Não de pode negar que a Lei nº 10.792/03 introduziu importantes e pertinentes mudanças no concernente ao regime jurídico do Interrogatório Judicial do Acusado, ato processual pelo qual o acusado dispõe da oportunidade de apresentar pela primeira vez, diretamente ao Estado-Juiz, sua versão em torno dos fatos delituosos lhes imputados pelo Estado-acusação.
Pode-se dizer, em resumo, que naquele momento do processo penal o acusado pode negar o que a ele foi imputado, indicando, se for o caso, as provas que pretenda produzir, ou então pode confessar, se assim bem entender, a prática do crime. Isto sem falar que a Carta Magna reservou-lhe até mesmo o direito de permanecer em silêncio (Art. 5°, LXIII,CF).
Inserido no Capitulo III, do Título VII, do Código de Processo Penal, especificamente quando o predito diploma cuida do tema "prova", no passado o interrogatório do acusado foi considerado pelo legislador ordinário como meio de prova, enquanto que a doutrina majoritária, além de visualizá-lo meio de prova, compreendia que ele configurava um lídimo ato de defesa.
De seu turno, a partir do tratamento legal originariamente dispensado a tal figura, sustentava-se que o interrogatório tinha a natureza de um ato solene, formal e personalíssimo, cujos atores seriam exclusivamente o magistrado e o imputado. Nele não se admitia, portanto, a interferência da defesa técnica, porquanto o acusado somente tinha oportunidade de indicar o patrono de sua defesa ou o direito de lhe ser nomeado defensor dativo, isto ao final de tal ato processual.
Com efeito, a ausência das partes (Ministério Público e Advogado patrocinador da defesa), ou de uma delas, ao suceder aquele ato, não tinha o condão de nulificá-lo. Aliás, em regra, elas não se faziam presentes por ocasião da realização do interrogatório.
Em virtude do que foi dito, não há exagero algum em asseverar que a legislação processual penal pátria, recepcionada pela novel Carta Política de 1988, até a edição da Lei nº 10.792/03 não admitia no ato de interrogatório do acusado a aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa, segundo a amplitude concedida pelo art. 5°, LV, do vigente texto constitucional.
Todavia, cabe ressaltar que a situação a que acabou de referir nunca foi aceita à unanimidade pelos doutrinadores pátrios. Aqui é bom salientar que alguns poucos juristas chegaram a interpretar o citado princípio constitucional (ampla defesa e contraditório) no sentido de que ele deveria ser adotado até mesmo na fase inquisitória, posição esta da qual discordamos plenamente, concessa venia¸ haja vista que aquela fase investigatória comparece como instante meramente preparatório da acusação, representando assim um levantamento de indícios que poderão instruir ou não a denúncia formal.
Certo é que, mesmo diante da censurada escusa legal de ser o interrogatório judicial ato privativo do Juiz (art.187, CPP anterior), sem a intervenção das partes, nem todos os magistrados acatavam dita orientação.
Na verdade, não faltam registros, tanto na doutrina como e jurisprudência pátria, evidenciando que algumas autoridades judiciais, de forma louvável e independente, conjugavam o princípio constitucional do contraditório com o princípio processual da verdade real, advindo como resultante de tal interpretação sistemática o reconhecimento da possibilidade de haver a intervenção das partes no ato de interrogatório do acusado, desde que mantida a isonomia processual.
Destarte, decorridos mais de quatorze anos da vigência da Constituição Federal, o legislador ordinário, iluminado por um dos onze anteprojetos elaborados por uma comissão de juristas de escol, dentre os quais, a douta Professora Ada Pellegrini Grinover, resolveu reformar o Código de Processo Penal, relativamente ao Interrogatório Judicial do Acusado, com o desiderato de adequar este importante ato processual ao festejado princípio constitucional do contraditório e ampla defesa (art. 5°, LV)
Com o novo regramento ratificou-se, expressamente, o direito à defesa técnica do acusado já na fase do interrogatório. Em total consonância com o modelo de processo penal delineado pelo Estado Constitucional e Democrático de Direito inaugurado com a CF/88, passou-se a admitir a franca possibilidade de o acusado trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade, e não apenas permite-lhe calar.
