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As virtudes éticas em Aristóteles:

a ação moralmente boa, o meio-termo e a justiça

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A grandeza da justiça consiste no fato de ela ser uma virtude que supõe o relacionar-se com o outro.

Introdução

A concepção aristotélica de virtude enquanto “mediania” ou “meio-termo” entre dois vícios é constantemente utilizada como referência na Filosofia do Direito.

Contextualizando a posição do filósofo a partir dos textos originais, o presente artigo pretende contribuir para a compreensão do tema, sempre atual nas especulações do operador do direito. 

Ainda, o texto pretende explicitar a virtude da justiça, explorando e justificando a sua importância no contexto da filosofia aristotélica.


1) A ação moralmente boa como origem das virtudes éticas

Ao analisar a temática das “virtudes”, Aristóteles parte da constatação de que a virtude não pode ser considerada como algo que está previamente consolidado nos homens, mas sim, coloca-se como uma disposição a ser desenvolvida.

Examinando as opiniões comumente divulgadas e no intuito de encontrar a origem das virtudes, o filósofo coloca como hipótese que ela se daria pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de exercício ou ainda pelo acaso (Ética a Nicômaco - EN, I, 9, 1099b).

De plano, descarta-se o acaso, eis que “(...) confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito” (EN, I, 9, 1099b). Quanto às demais hipóteses, Aristóteles considera que é necessário distinguir a virtude intelectual (também chamada dianoética) e a virtude ética (EN, II, 1, 1103a):

(...) Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito (...) Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza.

A partir da passagem destacada, tem-se que a virtude ética não pode ser considerada como algo que se coloca ao homem por natureza, tampouco algo que possa ser ensinado, mas sim, consiste em uma disposição adquirida pelo hábito. Mas no que consistiria tal hábito? Para Aristóteles:

“(...) as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres” (EN, II, 1, 1103b).

Assim, o hábito que torna possível que surja nos homens uma disposição virtuosa é aquele que condiz com a prática de ações moralmente boas. Como explica Marie-Dominique Philippe (2002, p. 43), a ação moralmente boa distingue-se da ação má pela sua conformidade com a reta razão (orthos logos).

No entanto, o filósofo esclarece que não basta a prática de uma ação boa para que o agente seja considerado virtuoso, mais do que isso, é necessário que ele se encontre em certas condições, quais sejam: “(...) em primeiro lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, e escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firme e imutável” (EN, II, 4, 1105a).

Nesse sentido, coloca-se a voluntariedade do ato que está na origem da aquisição da virtude, abrangendo a escolha, a deliberação e a intenção[1].

  • Por voluntariedade entende-se a situação em que o homem sabe e deseja o que faz, ao contrário dos atos involuntários, que são marcados pela compulsão ou pela ignorância[2];
  • Por escolha, entende-se a capacidade de discernimento no momento da realização do ato, já que mesmo os animais podem realizar atos voluntários, visto que certo apetite pode motivá-los a agir, mas serão incapazes de escolher entre tal ou qual ato[3];
  • Por deliberação, entende-se uma operação que precede à escolha, consistindo no exame das possibilidades a partir de um princípio racional[4];
  • Por intenção, entende-se a finalidade buscada pelo agente[5]. 

A partir disso, pode-se dizer que a ação moralmente boa é aquela que consiste em um (i) ato voluntário, decorrente da (ii) escolha (iii) deliberada tendo o (iv) bem como intenção.


2) A virtude enquanto meio-termo

Tendo definido o que seria a ação moralmente boa, caberia indagar sobre o parâmetro que dirigiria a atividade do homem. Para tal, Aristóteles (EN, II, 2, 1104a) estabelece uma analogia com a saúde, nos seguintes termos:

Comecemos, pois, por frisar que está na natureza dessas coisas o serem destruídas pela falta e pelo excesso, como se observa no referente à força e à saúde (pois, a fim de obter alguma luz sobre coisas imperceptíveis, devemos recorrer à evidência das coisas sensíveis). Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou a bebida que ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam.

