Resumo: Analisar a propriedade como direito fundamental sob a ótica de John Locke. A propriedade, alçada à condição de direito fundamental em vários ordenamentos jurídicos estatais, passou por várias reinterpretações, fazendo parte de um processo histórico de construção. Em John Locke, pode ser visualizada como um direito natural de origem divina, fundamentada pelo trabalho do homem e se relacionando com as ideias de estado de natureza, contrato social e sociedade civil. O direito de propriedade pode ser encarando num sentido amplo e estrito, segundo a visão de John Locke, ultrapassando a ideia de bens materiais. A teoria da propriedade lockeana se desenvolveu no seio de um período de combate ao absolutismo e advento do liberalismo, que coroou a ascensão da burguesia. O direito de propriedade conta, hoje, com novas limitações e sujeições, mas se encontra garantido na ordem constitucional dos Estados como um direito fundamental.
Palavras-chave: Propriedade. Direito fundamental. Direito natural. Trabalho. Liberalismo.
1. INTRODUÇÃO
A propriedade tem sido alocada como direito fundamental em vários documentos jurídicos, recebendo, a depender da ordem jurídica de determinado Estado, uma forma de regulamentação diversa. Encarado como direito fundamental, o conteúdo e as limitações do direito de propriedade vão sendo revisitados e repensados constantemente, pois a característica de historicidade dos direitos fundamentais indica que os mesmos são “o resultado de um processo histórico (processo de construção)” que conduz à sua reinterpretação a partir de novos contextos ou novas realidades sociais. (FERNANDES, 2014, p. 331).
O ponto central deste trabalho será a análise da concepção de John Locke sobre a propriedade. Esta será encarada a partir da ótica de um pensador da filosofia política do século XVII que é considerado como um dos primeiros – senão o primeiro – a proclamar os direitos do homem. Desse modo, serão expostas as características do direito de propriedade, bem como seu fundamento na visão lockeana, sem descuidar do contexto histórico no qual Locke viveu.
Ademais, tais ideias serão confrontadas com as concepções jurídicas modernas acerca da propriedade, de forma que se estabeleça o pertinente intercâmbio entre o mundo jurídico e a concepção filosófica originária acerca da propriedade.
2. DIREITO DE PROPRIEDADE EM LOCKE
2.1. Registro histórico
Como ponto de partida, cabe fazer menção ao contexto no qual John Locke desenvolveu sua teoria da propriedade, posto que o momento histórico influenciou o desenvolvimento de suas ideias. A obra de John Locke está inserida no contexto das revoluções inglesas do século XVII, ou seja, período de tensões políticas marcado pela contraposição entre absolutismo e liberalismo. Opositor do absolutismo defendido pela Coroa inglesa, sobretudo no período da dinastia dos Stuart, Locke direcionou-se para uma visão liberal, contribuindo, através de suas obras, para o estabelecimento das bases teóricas do Estado Liberal.
Refugiou-se na Holanda durante determinado período por ter se envolvidos supostos conspiradores da Coroa inglesa, retornando à Inglaterra no mesmo navio de Guilherme de Orange, aquele que viria a ser o símbolo da consolidação da monarquia parlamentar inglesa. Tornou-se, posteriormente, o teórico da revolução liberal inglesa. “Suas ideias políticas fecundaram todo o século XVIII, dando o fundamento filosófico das revoluções liberais ocorridas na Europa e nas Américas.” (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 304).
Entre suas principais obras, destacam-se os dois tratados sobre o governo civil. No segundo desses tratados é que estão consubstanciados a origem, extensão e objetivo do governo civil. As bases do direito de propriedade passariam a ser construídas na sua obra.
2.2. Delineamentos do direito de propriedade: características, fundamento e desdobramentos
Locke revelou, através de seus escritos, o seu modelo jusnaturalista, sendo, por essa razão, considerado um dos importantes representantes do direito natural. No sistema de direitos naturais proposto pelo pensador é que se insere a teoria da propriedade, diretamente relacionada com a concepção que Locke tinha do trinômio estado natural/contrato social/estado civil, relações que merecem a devida explicação.
O estado de natureza para Locke era caracterizado por ambiente de relativa paz e harmonia, no qual os homens detinham plena liberdade e igualdade. Segundo Leonel Itaussu Almeida Mello (2006, p. 84-85):
Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza.
Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano.
Como se depreende da citação, a propriedade é preexistente à instituição da sociedade civil, estando ligada diretamente à cada indivíduo. Observa-se, justamente nesse ponto, a relação que existe entre a teoria da propriedade e o estado de natureza: como a propriedade precede à sociedade civil, ela já se fazia presente no próprio estado de natureza; a liberdade tão característica desse estado pré-social vai estar contida no próprio conceito de propriedade.
A propriedade para Locke, portanto, pode ser encarada sob duas acepções. Primeiramente, pode se falar em propriedade num sentido amplo, segundo o qual ela designa, de forma simultânea, tanto a vida, quanto a liberdade e os bens do ser humano, ou seja, é “tudo o que pertence a cada indivíduo” sendo que “a primeira coisa que a pessoa possui, portanto, é o seu corpo: todo indivíduo é proprietário de si mesmo e de suas capacidades” (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 305). De outro lado, a propriedade, em sentido estrito, remete à posse de bens móveis ou imóveis.
Em suma, Locke coloca a propriedade como um direito natural, ou seja, um direito inerente ao homem, dele não se destacando. Segundo o filósofo:
cada homem tem uma ‘propriedade’ em sua própria ‘pessoa’; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. Podemos dizer que o ‘trabalho’ do seu corpo e a ‘obra’ das suas mãos são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. (MELLO, 2006, p. 94).
Para complementar, Locke atribuiu à propriedade uma origem divina, visto que Deus teria instituído, “no momento de criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho” (CHAUÍ, 2007, p. 207). Era a efetivação da propriedade como direito natural de origem divina.
Outra decorrência do pensamento de Locke, no contexto da teoria da propriedade, é a indicação do trabalho como fundamento da propriedade. Ao mesmo tempo que é fundamento, o trabalho também é forma de aquisição da propriedade pelo homem:
O trabalho de seu corpo é propriamente dele; portanto, o trabalho dá início ao direito de propriedade em sentido estrito (bens, patrimônio). Isso significa que, na concepção de Locke, todos são proprietários: mesmo quem não possui bens é proprietário de sua vida, seu corpo, seu trabalho e, portanto, dos frutos do seu trabalho. (ARANHA; MARTINS, 2009, p. 305).
Segue-se o fato de que:
o trabalho exercido pelo homem constitui sua propriedade, assim como os frutos que dele obtiver. É primariamente a partir do trabalho que o homem consegue sair de sua carência inercial para alcançar bens que saciem suas necessidades básicas (LEAL, 2012, p. 54).
Conquanto Locke tenha delineado o estado de natureza como um ambiente de paz, igualdade e coexistência de liberdades, ele não estava imune à algumas perturbações na sua ordem harmônica, pois poderiam ocorrer violações aos direitos das pessoas. Não havia, nesse estágio, o necessário amparo e segurança tendentes a salvaguardar o direito à propriedade de transgressões pelos outros indivíduos. Assim é que evidenciou-se a necessidade do estabelecimento do contrato social para conter os inconvenientes do estado de natureza.
O contrato social é o instrumento que marca a passagem do estado de natureza para a sociedade civil. Essa sociedade civil nasce com o objetivo de, justamente, propiciar a proteção da propriedade e da comunidade dos perigos internos e externos. Logo, aqui se revela a relação existente entre a propriedade e outras duas ideias trabalhadas por Locke: relação entre a propriedade e o contrato social e relação entre propriedade e sociedade civil. As duas relações entram em contato, pois a sociedade civil nasce como forma protetiva da sociedade e o instrumento apto à fazer a transição entre o estado de natureza e o estado civil é o contrato social.
Nas palavras de Roger Stiefelmann Leal (2012, p. 54):
a garantia da propriedade acaba por configurar o principal móvel e estímulo à produção e, portanto,ao desenvolvimento econômico. Em termos jurídicos, sua segurança e estabilidade promovem, nessa linha, a necessária valorização do trabalho enquanto atividade humana.
A propriedade estaria, assim, melhor protegida pelos elementos que constituem o estado civil, vez que neste “os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário”. (MELLO, 2006, p. 86).
