3. EXAME DO CADÁVER
3.1. Exame do cadáver no local
Em primeiro lugar, devemos diferenciar o exame perinecroscópico da necropsia. Segundo Gerhard Erich Boehme3:
Significado de Perinecroscópico: Exame realizado por peritos criminais no local de crime. Não deve ser confundido com a necrópsia, que é realizado por médico legista e exame do corpo em seu exterior e interior. O exame perinecroscópico limita-se ao exame externo. Os peritos criminais têm atribuição para exame do local e instrumentos do crime, devendo efetuar o exame perinecroscópico para orientação de seus trabalhos, fotografando o corpo na posição em que for encontrado, bem como todas as lesões externas e vestígios deixados no local do crime, em obediência ao art. 164. do Código de Processo Penal. Os médicos legistas, por outro lado, efetuam o exame necroscópico, nas dependências do Instituto Médico Legal, por vezes sem ter conhecimento da dinâmica do evento, dos comemorativos ou mesmo dos achados de local. O médico legista tem melhores condições para exame do corpo que o perito criminal que, muitas vezes, examina o cadáver, na via pública e com recursos limitados. Sendo assim, um exame mais detalhado, no IML, venha a revelar ferimentos não observados no local dos fatos, mesmo porque o perito criminal não tem aceso aos ferimentos no interior do corpo. O laudo do Instituto Médico-Legal, baseado no exame no corpo da vítima, deve complementar os exames realizados pelo perito criminal no local dos fatos.
O perito deve seguir alguns procedimentos nesse exame. O cuidado básico é verificar o conceito de “destruição da ponte”. Alguns vestígios são destruídos quando coletados, como uma ponte destruída assim que atravessada. Por isso o cuidado na coleta de informações existente no cadáver.
Como orientação, deve-se verificar: i) os ferimentos; ii) sinais de violência (intensidade, se fora realizados no local, etc); iii) sinais de luta (essenciais para verificação de possível legítima defesa ou qualificadora de uso de recurso que dificultou a defesa da vítima, elementos comumente desconsiderados pela autoridade policial na elaboração do relatório do Inquérito Policial); iv) reação de defesa (em complemento ao item anterior); v) vestígios intrínsecos, como sêmen, vísceras, vômitos, salivas, fezes; vi) sangue (informar a forma de produção, se escorrimento, gotejamento, concentração, etc), devendo ser fotografado na forma que foi encontrado. Se possível, identificar se havia sangue do agressor, o que denotaria sinais de luta; vi) vestígios extrínsecos (manchas, pelos, material orgânico, terra, etc); vii) material do agressor (verificar unhas, mãos e órgãos genitais da vítima); viii) observar se relógios, anéis, brincos, cordões, foram arrancados (essencial para a contraposição entre latrocínio e homicídio).
a) Orientação do exame
No exame do cadáver no local, o perito deve seguir as seguintes etapas: i) exame visual, sem tocar no corpo, com registro de todos os vestígios possíveis; ii) exame com as vestes, no qual o cadáver começará a ser movimentado; iii) exame retirando as vestes, devendo ter cuidado para não perder os vestígios. Aqui um lembrete: o morto mantém a dignidade objetiva. Por isso, o isolamento visual do local, para afastar olhares incaltos se faz essencial nessa etapa; iv) exame sem as vestes, essencial para a verificação das lesões, em sua quantidade e qualidade.
O perito também deve ter uma orientação para a análise do cadáver, sendo recomendado que utilize a sequência: cabeça, pescoço, tórax, membros superiores, mãos, abdômen, dorso, órgãos genitais e membros inferiores.
b) Exame das vestes
As vestes dizem muito sobre o crime. Infelizmente, por descuido da autoridade policial na preservação da prova, desaparecem antes de poderem ser exibidas aos jurados em Plenário do Tribunal do Júri. A sequência de análise das vestes é: a) exame das vestes sem tocar no cadáver; b) exame das vestes ao movimentar o cadáver; c) exame das vestes enquanto essas são retiradas do corpo da vítima; e d) exame da cada peça, de forma individual.
O perito deve observar as condições em que estavam as vestes, principalmente: i) rasgões; ii) orifícios e perfurações; iii) botões arrancados; iv) manchas de sangue (se formados por gotejamento, concentração, alimpadura, respingos, rastro de sangue, indicando que o corpo foi arrastado, etc); v) substâncias estranhas nas vestes; vi) examinar os bolsos (se encontrar valores, registrar na frente de testemunhas, para evitar acusações de subtração pela autoridade policial); e vii) adotar procedimento para que as vestes siga junto com o cadáver para o IML.
