cunho jurídico, pode levar a sociedade a um constrangimento ainda maior do que o bem jurídico que, na abstração da lei escrita, recebe tutela penal.

Pela aplicação da Teoria Social da Ação, a conduta do casal flagrado na madrugada é atípica, resguardando-se o bom-senso geral. 

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Sobre o autor
Marco Aurélio Leite da Silva

Analista Judiciário da Justiça Federal desde 1993, já exerceu as funções de Diretor de Secretaria, Oficial de Gabinete, Supervisor de Procedimentos Criminais e Supervisor de Ações Diversas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marco Aurélio Leite. Teorias naturalista, finalista e social da ação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4755, 8 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50390. Acesso em: 24 nov. 2024.

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