Conta-se que um advogado que se vangloriava de ter sido aprovado no exame da OAB ainda no nono semestre, ao ingressar num escritório de advocacia, foi requisitado pelo chefe a elaborar uma petição de juntada de documentos nos autos de um processo, antes da audiência de instrução. Dias após a incumbência, foi entregue ao chefe, para avaliação, uma petição que se intitulava “ação de petição de juntada”, com direito a citação do réu para “contestar os documentos” e, até, valor da causa. O caso é verídico e mostra como o ensino jurídico para o exame de OAB tem estreita revelação com o caso de “terrorismo soteropolitano” recente.
Explicamos a relação. Primeiro, lembremos o episódio: no domingo deste último final de semana, o exame da OAB ganhou destaque nos noticiários brasileiros. Desta vez, contudo, o foco passou longe da dificuldade da prova, girando em torno do susto provocado por um dos examinandos, o qual, ingressando no recinto onde a avaliação era aplicada, teria assustado os presentes com a ameaça de detonação de bombas.
Passado o tempo da correria, da angústia pela suspensão da prova e dos depoimentos aleatórios de quem conhecia o pretensioso terrorista aprendiz, apurou-se se tratar de um mero contraventor – afinal, as citadas bombas eram apenas balas de gengibre. Apurou-se também que o colega bacharel possuía uma extensa ficha de tentativas de aprovação no referido exame da OAB – 11 edições da prova sendo feitas sem êxito no certame.
Como se nota facilmente, a conduta desesperada do persistente examinando reprovado foi uma desacertada externalização do pânico e frustração proveniente de um fracasso reiterado em suas provas. Obviamente, é algo que não justifica o comportamento, pois não se pode conceber a hipótese de cometimento de atos semelhantes para os milhares que, insistentemente, e até por anos, não alcançam o êxito avaliativo. Em menores graus, contudo, a prova da OAB tem causado constantes desesperos pelos altos índices de reprovação.
Em fevereiro de 2013, de acordo com a OAB, a taxa total de aprovação foi de 10,6%. Dos 114.763 candidatos, somente 11.820 receberão a carteira de advogado (Folha do IAB, n.º 115, março/abril de 2013). Em 2014, pesquisa divulgada pelo grupo organizador do exame, a FGV, apontou que 8 em cada 10 candidatos foram reprovados, em média, no histórico da prova.
Se lembrarmos dos parâmetros escolares do ensino médio, nas escolas públicas ou privadas, variável comumente entre as notas 6 a 7, uma prova que requer para aprovação na primeira fase apenas o acerto de metade das questões (40 questões do total de 80), não se mostra uma prova de metodologia avaliativa exagerada.
É verdade que quase sempre as polêmicas surgem na segunda fase da prova, em decorrência do momento onde o conhecimento é posto a exame prático mediante a confecção de uma peça jurídica. A celeuma do último exame da OAB, na área de direito penal, mostra-nos onde reside o grande problema da reprovação - na segunda fase do exame da OAB na área de direito penal, ocorrida em maio desse ano, a peça jurídica exigida foi a contrarrazão de uma apelação. A peça foi considerada difícil por muitos motivos[1]. O mais ridículo deles foi o de que a peça de contrarrazão da apelação não havia sido ensinada por muitos cursos preparatórios, embora fosse consenso que a peça da apelação tivesse sido objeto de estudo desses mesmos cursos.
Ora, se considerarmos que as razões de uma apelação são os argumentos que visam a modificação de uma sentença (e tais argumentos foram ensinados), por que haveria dificuldade em elaborar uma contra-argumentação pela manutenção de uma sentença (que nada mais é do que a contrarrazão da apelação)? Haveria alguma dificuldade em sustentar a tese de que o céu é azul quando alguém tenta nos convencer de que ele é vermelho? Seria difícil para você, leitor, tentar rebater as ideias de alguém que lhe traz uma opinião contrária sobre seu filme favorito?