Tais modificações verificadas no Código de Ritos Penais pátrio merecem uma análise detida, até porque de há muito a comunidade jurídica ansiava por elas, devido à existência de alguns dispositivos naquele diploma legal (CPP) considerados discrepantes do ordenamento jurídico inaugurado pela novel Carta Política de 1988, sobretudo no tocante ao princípio do contraditório e amplo defesa, corolário obrigatório do devido processo legal.
Acontece que o mencionado princípio da ampla defesa e do contraditório, configurando dupla tutela ao indivíduo, projeta-se tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal. Por intermédio dele assegura-se ao acusado a paridade total de condições ofertadas ao Estado-acusador. Isto é implementado ao se garantir a plenitude do exercício do direito de defesa, que necessariamente reclama a publicidade do processo, a regular citação, a possibilidade de ampla produção de provas etc., podendo chegar até à revisão criminal.
Em primeiro lugar, impõe-se evidenciar a imposição legal trazida pelo art. 185, e parágrafo 2° do CPP, referente ao patrono da defesa do acusado, quer constituído, quer nomeado. A partir da referida alteração, o acusado deve ser interrogado e qualificado na presença de tal profissional, sendo que, antes de se iniciar este ato processual, o magistrado é obrigado formalmente a conceder ao defensor o direito de entrevista reservada com o acusado, ato este que se presta a permitir o oferecimento de alguma orientação com vistas a adequar a auto-defesa à defesa técnica.
Aliás, aquela faculdade já era assegurada ao advogado através do art. 7°, III, da Lei n° 8.906/94 (Estatuto do Advogado), sendo que tal permissibilidade não se apresentava de modo tão explícito tal como restou transcrito explicitamente na predita norma processual., especificamente quanto ao interrogatório do acusado.
Diante dessas clarividentes modificações, conclui-se, à vista desarmada, que por ocasião do interrogatório judicial, se ausente uma das partes (advogado ou Ministério Público), ou até mesmo, o defensor constituído (particular) pelo acusado, e este exigir ser interrogado somente na presença daquele, não é recomendável a realização deste interrogatório, mediante nomeação de defensor dativa.
Explica-se: a escolha do defensor afigura-se como um autêntico direito subjetivo e inafastável do acusado, que pode ser tida como integrante do princípio que garante a ampla defesa.
Além do mais, deve haver uma estreita relação de confiança entre o acusado e o profissional eleito para ouvir suas confissões e utilizar todos os recursos em direito admissíveis para garantir o seu indisponível direito à liberdade.
Logo, o descumprimento de tais comandos legais, quer quanto à escolha de seu defensor, quer no tocante a prévia entrevista com o acusado (orientação jurídica – defesa técnica), acarretará nulidade absoluta, por preterição de formalidade essencial nos termos do art. 564, III, do CPP.
Ainda em busca da aplicação plena do princípio do contraditório no interrogatório judicial, o legislador ordinário viabilizou à acusação e à defesa a possibilidade de participação ativa e efetiva na colheita dessa prova, formulando perguntas ao acusado, conforme bem vislumbra o artigo 188, caput, do CPP, cuja nova redação é a seguinte, verbis:
"Art. 188 –Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante."
Com efeito, o interrogatório do acusado deve transcorrer com as mesmas garantias constitucionais exigidas para a produção da prova testemunhal, o que muito vai contribuir para aperfeiçoar a instrução criminal e, por via de conseqüência, reforçará o primado da busca da verdade real.