3.2. Exame do cadáver no IML
O exame do cadáver pelo médico legista é chamado de necropsia. O perito deve acompanhar esse exame, até para complementar os dados já coletados.
Como referência, o medido legista deve observar: i) o formato das lesões, tais como bordas, contusões, profundidade, largura, sentido de produção; ii) trajeto interno de arma de fogo (essencial para descrever a posição em que o agente estava quando efetuou o disparo); iii) a distância do disparo de arma de fogo, devendo verificar se os vestígios do disparo (orla de enxugamento) ficaram nas vestes; iv) instrumentos do crime, devendo descrever detalhadamente a relação entre os ferimentos e a arma utilizada, mormente quanto à compatibilidade entre a arma branca apreendida e as lesões; v) etc.
Delton Croce e Corce Jr4 trazem o conceito de tanatognose
É a parte da tanatologia forense que estuda o diagnóstico da realidade da morte. Esse diagnóstico será tanto mais difícil quanto mais próximo do momento da morte. Antes do surgimento dos fenômenos transformativos do cadáver, não existe sina patognomônico de morte. Então o perito observará dois tipos de fenômenos cadavéricos: os abióticos, avitais, ou avitais negativos, imediatos e consecutivos, e os transformativos, destrutivos ou conservadores.
Os fenômenos abióticos imediatos apenas insinuam a morte, sendo eles: perda da consciência, abolição do tônus muscular com imobilidade, perda da sensibilidade, relaxamentos dos esfíncteres, cessação da respiração, cessação de batimentos cardíacos, ausência de pulso, fácies hipocrática, e pálpebras parcialmente cerradas. Os fenômenos abióticos consecutivos são: resfriamento paulatino do corpo, rigidez cadavérica, espasmo cadavérico, manchas de hipóstase e livores cadavéricos, e dessecamento, com decréscimo do peso.
A importância dessa lição é prática: determinar o horário aproximado da morte pode ligar determinado agente ao local do crime, considerando outros dados coletados pela autoridade policial.
4. EXAMES DE LABORATÓRIO
Após a coleta de vestígios e análise do corpo pelo médico legista, determinadas provas podem ser produzidas em laboratório do instituto de criminalística. Amostras de vestígios, nos quais haja a necessidade de exames laboratoriais, podem ser coletadas: i) durante o exame do local; ii) durante o exame do cadáver no local; iii) durante o exame do cadáver no IML.
Os tipos de exames mais comuns são os exames de: sangue (principalmente do agressor, para comprovar a autoria), esperma (eventual estupro seguido de morte ou ligação afetiva entre vítima e agente), fios de cabelo, tecido humano, produtos químicos, dentre outros.
O corpo de delito como um todo também pode se encaminhado para o laboratório, para análise, sendo mais comum o encaminhamento de: armas de fogo (importante precisar quantos disparos foram realizados, e se havia cartuchos sem serem disparados, para eventual análise de desistência voluntária), projéteis de armas de fogo (relacionando-os com os ferimentos no corpo), facas (dentre outras armas brancas), fragmentos de impressão digital, ferramentas (armas impróprias), pedaços de madeira, barras metálicas, etc.
O perito deve providenciar a identificação correta de cada amostra, para evitar a contaminação ou o extravio. Para cada amostra, deve seguir um tipo de exame requisitado. Ou seja, o perito guia o trabalho de seu colega de laboratório, podendo (ou devendo) apontar as hipóteses a serem verificadas pelo técnico.
Após a conclusão dos exames, esses serão encaminhados ao perito que analisou o local do crime, para que faça as suas considerações sobre toda a prova coletada.
5. ANÁLISE GERAL DOS VESTÍGIOS
Considerando que o crime “fala através das provas”, parodiando Gil Grissom, do seriado americano CSI, os peritos devem montar o “quebra-cabeças”, sendo que algumas peças certamente faltarão. Pelo contexto geral dos exames, esses são divididos em três fases: i) exame do local (imediato, mediato e relacionado); ii) acompanhamento da necropsia; e iii) exames laboratoriais.
A análise geral dos vestígios é a correlação entre as três fases. Imaginando-se as provas periciais como um projeto de pesquisa, teríamos no início o levantamento de hipóteses (suicídio? Latrocínio? Homicídio qualificado? Lesão corporal seguida de morte? Uso moderado da legítima defesa? Etc), e ao final as conclusões, com a prova da materialidade e autoria do crime, com seus corolários.