Outra falha no argumento é o de que o artigo em que estaria a peça não teria sido apontado pelos cursos preparatórios para o exame da OAB, quando uma leitura atenta permite observar que o artigo 600 do Código de Processo Penal, que fala sobre a peça das contrarrazões da apelação, também é um artigo sobre as razões da apelação – de modo que, quem diz ter estudado as razões não poderia ter se deixado passar sem a leitura desse artigo[2]!!!
Conclui-se, enfim, que reina no ensino jurídico o mau hábito do pragmatismo memorizador de nomenclaturas e artigos, desprovido totalmente da mínima racionalização sobre o que se redige. O aluno de hoje espera ouvir literalmente cada nome de cada instituto e seu artigo correspondente, não para estudá-lo, mas para, sabendo onde está, memorizá-lo sistematicamente. Temos alunos que gravam todas as peças ensinadas em sala de aula e que, porém, são absolutamente incapazes de lidar com questões práticas simples - como uma juntada de documentos, apenas porque não consta nos códigos como se faz tal peça.
Sabemos bem não ser novidade a crise do ensino jurídico. Não é de agora que alunos são submetidos a uma maçante assimilação decorativa de um “conjunto de idéias pré-fabricadas, que servem para lograr um título universitário, mas que não os habilitam para decisões maduras e autônomas” (WARAT; CUNHA, 1977, p. 61, sic).
Esse método de ensino pautado no vômito de dados prontos a ser dado por professores para que seus alunos “engulam pelos ouvidos”, de forma repetida e quase enlouquecedora, disfarçada, às vezes, com regras mnemônicas, é o que Paulo Freire alude como “educação bancária” – uma educação baseada na transmissão de informações técnicas destinadas apenas para um depósito mental e posterior desarquivamento, quando e se for necessário utilizá-los mecanicamente à resposta de questões também já previamente treinadas.
Essa educação bancária a qual se submetem alunos em prol do êxito em provas que mais avaliam a capacidade de memorização do que a de criticidade de conteúdo jurídico despreza totalmente as peculiaridades do cotidiano de trabalho forense, em que profissionais se deparam com problemas muito mais complexos, interdisciplinares e confusos do que aqueles vistos nas provas, cujo emaranhado da “questão trazida pelo cliente” não possibilitará a interposição de um recurso para aclarar ou anular os fatos do enunciado, muito menos a resposta será encontrada num artigo do vade mecum ou informativo da jurisprudência. Na vida forense aprende-se que não há bancas examinadoras para aclarar situações-problema, tampouco itens alfabéticos para se marcar a resposta. É uma prova cruel que vale mais do que um título ou um cargo – vale a vida do jurisdicionado.
E nesse ciclo vicioso, “quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.” (FREIRE, 2005, p. 68).
Nesse ponto, talvez, reside a grande crise do ensino jurídico que prepara advogados, promotores e juízes decoradores de leis e de jurisprudência, mas incapazes de ir mais além disso. Prepara-se para o exame, da OAB ou de qualquer outro concurso público, mas não há um preparo para o que realmente constitui a complexidade dos conflitos sociais.
Funciona como um escravismo psicológico do aluno, o qual, após anos e anos treinando questões e memorizando discursos metódicos de seus professores sobre como driblar questões de prova, mesmo após ganhar o cargo ou posto almejado, não sabe mais ser outra coisa senão aluno. Entretanto, já com o sonhado posto garantido, sem questões a resolver ou aulas a assistir, o mundo inóspito da vida forense o força a responder de modo diferente aos problemas, exigindo mais crítica e menos memória. Não tendo sido ensinado a pensar fora dessa redoma, aos problemas postos à sua apreciação o profissional do direito responderá como se estivesse frente a mais uma questão de prova, onde julgar uma declaração ou fato como verdadeiro ou falso, ou achar o dispositivo legal correto para aplicar, é a resolução fiel do problema[3].
