1. Introdução. 2. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho. 2.1. Evolução histórica. 2.2. A exigência de anuência das partes. 2.3. Limites do Poder Normativo. 3. Efeitos da sentença normativa. 4. Conclusão.
1. Introdução
No ordenamento jurídico brasileiro, diante da relevância histórica, social e política das relações de trabalho, erigiu-se todo um complexo normativo inteiramente dedicado a regular as relações jurídicas trabalhistas. Em razão da importância e das especificidades da matéria, decidiu-se pela criação de normas processuais distintas e pela atribuição de competência para julgamento das lides a ela relacionadas a órgãos jurisdicionais especializados, que compõem a Justiça do Trabalho. Uma das características mais peculiares da Justiça Trabalhista é precisamente o poder normativo que lhe é conferido pela Constituição Federal, o que motiva debates doutrinários e jurisprudenciais acerca de seu conteúdo, limites e efeitos, que constituem objeto de análise do presente artigo.
2. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho
O poder normativo da Justiça do Trabalho consiste na possibilidade de o poder judiciário trabalhista emitir disposições normativas vinculantes em relação a classes determinadas de empregadores e trabalhadores, cuja negociação coletiva tenha restado infrutífera.
2.1. Evolução histórica
Quanto à sua origem histórica, Carlos Henrique Horn (2006, p. 420) afirma que o poder normativo da Justiça do Trabalho deriva da Constituição Federal de 1946, estando previsto expressamente em seu art. 123, caput. Horn ressalta que uma posição minoritária é defendida por Pedro Carlos Sampaio Garcia, que remete a origem do poder normativo ao Decreto-Lei nº 1.237, de 1939, sete anos antes Constituição de 1946 (GARCIA apud HORN, 2006, p. 441).
Ives Gandra Martins Filho esclarece que o modelo brasileiro inspirou-se na “Carta del Lavoro” da Itália fascista, que, em 1926, outorgou ao poder judiciário trabalhista italiano o poder de fixar novas condições laborais, na ocorrência de conflitos coletivos de trabalho. O doutrinador afirma que, embora seja possível verificar proposições nesse sentido sendo apresentadas no Brasil desde 1932, somente com a Constituição de 1946 o poder normativo da Justiça do Trabalho consolidou sua força impositiva, a partir de sua previsão constitucional (MARTINS FILHO, 2009, pp. 12-14).
Não obstante a dissidência acerca da origem histórica, é certo que, assim que o poder normativo do judiciário trabalhista consolidou-se, viu-se condicionado por legislação ordinária, à qual competia estabelecer suas hipóteses de incidência, nos termos do § 2º do já citado art. 123 da Constituição Federal de 1946. A Constituição de 1967 manteve o dispositivo que determinava a referida subordinação, mas a lei reguladora jamais foi editada.
Ives Gandra afirma que o condicionamento do poder normativo da Justiça do Trabalho à legislação ordinária suscitou um debate hermenêutico em torno da disposição constitucional, acerca de sua aplicabilidade mesmo ante a ausência de regulamentação por lei. Segundo o autor, o Supremo Tribunal Federal sustentava que a inexistência de lei ordinária regulamentadora impossibilitava o exercício do poder normativo pela Justiça Trabalhista - posição apenas parcialmente endossada pelo Tribunal Superior do Trabalho (MARTINS FILHO, 2009, pp. 36-37).
O doutrinador reconhece que a redação do dispositivo permitia essa interpretação, mas ressalta que “a realidade fática conduziria a conclusão diversa, uma vez que a ausência da lei especificadora não poderia impedir o exercício da Justiça do Trabalho, com o qual os tribunais trabalhistas resolvem os conflitos coletivos de trabalho” (MARTINS FILHO, 2009, p. 37). Na concepção do autor, portanto, tratava-se de uma norma de eficácia contida, de aplicação imediata, embora fosse passível de eventual restrição posterior pela regulamentação legal.
A discussão perdeu o sentido, porém, com a Constituição Federal de 1988, que alargou o âmbito de incidência do poder normativo da Justiça do Trabalho, deixando de condicioná-lo à legislação ordinária. Sobreveio o artigo 114, § 2º, da Constituição Federal de 1988, que possuía, originariamente, seguinte redação:
Art. 114. (...)
(...)
§ 2º - Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídios coletivos, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.
Como se poder verificar, houve uma grande mudança no enfoque constitucional da limitação do exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho. Atualmente, não cabe a lei ordinária específica regulamentar o poder normativo, estabelecendo expressamente as hipóteses de sua incidência. Compete à própria Justiça do Trabalho estabelecer os limites de seu poder normativo, que deverá respeitar disposições legais e convencionais mínimas de proteção ao trabalho.