Sintetizando, com outras palavras, a relação entre propriedade e os outros temas trabalhados por Locke (como estado de natureza, sociedade civil, contrato social e jusnaturalismo), ARANHA e MARTINS (2009, p. 304-305) explicam com precisão:
Assim como Hobbes e posteriormente Rousseau, Locke partiu da concepção pela qual os indivíduos isolados no estado de natureza unem-se mediante contrato social para constituir a sociedade civil. Segundo essa teoria, apenas o pacto torna legítimo o poder do Estado.
Diferentemente de Hobbes, porém, Locke não descreve o estado de natureza como um ambiente de guerra e egoísmo. O que então levaria os indivíduos a abandonar essa situação, delegando o poder a outrem? Para Locke, no estado natural cada um é juiz em causa própria; portanto, os riscos das paixões e parcialidade são muito grandes e podem desestabilizar as relações entre os indivíduos. Por isso, visando a segurança e à tranquilidade necessárias ao gozo da propriedade, todos consentem em instituir o corpo político.
Locke segue a tendência jusnaturalista e, nesse sentido, está convencido de que os direitos naturais humanos não desaparecem em consequência desse consentimento, mas subsistem para limitar o poder do Estado. Justifica, em última instância, o direito à insurreição: o poder é um trust, um depósito confiado aos governantes – trata-se de uma relação de confiança –, e, se estes não visarem ao bem público, é permitido aos governados retirar essa confiança e oferecê-la a outrem, posição que distingue Locke de Hobbes.
A propriedade, além de possuir fundamentos próprios que o colocam na categoria de direito natural, segundo Locke, serve de fundamento de legitimação tanto dos governos instituídos dentro da sociedade civil, qualquer que seja a sua forma, quanto da burguesia que, além de poder econômico, buscava afirmação do campo político. Para isso, seria necessário o desenvolvimento de uma teoria de legitimação que viesse sistematizar ideais burgueses e, simultaneamente, romper com o regime absolutista. Marilena Chauí (2007, p. 207) bem representa o que significou, no contexto do final do século XVII, o desenvolvimento da teoria da propriedade lockeana:
No pensamento político de Hobbes e de Rosseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, esmo que no estado de natureza (em Hobbes) e no estado de sociedade (em Rosseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa possa é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.
De fato, embora o capitalismo estivesse em via de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.
Seguiu-se que as ideias de Locke serviram de inspiração para movimentos revolucionários que deflagraram no decorrer do século XVIII. Entre esses movimentos, destaca-se o constitucionalismo, que buscou a consolidação de princípios e instrumentos direcionados à limitação do poder estatal, de forma que fosse possível assegurar as liberdades mais basilares do homem. Segundo, passou-se “a reconhecer a existência de direitos que derivam da própria natureza humana. Seriam direitos universais, pois (a) inatos à condição de pessoa humana e (b) fundantes da constituição do Estado” (LEAL, 2012, p. 55). Tais direitos passaram a integrar importantes documentos que resultaram dos movimentos revolucionários aos quais se fez menção. Foram as declarações de direitos que vieram consolidar a ideia de direitos humanos, atribuindo aos direitos naturais certo caráter normativo, ou seja, o que era considerado direito natural também passou a ser considerado “direitos humanos” (do ponto de vista terminológico, apenas os últimos possuem dimensão normativa, visto que estão garantidos em documentos jurídicos internacionais). Com base em Manoel Gonçalves Ferreira Filho, preleciona Roger Stiefelmann Leal (2012, p. 55) que:
tais documentos são denominados “declarações” pois não estariam a instituir ou criar direitos. Sua finalidade resume-se a declará-los, reconhecê-los, na medida em que emanam da própria natureza humana, constituindo realidade prexistente ao Estado e à sociedade.
Especificamente no que se refere ao direito de propriedade trabalhado por Locke, o autor pontifica que:
A propriedade é inserida justamente no âmbito desses direitos. Considerada, a partir das lições de John Locke (1963), como direito vinculado às ideias de liberdade e de trabalho, a propriedade passou a constar de tais declarações como direito fundamental, inato à pessoa humana. Assim, a Declaração da Virgínia, ao anunciar, em seu art. 1o, os direitos certos, essenciais e naturais do homem, indica o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Por seu turno, o art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ao discriminar os direitos naturais e imprescritíveis do homem, estabelece: esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Já o art. 17. da mesma Declaração reitera a mesma ideia, agregando, ainda, a seguinte disposição: como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado (...). (LEAL, 2012, p. 55).