Assim como na saúde é necessário alcançar o meio-termo, dado que a deficiência e o excesso são os seus contrários, o mesmo se dará com a virtude.

Lembrando que a virtude, considerada genericamente, não apenas torna uma coisa boa, mas a torna excelente, Aristóteles (EN, II, 6, 1106a) entende que aquela virtude que é acessível ao homem não só o torna bom, mas também o torna excelente em sua função, e será neste sentido que o meio-termo deverá ser buscado. No esclarecimento do que vem a ser o meio-termo, é notável a clareza exposta na Moral à Eudemo (II, 3):

(…) é preciso ter presente que em todo objeto contínuo e divisível podem-se distinguir três coisas: um excesso, um defeito e um meio. Estas distinções podem ser consideradas, seja em relação às coisas mesmas, seja em relação a nós; por exemplo, pode-se estudá-las na ginástica, na medicina, na arquitetura, nas artes náuticas ou em qualquer outro desenvolvimento da nossa atividade, seja ou não científico, seja conforme as regras da arte seja ao contrários delas. O movimento, com efeito, é uma continuidade, e a ação não é mais do que um movimento. Em todas as coisas, o médio, com relação à nós, é o melhor e o que nos prescrevem a ciência e a razão. Sempre e em todas as coisas, o médio tem a vantagem de produzir o melhor modo de ser, que pode demonstrar-se, por sua vez, pela indução ou pelo raciocínio. E assim, os contrários se destroem reciprocamente, e os extremos são, por sua vez, opostos entre si e opostos ao médio, porque este médio é um e outro extremo relativamente a cada um deles; por exemplo, o igual é maior que o menor e menor que o maior. Donde se segue que, a virtude ética deve consistir em certos meios e em uma posição mediana. (tradução livre)[6]. 

Tendo explicitado que o meio-termo é a perfeição a ser atingida, cumpre determinar se esse termo médio seria constante ou mudaria diante das circunstâncias que envolveriam o agente e a ação.

No início da passagem destacada anteriormente, Aristóteles estabelece que a distinção entre o excesso, o defeito e o meio-termo pode ser considerada tanto em relação às coisas quanto em relação às pessoas.

Em sua EN (II, 6, 1106a), Aristóteles desenvolve melhor tal ideia, considerando que o meio-termo no objeto é “(...) aquilo que é equidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens”, já o meio-termo em relação a nós seria “(...) o que não é nem demasiado nem demasiadamente pouco – e este não é um só e o mesmo para todos”.

Para esclarecer tal distinção, Aristóteles (EN, II, 6, 1106a) utiliza dois exemplos: tendo como parâmetro, ao considerar um objeto, que dez seria demasiado e dois seria insuficiente, pode-se alcançar o meio-termo pela média aritmética entre os dois, identificando o seis como o meio, pelo fato de essa quantidade exceder e ser excedida de modo semelhante.

Por outro lado, o mesmo tipo de raciocínio não se aplica ao homem, dado que “(...) se dez libras é demais para uma determinada pessoa comer e duas libras é demasiadamente pouco, não se segue daí que o treinador prescreverá seis libras” (EN, II, 6, 1106b), pela razão óbvia de que isso talvez seja demasiado ou insuficiente para a pessoa que deve comê-lo.

A importância de tal distinção reside no fato de que a determinação do meio-termo em relação ao homem, a ação virtuosa, deverá levar em conta as peculiaridades desse homem. Em outras palavras, não seria possível exigir, de pessoas diferentes, condutas iguais, visto que algo considerado excessivo para um pode ser deficiente para outro. A partir dessas considerações pode-se propor uma definição mais elaborada de virtude ética:

A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo (EN, II, 6, 1107a).