A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, alterou a redação do dispositivo, que hoje vigora com o seguinte teor:
Art. 114. (...)
(...)
§ 2º - Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. (grifo nosso)
Conforme leciona Inês Sleiman Molina Jazzar (2008, p. 75), acrescentou-se um requisito anteriormente inexistente para o ajuizamento de dissídio coletivo: o comum acordo entre empregadores e empregados. A introdução do novo requisito produziu efeitos diretos sobre o exercício do poder normativo, que tem como pressuposto o prévio ajuizamento de dissídio coletivo de trabalho.
Diante da inovação constitucional, Amauri Mascaro Nascimento explica que alguns juristas sustentam que a Constituição Federal de 1988, na verdade, extinguiu o poder normativo da Justiça do Trabalho. O raciocínio é o seguinte: se o poder normativo sujeita-se aos limites legais e convencionais e, cumulativamente, só pode ser exercido mediante o ajuizamento de dissídio coletivo, de que depende o consentimento recíproco das partes, então pode-se reputá-lo inexistente. Nascimento explica que (2009, p. 537):
A ideia inicial foi a substituição do poder normativo pela função arbitral e quando de interesse de ambas as partes, caso em que o Tribunal do Trabalho funcionaria como órgão não para criar normas e condições de trabalho, mas para arbitrar os pontos controvertidos e que fossem colocados à sua apreciação de comum acordo.
A interpretação literal do dispositivo, portanto, conduziria à conclusão de que o poder normativo, consiste, na realidade, em uma arbitragem da Justiça do Trabalho sobre pontos controversos em uma negociação, desde que submetidos de comum acordo pelas partes. Com efeito, se a submissão ao poder normativo da Justiça do Trabalho depende do consentimento das partes, tal poder esvaziou-se, perdeu o caráter impositivo, jurisdicional. É o que leciona Georgenor de Sousa Franco Filho (FRANCO FILHO apud BARROSO e NILO, 2011):
(...) O que temos, a rigor, é, (...), uma lamentável restrição ao poder normativo da Justiça do Trabalho. Sabemos, e isso não é segredo para ninguém de bom senso, que muita gente quer acabar com esse poder excepcional do Judiciário Trabalhista. Poder atípico, é verdade, mas que, por fatores diversos, que vão desde o enfraquecimento do sindicalismo brasileiro até a demora na elaboração de leis que disciplinem as relações de trabalho, ainda é indispensável para a tranquilidade social (...)
Com efeito, a exigência de comum acordo para instauração de dissídios coletivos consiste em requisito deveras estranho à atividade jurisdicional, impositiva por natureza. Trata-se de pressuposto totalmente distinto da exigência de negociação prévia, esse sim, requisito bastante razoável, tendo em vista que o próprio exercício da jurisdição demanda a existência de interesse jurídico, uma das condições da ação, que seria preenchida com a tentativa de autocomposição infrutífera[1].
2.2. A exigência de anuência das partes
A obrigatoriedade de anuência das partes para ajuizamento de dissídios coletivos e, consequentemente, para o exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho, tem sido alvo de diversos questionamentos, suscitando, inclusive a interposição de Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADIN’s nº 3.392, 3.423, 3.431, 3.432, 3.520). A Corte Constitucional, entretanto, não se pronunciou sobre a matéria até a presente data.
Inevitavelmente, a discussão sobre a constitucionalidade do dispositivo constitucional passa por uma análise da conveniência do próprio poder normativo da Justiça do Trabalho. Isso porque, se para alguns pode parecer exagero dizer que a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 extinguiu o poder normativo trabalhista, é inegável que o principal escopo da reforma foi o de promover uma redução desse poder.
Nesse contexto, salutar mencionar as lições de Ives Gandra Martins Filho, acerca das vantagens e desvantagens do poder normativo da Justiça do Trabalho. Após realizar análise comparativa da legislação trabalhista coletiva nos ordenamentos jurídicos de diversos países, o autor enumera as principais desvantagens do modelo brasileiro, quais sejam: enfraquecimento da liberdade negocial; desconhecimento real do judiciário trabalhista acerca das condições do setor; demora nas decisões judiciais; generalização das condições de trabalho; incompatibilidade com a democracia pluralista e representativa; e maior índice de descumprimento da norma coletiva (MARTINS FILHO, 2009, pp. 31-33).
