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A terceirização do sistema carcerário no Brasil

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A terceirização de presídios, na forma que vem sendo praticada, fere princípios básicos da Administração Pública. Refletimos se o festejado sucesso da discutida terceirização estaria na eficiência das empresas ou na forma de operacionalização política do serviço terceirizado.

Não se pode negar que o Brasil, nos últimos anos, vem adotando um modelo gerencial. Ou seja, a Administração Pública começa a se despir da posição de prestadora de serviços, desestatizando-os, passando, então, a gerenciar a sua prestação, fiscalizando e controlando atividades transferidas à terceiro, dentro das políticas públicas previamente estabelecidas pelo Estado. Dentro desse modelo gerencial, podemos citar as agências reguladoras.

Dentre as formas de privatização – entendida no sentido lato – temos a terceirização, definida por Maria Sylvia Zanella Di Pietro como "a contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiros para o desempenho de atividades-meio" [1].

Wilson Alves Polônio entende a terceirização como "processo de gestão empresarial consistente na transferência para terceiros (pessoas físicas ou jurídicas) de serviços que originariamente seriam executadas dentro da própria empresa" [2]. Ainda na concepção do referido autor a terceirização tem como objetivo "a liberação da empresa da realização de atividades consideradas acessórias (ou atividades-meios), permitindo que a administração concentre suas energias e criatividades nas atividades essenciais" [3].

Apesar da terceirização ter se implantado no âmbito da Administração Pública, não poderá possuir como objeto determinado serviço público como um todo. Desta forma, a locação ou terceirização de serviços, prevista na Lei nº 8.666/93, não se confunde com a concessão ou permissão de serviço público. Aquela tem como objeto a gestão material de atividade que não é atribuída ao Estado como serviço público, exercida apenas em caráter acessório ou complementar da atividade-fim da Administração Pública. Esta, por sua vez, envolve a prestação de um serviço público como um todo, ou seja, todo o complexo de atividades necessárias à sua realização. A execução do serviço compreende, então, tanto a gestão operacional como a gestão material.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello "nos simples contratos de prestação de serviço o prestador do serviço é simples executor material para o poder público contratante. Daí que não lhe são transferidos poderes públicos. Persiste sempre o Poder Público como sujeito diretamente relacionado com os usuários e, de conseguinte, como responsável direto pelos serviços. O usuário não entretém relação jurídica alguma com o contratado-executor material, mas com a entidade pública à qual o serviço está afeto. Por isto, quem cobra pelo serviço prestado – e o faz para si próprio – é o Poder Público. O contratado não é remunerado por tarifas, mas pelo valor avençado com o contratante governamental. Em suma: o serviço continua a ser prestado diretamente pela entidade pública a que está afeto, a qual apenas se serve de um agente material" [4]. Conforme acrescenta o festejado mestre, na concessão de serviços públicos o encargo de prestar o serviço é transferido do concedente para o concessionário, que passa a ser "prestador de serviço ao usuário".

Questão que se coloca é a possibilidade de terceirização de serviços penitenciais, ou melhor dizendo, terceirização de presídios.

Argumenta-se favoravelmente ao tema, a falência do sistema carcerário no Brasil. Não nos cabe neste trabalho abordar as razões de tal fracasso. Para nós, no entanto, torna-se claro que a falta de vontade política aliada a enorme máquina burocrática do Estado, contribuem decisivamente para a construção da teoria em defesa da terceirização de presídios.

Alias, a questionável falta de eficiência da Administração Pública, muitas vezes fruto da incompetência de alguns gestores públicos, tem servido de coro para justificar as privatizações que vêm ocorrendo no cenário nacional.

Sabe-se que o regime de vingança privada, como forma de composição de conflito na seara penal, evoluiu à instituição do monopólio do exercício do poder de punir atribuído somente ao Estado. Compete ao Estado exercitar e executar o jus puniendi. Assim, no exercício do jus puniendi, cabe-lhe a realização do direito penal material, concretizado na sentença condenatória. Já na execução da pena, o Estado-Administração atua através de seus órgãos, embora sob controle jurisdicional.