Posteriormente conclui que:
Tal orientação concebe a propriedade, a exemplo da liberdade, como direito do homem – pois inerente à condição humana – precedente, portanto, ao Estado. Comporia o conjunto de direitos que se encontram na base da ordem política, que constituem seu fundamento, seus direitos fundamentais. (LEAL, 2012, p. 55).
O estabelecimento da propriedade como direito natural, na doutrina de Locke, encontra-se influenciado por um ideário liberal, marcado por um enfoque individualista. John Locke é associado ao individualismo liberal, concepção filosófica regada por um contexto histórico de luta contra o absolutismo. Nessa época, buscou-se a limitação do poder do Estado, de forma que este deveria assumir uma posição negativa perante as liberdades do homem. No entanto, essa tese, por ser individualista, se distanciou da chamada igualdade material.
Como crítica à liberdade propugnada por Locke, ARANHA e MARTINS (2009, p. 305) ressaltam que: “a concepção ampla de liberdade leva, entretanto, a certas contradições, pois o direito à ilimitada acumulação de propriedade produz um desequilíbrio na sociedade, criando um estado de desigualdade.”
Essa desigualdade foi sentida por Locke a partir da inserção do dinheiro na vida social, ocasionando o advento de uma propriedade ilimitada. Já que os governos não deveriam fixar mecanismos de limitação e regulação da propriedade, deixando esse desiderato para tão somente para o fator trabalho, verificou-se, na prática, um rumo que conduziu à desigualdades. Segundo MELLO (2006, p. 85):
Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, que, além do trabalho, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou, finalmente, à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.
Atualmente, os Estados modernos têm estabelecido certos limites ao direito de propriedade, que visam precipuamente à sua utilização sustentável e produtiva, de forma a evitar, justamente, sua banalização. No Brasil, por exemplo, fala-se em função social na propriedade, ou seja, o direito de propriedade é garantido à todas as pessoas, desde que seja atendida a função social: respeito ao meio ambiente, conformação às políticas urbanas, etc.
Em suma, Locke, ao caracterizar a propriedade como direito natural de origem divina e fundamentado pelo trabalho humano, lançou ideias que foram reinterpretadas com o decorrer do tempo. Possibilitou-se, através das transformações da sociedade e, consequentemente, do direito, que a propriedade tivesse uma melhor regulação. O Estado passou, de outra feita, a adotar uma posição mais ativa, intervindo para que aquela “propriedade ilimitada” que Locke verificou não perpetuasse sem que nenhuma atitude política ou regulação jurídica fosse imposta.
Ademais, a visão da propriedade em sentido amplo não restringe seu conteúdo à mera acumulação de bens móveis e imóveis. Daí que se fala em propriedade intelectual, propriedade industrial e outras categorias que são, hoje, tuteladas pelo direito. Muitas características dos direitos fundamentais podem ser constatadas na teoria da propriedade lockeana, mesmo que essas características, em tal época, tão tivessem a mesma amplitude ou formulação que possuem hoje, segundo a teoria dos direitos fundamentais. Seja no direito civil, seja no direito constitucional, podem ter sido os primeiros delineamentos de Locke que inspiraram a construção de novos conceitos e ideias.
3. PROPRIEDADE E A QUESTÃO TERMINOLÓGICA ENTRE DIREITOS NATURAIS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Segundo Bernardo Gonçalves, muitos autores utilizam as expressões direitos fundamentais e direitos humanos como sinônimas. O termo direitos humanos acabaria atraindo uma carga semântica (de significação) muito aberta, gerando associações entre direitos humanos ou direitos do homem e os direitos naturais. Segundo o autor, tal situação “se deve à força de tradição jusnaturalista, que concebia nos direitos humanos ou direitos do homem a forma materializada (quer por Deus, quer pela razão humana) dos chamados direitos naturais”. (FERNANDES, 2014, p. 305-306)
Percebe-se que Locke dá à propriedade a qualificação de direito natural, já que era fortemente influenciado pelo jusnaturalismo. Na verdade, “o termo direitos fundamentais aparece na França do século XVIII, no curso do movimento político-cultural que levou à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789” (FERNANDES, 2014, p. 306). Na época em que Locke delineou o conteúdo do direito de propriedade, portanto, a remissão ao termo direito natural seria totalmente compreensível se for considerado que o termo direito fundamental está atrelado ao constitucionalismo do século XVIII, possuindo um significado e uma fundamentação distintos dos chamados “direitos naturais”.