A cena do crime é reconstruída após os exames periciais, sendo conhecida tecnicamente como dinâmica do local. Após a reconstituição da cena do crime, o perito apontará o diagnóstico diferencial do fato, ou seja, como a morte ocorreu (suicídio, homicídio, acidente ou morte natural, etc).
Na conclusão, o perito deve se basear apenas em elementos técnico-científicos, só podendo afirmar determinado fato se tiver elementos em quantidade e qualidade suficiente para fundamentá-lo. Se houver duas hipóteses, não poderá optar por uma delas. Dois conceitos devem ser utilizados pelos peritos: as determinantes e as probabilidades. Por exemplo: diversos ferimentos pérfuro-contusos em um cadáver são determinantes para a comprovação da materialidade do crime de homicídio. Uma impressão digital no local é uma probabilidade de autoria, mas não determinante (poderá embasar a condenação, por ser prova indiciária, nos termos do artigo 239, do CPP, em estando relacionada com outras provas).
Por fim, na análise das provas, o perito pode: i) eliminar todas ou a maioria das probabilidades e indicar uma cena do crime e o diagnóstico diferencial do fato com prova da materialidade e autoria; ii) apontar que determinada causa é mais provável, mas sem a exclusão peremptória de outras, por não haver determinantes suficientes; e iii) apontar a impossibilidade de conclusão do evento, por insuficiência de vestígios. O não-isolamento do local, a ausência de contato do perito com o local do crime, a contaminação da prova por policiais ou populares, dentre outras, levam a essa terceira situação, que, em regra, gerará a impunidade do criminoso.
6. CROQUI E LAUDO PERICIAL
O croqui é uma espécie de “bloco de anotações” feitas pelo perito.
A folha do croqui não tem um modelo padrão, mas em regra, é dividido em duas partes: i) a superior, onde são preenchidas de forma preliminar, informações como: coordenadas geográficas, data, número da ocorrência, delegado requisitante, tipo de exame, materiais coletados, autoria conhecida ou desconhecida, etc; e ii) a mediana e inferior da folha, para o perito fazer um “desenho esquemático” do local examinado.
O verso da folha do croqui servirá para anotações do perito, divididas em tópicos: i) do local; ii) do cadáver; iii) das vestes; iv) do exame perinecroscópico; v) discussão, dinâmica e conclusão; e vi) outros exames.
O croqui poderá ser utilizado como prova, apesar de ser um documento de anotações pessoais do perito. O correto, portanto, é a redução dos termos e transposição das informações vitais para o LAUDO PERICIAL, documento pelo qual o perito apresenta todo o seu trabalho.
O laudo pericial possui os seguintes elementos básicos: número da ocorrência, número do laudo, cabeçalho, histórico, exames do local, exames do cadáver, exame das vestes, exame perinecroscópico, exames de laboratório, considerações técnico-periciais, discussão (dinâmica) e conclusão.
No presente caso estamos tratando de evento morte, com suspeita de homicídio. Por isso, em suas conclusões, o perito deve relatar o diagnóstico da causa da morte, que pode ser natural ou violenta. Nem sempre a morte violenta é decorrente de homicídio, podendo ser consectário de suicídio, acidente, latrocínio, etc. Celso Luiz5 classifica a morte violenta em: morte súbita, aquela de efeito imediato; morte mediata, a que permite a sobrevivência por algumas horas, após o surgimento da causa; e morte agônica, com a sobrevivência por dias, semanas ou meses após a causa. O perito deve descrever a modalidade da morte violenta, por óbvias consequências no mundo jurídico.
O laudo será, por fim, apresentado à autoridade policial, servindo para embasar o relatório do IP, a denúncia, e as decisões judiciais.
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, conforme redação do artigo 155, do CPP. Ou seja, em regra, as provas devem ser produzidas em sede judicial (ou repetidas nessa seara, como as provas testemunhais), em respeito à ampla defesa e ao contraditório. As provas periciais, pela característica de serem “não repetíveis”, são produzidas antecipadamente.
Fábio Coelho Dias6 observa:
Nesse sentido, quando da produção da prova pericial, o contraditório somente será realizado em juízo (artigo 155, caput do Código de Processo Penal Brasileiro), limitando-se ao exame acerca da idoneidade do profissional responsável pela perícia, e, também, das conclusões alcançadas, quando já perecido o material periciado. Em consequência disso, o objeto da prova, na maioria das vezes, será a qualidade técnica do laudo, e, especialmente, o cumprimento das normas legais a ele pertinentes, por exemplo, a exigência de motivação, de coerência, de atualidade e idoneidade dos métodos, dentre outros.