3) O prazer e o pesar: o termômetro da ação

Por óbvio, se o meio-termo se identifica com a origem da virtude, esse termo médio não se colocará como algo simples a ser alcançado, visto que ora o homem pode tender naturalmente para o excesso (v.g., quando busca os prazeres) ou para o defeito (v.g., quando se trata de enfrentar um perigo).

Por outro lado, parece certo que entre os dois extremos que se referem à conduta virtuosa, um deles é mais errôneo do que o outro, em razão de aquilo que é mais natural ao homem não poder ser visto como pior do que aquilo que é o seu extremo oposto. Portanto, tendo ciência de que o alcance do meio-termo é algo extremamente difícil, algumas vezes é necessário se contentar com o menor dos males[7].

Tal consideração não exime o homem do dever de observar de maneira constante aqueles erros para os quais tende com maior facilidade, o que fica claro pelo prazer ou sofrimento que o homem experimenta em determinadas situações.

No caso do prazer proveniente de um determinado alimento, é mais natural ao homem o excesso, visto o prazer que provém de alimentar-se de tal coisa, ao passo que seria menos natural o defeito, visto o pesar que homem sente ao se abster de deleitar-se com determinada coisa.

O homem deve agir buscando o meio-termo, ou seja, a satisfação do seu prazer de forma moderada, sem, no entanto, abrir mão do prazer que sente ao alimentar-se. A busca da moderação desse prazer dependerá de um esforço do homem, coibindo algo que é natural a ele, mas não lhe é o mais adequado, como mostra a razão.   

É importante notar que toda ação voluntária do homem poderá propiciar a fruição de um prazer ou terá como consequência um pesar. Considerando o exemplo desenvolvido anteriormente, seria uma ação moralmente boa o abster-se do excesso. No entanto, a simples consideração de tal ação não seria suficiente para que se pudesse afirmar tratar-se de uma ação virtuosa. Nas palavras de Marie-Dominique Philippe (2002, p. 43):

Entre a ação moralmente boa, causa da virtude, e a ação virtuosa, fruto próprio da virtude, não há diferença específica, e sim um modo mais intenso. Somente a ação virtuosa é deleitável, pois é conatural ao homem virtuoso e facilmente realizável por ele. O virtuoso cumpre com alegria e prazer ações moralmente boas; para os não-virtuosos, essas mesmas ações têm aspectos de dificuldade que impede todo prazer. Por causa disso, é justo precisar que o ato virtuoso é o que concerne ao prazer ou ao seu oposto, a pena. 

 Diante disso, pode-se dizer que o homem virtuoso se coloca como aquele que consegue alcançar o meio-termo sentindo os prazeres e as penas de maneira devida, sendo tal homem digno de louvor pelo fato de viver segundo a reta medida em todas as ocasiões em que é chamado a agir[8].


4) As várias virtudes éticas: a virtude da justiça e sua relevância na vida social

Em seguida Aristóteles examina as várias virtudes éticas, dedicando notável atenção ao tema. Como são vários os aspectos a serem observados na vida social, inúmeras serão as virtudes, bem como inúmeros serão os defeitos (aliás, cumpre notar que a virtude é uma só, bem como a saúde é uma só, ao passo que os vícios ou as doenças podem ser várias). Assim, dentre outras, Aristóteles examina:

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  • a virtude da coragem (EN, III, 6-9, 1115a – 1117b), que tem como extremo a temeridade e defeito a covardia;
  • a virtude da temperança (EN, III, 10-11, 1117b – 1119b), que tem como extremo a intemperança, não existindo um termo específico para o defeito;
  • a virtude da liberalidade (EN, IV, 1, 1119b – 1122a), que tem como extremo a prodigalidade e defeito a avareza;
  • a virtude da magnificência (EN, IV, 2, 1123a), que tem como extremo a vulgaridade e como defeito a mesquinhez, e dentre várias outras;
  • a virtude da justiça (EN, V, 1129a – 1138b), que tem tanto como excesso quanto como defeito a injustiça.