Com a expansão da utilização da expressão “direitos fundamentais”, encontrou-se no pensamento alemão do século XIX, uma definição que poderia distingui-los dos direitos naturais: passou a se falar que os direitos fundamentais são os direitos humanos (ou “do homem”) que passaram por um processo de positivação (FERNANDES, 2014, p. 306).
Em síntese, Bernardo Gonçalves (2014, p. 307), realizando a distinção terminológica entre direitos do homem (ou direitos naturais), direitos humanos e direitos fundamentais, assevera que: direitos do homem, no sentido de direitos naturais, correspondem àqueles não positivados ou ainda não positivados; direitos humanos são aqueles reconhecidos e positivados na esfera do direito internacional; e os direitos fundamentais são aqueles direitos positivados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado. Como se percebe, o plano de positivação é alçada à critério de diferenciação, de forma de direitos humanos e direitos fundamentais possuem uma dimensão normativa, diferenciando-se no que concerne à positivação: os primeiros estão plasmados em documentos jurídicos internacionais e os últimos estão assegurados na ordem interna de cada Estado.
Dessa forma, considerando a distinção terminológica apontada e inserindo o direito de propriedade da concepção lockeana no âmbito dos direitos naturais, poder-se-ia considerá-lo como um direito do homem, com baixa densidade normativa e sem garantia na ordem jurídica. Seria, antes de tudo, um direito imprescindível à condição do homem.
Algumas ideias da teoria da propriedade lockeana, no entanto, as aproximam de algumas das características que a moderna doutrina constitucionalista associa aos direitos fundamentais.
O primeiro contato seria com a universalidade. Locke asseverava que todo homem é proprietário de si mesmo: mesmo que não possuísse bens, seria detentor do próprio corpo e da própria liberdade. Assim, o direito de propriedade alcançaria a todos indistintamente.
Além da universalidade, o direito de propriedade seria caracterizado também pela inviolabilidade. A sociedade civil, para Locke, nasceu justamente para a proteção da propriedade, de forma que fossem evitadas quaisquer transgressões por particulares. Até mesmo o governo estaria impedido de violá-la, posto que se o fizesse, ele iria adquirir a “pecha de ilegal e degenerado em tirania”. Essa ideia muito se aproxima da que existe hoje para a inviolabilidade, ou seja, que os direitos fundamentais “não podem ser violados por atos do Poder Público, sob pena de nulidade dos mesmos e nem mesmo por particulares na ótica de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas”. (FERNANDES, 2014, p. 330). A propriedade é, então, relação jurídica entre o proprietário e todos os não proprietários, exigindo-se dos últimos um dever de abstenção. Já nota-se em Locke essa característica
A complementariedade e a interdependência também se relacionariam ao direito de propriedade para Locke. Já que este colocava dentro do conceito de propriedade, em sentindo amplo, a vida e a liberdade, estaria por afirmar que todos esses elementos deveriam ser vistos em conjunto, num todo articulado e inerente à condição humana.
A historicidade também caracteriza o direito de propriedade. Os direitos fundamentais são afirmados e consolidados por um contínuo processo histórico de construção. Nesse ponto, o elemento do trabalho que Locke tanto faz uso, constitui o fator de dinamismo do direito de propriedade, atribuindo à este um caráter de mutabilidade.
Por fim, cabe avivar que os termos direitos do homem (ou direitos naturais), direitos humanos e direitos fundamentais não são excludentes entre si, de forma que determinado direito pode se encaixar em todos os conceitos. É por isso que a propriedade, apesar de estar filosoficamente assentada da doutrina jusnaturalista, pode, ao mesmo tempo, estar garantida na ordem jurídica de determinado Estado e na ordem jurídica internacional.