Em notícia recentemente veiculada no jornal "Valor", de 19 de julho de 2016, na seção "Legislação e Tributos", verifica-se que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) pretende utilizar os chamados incidentes de demandas repetitivas nas defesas judiciais da União, com o intuito de excluir das execuções fiscais a aplicação do procedimento incidental de desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133 a 137), previsto no novo Código de Processo Civil, Lei n. 13.105/2015. A fundamentação de tal propósito é a de que o novo CPC cria a oportunidade do devedor se manifestar, tirando o elemento surpresa da medida, e que a Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/1980), por ser específica, sobrepor-se-ia ao CPC.
Inicialmente, o procedimento incidental criado pelo novo CPC teve sua fundamentação relacionada às garantias fundamentais e constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV, CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88). Isso porque, antes do estabelecimento da regra processual em discussão, era uma prática corriqueira dos Tribunais a desconsideração da personalidade jurídica, redirecionando os atos executivos contra o patrimônio pessoal dos sócios ou responsáveis, sem se oportunizar aos mesmos o direito de exercer sua defesa contra a pretensão jurídica do credor/exequente. Não raro, entendia-se que, diante da simples verificação de hipóteses de atos supostamente fraudulentos, estavam consubstanciadas as regras de autorização da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade executada, fazendo com que os bens particulares dos sócios respondessem pela dívida objeto da ação de execução.
Então, somente após a consolidação dos atos de desconsideração da personalidade jurídica, é que os sócios tomavam ciência dos atos processuais expropriatórios, quando já atingidos seus bens pessoais, passando, a partir de então, a poder exercer o seu direito de defesa e de contraditório. Inobstante isso, o dano processual já estava consolidado, pois não se possibilitou ao interessado a prévia oportunidade de impugnar o ato judicial que determinara o deslocamento da execução contra o patrimônio pessoal dos sócios ou responsáveis.
Note-se que, até então, não existia qualquer regulamentação quanto ao procedimento em tela (formalidades, prazos, recursos etc.), circunstância que deixava o sujeito atingido pelos atos expropriatórios da execução sem qualquer garantia ou certeza quanto à proteção do seu patrimônio pessoal. Com efeito, a inexistência de um procedimento específico sobre o assunto "desconsideração da personalidade jurídica" feria o sobreprincípio da segurança jurídica.
Por isso, nada mais natural que o legislador infraconstitucional tenha estabelecido, ao propor e gerar a regulamentação do novo processo civil nacional, um procedimento específico sobre o tema, agasalhando o princípio maior da segurança jurídica e os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
O que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional entende é que, por se tratar de uma execução fiscal, regida por lei "específica", penderia uma norma de exceção, que afastaria a aplicação concreta do incidente processual da desconsideração da personalidade jurídica, previsto em uma regra processual geral. Na realidade, o fato da LEF ser uma lei processual especial não afasta a aplicação das regras gerais do CPC, naquilo que não lhe contrarie. É o que está previsto no seu art. 1º:
"Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil." [grifamos]
Ora, a LEF não prevê o procedimento específico acerca da desconsideração da personalidade jurídica. O art. 135, do Código Tributário Nacional (CTN), que estabelece o redirecionamento da responsabilidade pelo crédito tributário, também não infirma um determinado procedimento para tal mister. Assim, o fundamento da Fazenda Pública baseia-se no entendimento do STJ quando editou a Súmula n. 435, com o seguinte enunciado:
“Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.”.
Veja-se que este enunciado foi criado antes da vigência do novo CPC, quando inexistia um procedimento específico acerca do tema. Ora, não pode um entendimento jurisprudencial - tal como as súmulas - dispor sobre matéria específica disposta em lei nova, sob pena da violação desta. Ou seja, o conteúdo da súmula jurisprudencial, se contrariar o dispositivo da lei nova, sendo, portanto, com ela incompatível, não pode ser aplicado.
No caso, a lei processual nova cria um procedimento expresso para a desconsideração da personalidade jurídica. Assim, para que se presuma por dissolvida irregularmente a sociedade empresária, tal qual disposto na Súmula 435/STJ, deverá ser instaurado, contra os sócios ou responsáveis, o incidente previsto no art. 133 a 137 do CPC. Ou seja, o exequente continuará podendo requerer o redirecionamento da Execução Fiscal contra o administrador da sociedade executada, com base no art. 135, inciso III, do CTN e com base na presunção disposta na Súmula n. 435/STJ, alegando dissolução irregular da sociedade ou sucessão de pessoas jurídicas na exploração da mesma atividade.
No entanto, para esse fim, haverá de cumprir com o procedimento incidental regulamentado pelos art. 133 a 137 do novo CPC, sob pena de nulidade processual.
Concluindo, falta fundamentação jurídica crível à pretensão do Fisco de querer que o procedimento incidental de desconsideração da personalidade jurídica criado pelo novo CPC não seja aplicado às execuções fiscais, com base na suposta especialidade do procedimento executivo fiscal e com base num entendimento jurisprudencial criado com base na lei processual antiga, ignorando, assim, o fundamento constitucional que está por trás desta nova ferramenta processual, qual seja, a proteção à segurança jurídica, ao contraditório e à ampla defesa e, principalmente, ao devido processo legal.