A virtude da justiça se coloca como uma das mais importantes virtudes éticas, chegando mesmo a confundir-se a justiça com a própria ideia de “virtude”. É importante notar que o justo, o meio-termo, poderá se apresentar de diversas maneiras, de acordo com o caso concreto, mas sempre pressupõe a relação com o outro.

Dado que essas relações são várias, mas que haveria uma atitude correta em cada um dos casos, seria possível falar em uma espécie de justiça geral, que englobaria todas essas situações. Além da justiça geral, Aristóteles considera algumas formas de justiça particular, quais sejam: a justiça distributiva, a justiça corretiva, a reciprocidade, a justiça política e a equidade.

A justiça distributiva (EN, V, 3, 1131b) consiste no tratar desigualmente as pessoas desiguais na medida em que se desigualam. Dessa forma, essa espécie de justiça será considerada de acordo com uma proporcionalidade, igualando as situações de desigualdade, visto que a igualdade seria uma injustiça.

A justiça corretiva (EN, V, 4, 1131b – 1132b) se aplica nas transações entre os homens. O justo será determinado de acordo com uma média aritmética, não se procurando uma proporção: os iguais são tratados como iguais, sendo a desigualdade o equivalente à injustiça.

A reciprocidade (EN, V, 5, 1132b – 1134a) difere das outras duas espécies anteriores, pelo fato de considerar uma retribuição proporcional.

A justiça política (EN, V, 6, 1134a – 1135a) é aquela que se manifesta no âmbito da vida social, visto que uma espécie de igualdade deve existir entre os cidadãos.

Por fim, a equidade (EN, V, 10, 1137b – 1138a) se coloca como uma correção da justiça legal. Na medida em que a lei pretende ser universal e não abrange todos os casos concretos, pode-se implementar um determinado caso em que a previsão legal implique em uma situação que não seria a mais justa (no sentido geral do termo, e não legal).

Em outras palavras, a equidade se coloca como a justiça do caso concreto, sendo equitativo “(...) aquele que escolhe e pratica atos equitativos, que não se atém de forma intransigente aos seus direitos, mas tende a tomar menos do que lhe caberia, embora tenha a lei do seu lado” (EN, V, 10, 1137b). 

Em linhas gerais, pode-se dizer que a justiça se apresenta, de forma genérica, como a obediência à lei. Ora, a partir do momento em que se considera que a lei visa à vantagem comum, pode-se afirmar que o ato justo é aquele “(...) que tende a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem” (EN, V, 1129b).

E é justamente nesse sentido se apresenta a grandeza da justiça, visto que se coloca como o bem do outro, uma vez que pressupõe o relacionar-se com o próximo. Nas palavras de Aristóteles (EN, V, 1129b):

Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa, porém não em absoluto e sim em relação ao nosso próximo. Por isso a justiça é muitas vezes considerada a maior das virtudes, e “nem Vésper, nem a estrela-d’alva” são tão admiráveis; e proverbialmente, “na justiça estão compreendidas todas as virtudes”. E ela é a virtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exercício atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também sobre o seu próximo, já que muitos homens são capazes de exercer virtude em assuntos privados, porém não em suas relações com os outros (...) o pior dos homens é aquele que exerce a sua maldade tanto para consigo mesmo como para com os seus amigos, e o melhor não é o que exerce a sua virtude para consigo mesmo, mas para com outro; pois que difícil tarefa é essa. 

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Sobre o autor
João Gabriel Cirelli Medeiros

Juiz Leigo no Estado do Rio de Janeiro. Graduado em Direito e Filosofia pela Universidade Católica de Petrópolis/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, João Gabriel Cirelli. As virtudes éticas em Aristóteles:: a ação moralmente boa, o meio-termo e a justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4778, 31 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50831. Acesso em: 18 mar. 2024.

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