Caberá à defesa indicar assistentes técnicos, para acompanhar/auxiliar/refutar as provas periciais. Em havendo provas cautelares antecipadas, a defesa poderá utilizar esses assistentes até meso na fase inquisitorial, diferindo-se o debate sobre a validade da prova para a instrução criminal. A atuação nessa fase da defesa poderá redundar no pedido de arquivamento do Inquérito Policial pelo Promotor de Justiça ou a absolvição sumária pelo Juiz. Portanto, em nome dos princípios constitucionais citados, a defesa pode atuar na fase inquisitorial, indicando provas a serem observadas pelos peritos.
7. CONCLUSÃO
A cena do crime fala. Não há crime perfeito. Ninguém modifica a natureza sem deixar rastros da forma como atuou. Ou seja, todos os crimes podem ser desvendados. O perito é uma espécie de tradutor da cena do crime, ouvindo o ecoar das provas e trazendo seus significados para o mundo jurídico. A sociedade espera que o crime seja desvendado e o culpado punido, para evitar a reiteração do crime. A família espera que o culpado seja punido para dar um alento à memória do morto. Quando o crime não é desvendado, a paz social não é reestabelecida. Surge a situação de barbárie, que muitas vezes leva a justiça privada, com as consequências sentidas por comunidades nordestinas, sem lei.
O Poder Público não investe em investigação. O gestor público acredita que o que dá votos é “polícia na rua”. Vê-se um investimento maciço em policiamento ostensivo, e praticamente zero em investigação. Em regra, a polícia consegue prender o culpado pelo crime (ou quem tem a aparência de culpado), que é posto em liberdade se não há elementos de prova de autoria. Então ouve-se o jargão popular: “a polícia prende, a justiça solta”. Sim, se a prisão é arbitrária, e não há provas hábeis à formação da convicção do juiz, esse deve colocar o preso em liberdade. Mais vale um assassino solto que um inocente preso. Esse é o peso de se viver em uma democracia, peso que todos temos que suportar.
O resumo acima, feito de acordo com a técnica pericial, serve de baliza para promotores de justiça requererem diligência complementares, antes da denúncia, ou em audiência de instrução, após as provas testemunhais e interrogatório. Mas servem de baliza também para o policial, em sua atuação.
O policial, mesmo o militar, deve saber observar uma cena de crime. Nas cidades do interior, ou periferias de capitais, a maioria dos homicídios não é objeto de perícias, nos termos da praxe citada acima. E não é porque a autoridade policial não requereu, nos termos do CPP. Simplesmente inexistem peritos. O delegado nomeia um médico local como legista. Esse se contenta apenas em informar a natureza da morte e a qualidade dos ferimentos. E só. A materialidade levada ao MP e ao juiz se resume a isso. A autoria é fundamentada apenas em depoimentos testemunhais e eventual confissão (qualificada ou refutada em juízo, como é de praxe).
Dados como: sinais de luta, marcas de sangue, sinais de arrastamento do corpo, arrombamentos de portas e janelas, direção dos disparos, iluminação do local imediato e mediato, acesso ao local, condições das vestes, etc, não são levados em conta. Por isso a necessidade de qualificação dos policiais quanto a aspectos básicos da perícia. Poderão, como dito acima, serem chamados a juízo para suprir, com seus testemunhos, provas que desapareceram pela ausência de perícia.
Portanto, a ideia desse artigo é dar embasamento ao Promotor de Justiça no requerimento de diligências complementares em Inquéritos/Processos em crimes contra a vida.
Notas
1 Perícia Criminal e Cível. 4ª Edição. 2013. Milennium Editora.
2 Código de Processo Penal Comentado. 6ª Edição. Ed. Revista dos Tribunais. 2007. P. 366.
3 https://www.dicionarioinformal.com.br/significado/perinecrosc%C3%B3pico/9733/. Acesso em 14 de julho de 2016.
4 Manual de Medicina Legal. Editora Saraiva. 6ª Edição. P. 432.
5 Medicina Legal. Série Provas e Concursos. Campos Editora. P. 127.
6 A prova pericial no Direito Processual Penal brasileiro. Disponível em: https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8452. Acesso em 14/07/2016.