Nesse diapasão a responsabilidade pela assistência e integridade física e moral de um condenado em regime de cumprimento de pena cabe ao Estado. Em virtude do que determina o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, combinado com o arts. 40 e 41, o que vier a acontecer com o condenado em cumprimento de pena, poderá ser imputado ao Estado na forma do art. 37, §6º, da Carta Constitucional.

O art. 75 da Lei de Execução Penal estabelece os requisitos necessários para "ocupante do cargo de diretor de presídio". O art. 76, por sua vez, refere-se à organização do quadro pessoal penitenciário. Já o art. 77, trata da escolha de pessoal administrativo, especializado, de instrução técnica e de vigilância.

Da leitura dos referidos dispositivos, conclui-se que as funções de diretor, chefia de serviços e de assessoramento técnico, não são passíveis de terceirização. Da mesma forma, pensamos que não há que se falar em terceirização da função própria do cargo de agente penitenciário.

No que concerne as funções de direção do presídio, os Estados brasileiros que vêm adotando esta forma equivocada de terceirização têm indicado, para o seu exercício, servidores públicos, ocupantes de cargo de carreira na esfera da Secretaria de Segurança Pública. Ocorre que, como corretamente assevera Sérgio Pinto Martins, uma das regras para determinar a licitude da terceirização de serviços seria "d) a direção dos serviços pela própria empresa terceirizada" [5]. Nesta mesma linha, Edite Hupsel e Leyla Bianca Correia Lima da Costa, afirmam que "o terceirizante não pode ser considerado como superior hierárquico do terceirizado e nem o serviço prestado por determinada pessoa indicada pelo terceirizante" [6]. Dessa maneira, afirmamos o desvirtuamento ilícito da terceirização de serviços penitenciários, explicitado na tentativa de solucionar a intransponível impossibilidade de terceirização de funções de direção de presídio.

Ademais, alguns dos contratos de prestação de serviços penitenciários que vêm sendo firmados por Estados brasileiros estabelecem a prestação de serviços de segurança interna da unidade penitenciária pela empresa contratada, serviço este que para ser efetivado necessita do exercício de prerrogativas próprias da Administração Pública, sendo atribuição típica do cargo de agente penitenciário.

É cediço que a Constituição Federal, no seu art. 37, II, determina a obrigatoriedade do concurso público de provas ou de provas e títulos para a investidura em cargo ou emprego público. Assim, não poderão ser objeto de execução indireta, atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade [7].

Some-se a isso, o fato de que as pessoas que não estão legalmente investidas em cargos, empregos ou funções públicas, não podem praticar qualquer tipo de ato administrativo que implique decisão, manifestação de vontade, com produção de efeitos jurídicos, somente podendo executar atividades estritamente materiais [8].

Com efeito, somente através de contratos administrativos de permissões ou concessões de serviços públicos é que se admite a transferência, para particular, de poderes e prerrogativas próprias da Administração Pública, razão pela qual são as únicas hipóteses em que se admite a transferência de execução de serviço público ao particular [9]. Neste sentido é que Jorge Sarmiento García aduz que são outorgadas ao concessionário de serviço público prerrogativas de poder público, entre elas o exercício de certos poderes de polícia interna relacionados com a organização do serviço [10]. Nesse diapasão, reafirmamos que a transferência de poderes administrativos não pode ser objeto de contrato de terceirização de serviços penitenciários, firmado nos moldes da Lei nº 8.666/93.

Hoje, no Brasil, contamos com alguns Estados que adotam o regime de terceirização de serviços penitenciários, a saber: Paraná (Guarapuara), Ceará (Cariri) e Bahia (Valença). Esquece-se das irregularidades de natureza administrativas, existentes e já demonstradas desse tipo de terceirização, e valoriza-se a eficiência dessa transferência de serviços que se aflora quando comparada aos presídios administrados diretamente pelo Estado. Tal valorização, no entanto, precisa ser questionada.

Segundo matéria publicada no Correio Brasiliense de 13/05/2001, a penitenciária de Guarapuara (Pr), possuía naquela época 250 (duzentos e cinqüenta) vagas, comportando 200 (duzentos) presos. Já no presídio de Cariri (CE), o déficit de ocupação era de 50% (cinqüenta por cento), ou seja, 200 (duzentos) presos para 550 (quinhentos e cinquenta) vagas. Considere-se, ainda, que os presos passavam, até então, por processo de triagem, sendo selecionados para tais vagas por apresentarem bom comportamento.