E quanto àqueles que não se adaptam ao rigor do sistema de memorização? Esses, incapazes de satisfazer as exigências de avaliações que exigirão o árduo esforço de lembranças da literalidade de entendimentos jurídicos, estão fadados ao insucesso e à repetição da prova, até que ela se torne tão frustrante que o vença pelo cansaço... ou o enlouqueça pela frustração.
Um ensino jurídico melhor exige uma reflexão conjunta entre as instituições de ensino e seus ensinados. Ementas disciplinares e métodos que avaliam conteúdos absurdamente abstratos, desmuniciados de criticidade e divorciados da realidade forense são máquinas do tempo para retroceder o aprendizado. Como acidamente pontua Fávero (2011, p. 66), em casos assim, “a mente do aluno se transforma em um verdadeiro 'samba do crioulo doido', marcada pela inexistência de clareza quanto ao sentido do que se deve ser estudado e à razão de ser de cada disciplina, programa e bibliografia”.
O problema notoriamente não está na existência de um exame prévio para a admissão nos quadros da função jurídica, como a advocacia. Pelo contrário[4]. Em diversos países, no mundo inteiro, provas como a da OAB brasileira são realizadas à busca da qualidade profissional. O ponto problemático está na forma da cobrança da avaliação, a qual barra apenas “os piores dos piores”, ainda permitindo o exercício da advocacia, por exemplo, por aqueles incapazes de realizar uma petição de juntada.
O filtro precisa ser aperfeiçoado. E, enquanto esse ensino jurídico não for reformulado, sempre estaremos à mercê de examinandos frustrados, ora portando balas de gengibre, ora bombas mortais.
Entretanto, o verdadeiro terrorismo estará muito além das pessoas desses examinandos. Nesse aspecto, eles também serão vítimas do terror de péssimos filtros avaliativos.
REFERÊNCIAS
FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade e estágio curricular: subsídios para discussão. In: ALVES, NILDA [org.]. Formação de professores: pensar e fazer. 11 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 43ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
WARAT, Luiz Alberto; CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. Ensino e saber jurídico. Rio de Janeiro: Eldorado, 1977.
Notas
[1] A questão pedia que o candidato, advogando em favor do Réu, apresentasse uma peça defensiva ao recurso de apelação do Ministério Público, onde se pedia o agravamento da pena ao Réu. Pois bem. Houve quem alegasse que a banca deveria considerar correta a peça de razão de apelação a ser feita - como se fosse logicamente possível apelar como forma de se defender de outra apelação! Não é preciso ser formado em direito para entender que, se alguém argumenta algo em seu desfavor, a melhor forma que se tem para evitar seu prejuízo é... contra-argumentar! Consequentemente, se alguém apresenta uma peça de razão de apelação para prejudicar você, enquanto réu, não faz todo sentido... contrarrazoar?
[2] Poupe-se, leitor, do argumento de que a palavra “contrarrazão” não aparece no texto do CPP. A lei em tela é de 1941, onde a terminologia não é muito adequada ao padrão de hoje. O novo CPC traz a expressão “contrarrazão” dez vezes em todo o seu texto e é claro ao se referir que o apelado a apresentará (art. 1010). Se alguém não pode assimilar que a parte prejudicada pelas razões de uma apelação apresentará uma peça CONTRÁRIA (daí se chamar CONTRArrazões), realmente, não pode estar mentalmente apto a realizar qualquer avaliação que seja de nível superior ao do ensino primário.
[3] Não é à toa que a expressão “operadores do Direito” tem feito tanto sucesso. A vida no cotidiano forense se tornou como a esteira da Ford, onde os problemas passam pelos operários à procura do encaixe perfeito daquele parafuso feito de lei ou de entendimento jurídico previamente aprendido na sala de aula e, agora, lembrado na esteira de montagem do direito em um processo judicial.
[4] Se você, leitor, chegou até aqui e achou que o entendimento deste articulista é o fim do exame da OAB, é melhor ler com mais calma o texto novamente, sob pena de cometer grave interpretação contrária ao núcleo essencial das ideias aqui colocadas.