Por outro lado, convém esclarecer que embora cabendo ao magistrado apreciar a pertinência e relevância dos fatos indicados pelas partes, para depois fazer ou não ao acusado as perguntas correspondentes... (art.188, parte final, do CPP), isso não inviabilizará a aplicação do princípio do contraditório e ampla defesa. É que mesmo em plena audiência de instrução criminal, quer na oitiva das testemunhas arroladas pela acusação, quer quando da ouvida das testemunhas trazidas pela defesa, aquela autoridade judicial, na condição de legítimo presidente do feito criminal, não só pode como deve indeferir intervenção das partes consideradas impertinente e irrelevante aos fatos cuja verdade se esteja apurando.
Entretanto, vale registrar que é assegurado à parte que se sentir prejudicada o direito de requerer que tal indeferimento seja constado do termo de audiência, à guisa de garantia da ampla defesa, abrindo-se, pois, a possibilidade de interposição de Recurso adequado perante a Instância Superior.
Destaque-se ainda nas aludidas mudanças à divisão do interrogatório judicial em duas partes. A primeira reporta-se sobre a pessoa do acusado (art. 187 , §1°, do CPP), principalmente quanto a qualificação (colheita dos dados oficiais a relativa a identificação de uma pessoa, tais como, nome, naturalidade etc). Essa medida, além de procurar inibir o acusado a falsear seus dados de identificação, visa a permitir uma futura individualização da pena. A segunda relaciona-se com os fatos atribuídos a acusado, ou seja, interrogatório de mérito (art. 187, §2°, incisos I a VIII do CPP)
Por outro turno, é de se questionar a aplicabilidade do §1° do art. 185, do CPP, em relação à possibilidade de realização de interrogatório em estabelecimento prisional, isto se for levado em conta os seguintes aspectos: insegurança do local e objetivo desejado (celeridade processual).
Ocorre que é público e notório que os presídios brasileiros constantemente promovem rebeliões de toda a sorte, fato este que per se demonstra a insegurança total daqueles locais. Sempre que acontecem motins de tal ordem, tanto a comunidade carcerária quanto a própria segurança prisional e, por conseguinte, a própria polícia convocada a combater aquela desordem, todos ficam vulneráveis.
À vista disso, o deslocamento de juízes, auxiliares da justiça ou qualquer pessoa do povo, a fim de participar de audiência de interrogatório (princípio da publicidade) em presídio, sem dúvida, representará visível risco, vez que tais pessoas são alvos naturais dos reclusos de alta-periculosidade e sem esperança de liberdade, para serem usadas como reféns conforme ocorreu no IPPS com Dom Aloísio de Lorscheider e outras autoridades cearenses.
A reforma em tela igualmente resolveu pôr fim à tormentosa polêmica acerca do instituto da curatela criminal ao acusado maior de 18 anos e menor de 21 anos, surgida com o advento do novel Código Civil (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002) que reduziu a maioridade civil de 21 anos para 18 anos de idade.
Influenciado por esta mudança legal, o legislador ordinário, por meio do art. 10 da Lei n° 10.792, de 1/12/03, revogou expressamente o art. 194 do CPP, dispositivo este que recomendava a nomeação de curador quando do interrogatório judicial de acusado com mais de 18 anos e com menos de 21 anos.
Em decorrência daquela revogação expressa entende-se que a previsão contida no art. 15 do CPP, que cuida da nomeação de curador ao indiciado, logicamente quando da lavratura de auto de prisão em flagrante, restou revogada tacitamente. Diga-se o mesmo com relação ao art.34 do CPP, que disciplinava o direito concorrente de Representação e início do prazo de Representação.
Em conclusão, tem-se que, afora o questionamento relativo da realização de interrogatório em estabelecimento prisional, as demais mudanças efetivadas no instituto do interrogatório do acusado, que à luz da legislação processual vigente, além de meio de prova passou a ser considerado meio de defesa, vieram em boa hora.
Isto porque tais alterações irão espancar uma série de controvérsias doutrinárias e jurisprudências. Ademais, ao ampliar, na esfera criminal, o canal de produção de provas em busca da verdade real, prescrição esta que por sua vez é chancelada pelos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, caminhou-se na ajustada direção de harmonizar o processo penal brasileiro com o Estado Constitucional e Democrático de Direito plasmado na CF/88.