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Refletimos se o festejado sucesso da discutida terceirização estaria na eficiência das empresas ou na forma de operacionalização política do serviço, quando terceirizado.

É do conhecimento geral o descaso da Administração Pública com a prestação direta dos serviços penitenciários. A superlotação de presídios, sem qualquer preocupação com questões de segurança, higiene, saúde e educação é flagrante. O sociólogo francês, radicado nos Estados Unidos, Loic Wacquant, apontado como um dos maiores estudiosos do sistema penitenciário, ao visitar o presídio Hélio Gomes, no centro do Rio de Janeiro, afirmou que no Brasil "as prisões são infernos habitados por seres-humanos". Em conseqüência dessa realidade, torna-se inócuo o argumento utilizado para justificar a maior eficiência dos serviços de interesse público quando prestados por particulares, qual seja, o engessamento do Estado causado pelo regime jurídico administrativo.

A terceirização dos serviços penitenciários, que começa a ser adotada no nosso país, parece inspirada no modelo norte-americano, implantado nos anos oitenta. Cumpre, no entanto, acrescentar que nos Estados Unidos alguns já começam a apontar sinais de esgotamento de tal sistema.

Loic Wacquant aduz que a nova economia americana não é apenas a da internet e a das tecnologias de informação: é também a que industrializa o castigo. Acrescenta que "criou-se entre os americanos a gestão penal da miséria, modelo que começa a ser copiado por países como o Brasil, onde os efeitos negativos podem ser ainda piores".

Não se quer aduzir a total impossibilidade de terceirização dos serviços prestados no âmbito das penitenciárias. Obviamente que as atividades acessórias ali desenvolvidas podem ser objeto de terceirização, como, por exemplo, o serviço de limpeza, fornecimento de alimentação, etc.

Ocorre que, a terceirização de presídios, na forma que vem sendo praticada, fere princípios básicos da Administração Pública, conforme demonstrado. Ademais, não se pode permitir que a incontrolável criminalidade que cresce no País, por motivos que não nos cabe analisar neste trabalho, transforme-se em instrumento de grandes negócios para influentes empresários.

Aqueles que defendem e respeitam os direitos humanos, devem meditar cuidadosamente sobre todas essas questões antes de aprovarem a terceirização do sistema carcerário no Brasil. Não podemos nos curvar inertes diante de anomalias repugnantes criadas sob o manto da questionável eficiência. Cabem a nós, cidadãos, refletirmos quanto às futuras conseqüências que poderão advir desse novo sistema de gerenciamento carcerário. Afinal, como afirmou um dia Rui Barbosa "o que hoje semeias, colhereis amanhã" [11].


Notas

1 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002, p. 174.

2 Polônio, Wilson Alves. Terceirização:Aspectos Legais, Trabalhistas e Tributárias. São Paulo:Atlas, 2000, p. 97.

3Polônio, Wilson Alves. Terceirização:Aspectos Legais, Trabalhistas e Tributárias. São Paulo:Atlas, 2000, p.98.

4 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 423.

5 Martins, Sérgio Pinto. A Terceirização e o Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 143.

6 Hupsel, Edite e Lima da Costa, Leyla Bianca Correia. A Gestão Fiscal Responsável e a Terceirização na Administração Pública In www.oab-ba.gov.br, pesquisa realizada no dia 12/09/03, às 15:30 horas.

7 Este é o entendimento do Tribunal de Contas da União, que acabou levando o Governo Federal a baixar o Decreto nº 2.271/97, dispondo nesse sentido.

8 Nesse sentido é o posicionamento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Cf. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002, p. 178).

9 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002, p. 187.

10 García. Jorge Sarmiento. Concesión de Servicios Públicos. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1999, P.143

11Barbosa, Rui. O Habeas Corpus, o Estado de Sítio. Termo de seus Efeitos. In Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p.524.

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Sobre a autora
Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho

promotora de Justiça na Bahia, mestranda em Direito Público pela UFPE/UCSAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOURINHO, Rita Andréa Rehem Almeida. A terceirização do sistema carcerário no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 275, 8 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5055. Acesso em: 5 nov. 2024.

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