Fazendo ressalva quanto ao fato de que “a adoção de uma ou outra forma de solução para os conflitos coletivos decorre do contexto histórico e socioeconômico de cada nação no concernente às relações de trabalho”, Martins Filho cita quais seriam as principais justificativas para a manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho: a ausência de um sindicalismo forte no Brasil e a necessidade social de superar o impasse na ausência de autocomposição (MARTINS FILHO, 2009, p. 33).
Enquanto o controle de constitucionalidade concentrado do dispositivo não é exercido pela Suprema Corte, tem prevalecido, no Tribunal Superior do Trabalho, a posição de que a exigência de comum acordo é constitucional e indispensável para o dissídio coletivo.
A necessidade de comum acordo para a instauração do dissídio coletivo não significa, porém, que a petição de instauração deva ser conjunta, isto é, subscrita por ambas as partes envolvidas. Nos termos da interpretação conferida pelo Tribunal Superior do Trabalho ao dispositivo constitucional, seria permitida a anuência tácita, presumida diante da não oposição à instauração do procedimento. É o que preconiza o seguinte precedente[2]:
EXIGÊNCIA DE COMUM ACORDO PARA INSTAURAÇÃO DE DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. CONSTITUCIONALIDADE DA INOVAÇÃO INTRODUZIDA PELAEMENDA CONSTITUCIONAL Nº45/2004. OPOSIÇÃO DA PARTE ADVERSA. EXTINÇÃO DO PROCESSO POR FALTA DE PRESSUPOSTO PROCESSUAL. (...) V - Descartada a exigência de que os contendores, para provocação da atuação do poder normativo da Justiça do Trabalho, assim o tenha ajustado previamente, cabe apenas verificar se a entidade sindical suscitada a ela se opôs expressamente ou com ela consentira explicita ou tacitamente, no caso de não se insurgir contra a instauração do dissídio de natureza econômica, circunstância que dilucida a não-aplicação, no processo coletivo do trabalho, da ortodoxia do processo comum de se tratar de matéria cognoscível de ofício pelo juiz, a teor do § 3º, do art. 267, do CPC, pelo que o seu acolhimento dependerá necessariamente da iniciativa da parte adversa. VI - Como a suscitada expressamente manifestou-se contrária ao ajuizamento do dissídio coletivo, depara-se com a ausência do pressuposto de válido e regular desenvolvimento do processo de que trata o art. 267, inciso IV, do CPC, indutora da sua extinção sem resolução do mérito, a teor do caput daquele artigo. Recurso provido para julgar extinto o processo sem resolução do mérito. (grifo nosso)
2.3. Limites do Poder Normativo
Como visto, a Constituição Federal de 1988 deixou de sujeitar o poder normativo da Justiça do Trabalho à regulamentação por legislação ordinária. No entanto, isso não significa que o exercício do poder normativo tornou-se livre e irrestrito. Ao contrário, dispõe o texto constitucional que devem ser “respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.
Nesse contexto, Ives Gandra sistematiza, a partir da dicção constitucional, quais seriam os limites do exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho. Em seus termos, haveria um patamar, um limite mínimo do exercício do poder normativo, correspondente aos direitos trabalhistas mínimos garantidos por lei ou convenção. Haveria também um teto, um limite máximo, equivalente à justa retribuição do capital, isto é, à manutenção da capacidade econômica da empresa, da lucratividade e consequente viabilidade da atividade empresarial. A equidade e o bom senso do magistrado, por seu turno, constituiriam os degraus, tudo aquilo que se situa entre o patamar e o tento, que é dado ao poder normativo regular. O autor apresenta um gráfico para ilustrar o sistema (MARTINS FILHO, 2009, pp. 38-39):
Obs: gráfico adaptado.
Os limites do poder normativo da Justiça do Trabalho, na forma como foram traçados por Ives Gandra, são passíveis de críticas. Isso porque, no mundo contemporâneo, tem se tornado cada vez mais comum a dispensa conjunta de diversos trabalhadores, denominadas demissões coletivas. O fenômeno possui especial relevância no âmbito do direito trabalhista, pois a subtração do emprego – meio de sobrevivência dos indivíduos e importante canal de acesso à cidadania – de centenas ou até mesmo milhares de trabalhadores de uma só vez os coloca em situação de vulnerabilidade econômica, financeira e social.
Em algumas situações, especialmente de crises financeiras globais, a capacidade econômica da empresa pode não conseguir arcar com os custos de todas as garantias trabalhistas legalmente previstas, sem que, para isso, tenha que demitir parcela considerável dos trabalhadores ou inviabilizar totalmente a atividade empresarial. Utilizando a terminologia de Ives Gandra, é possível, e até comum, que o teto (capacidade econômica da empresa) se situe abaixo do patamar (disposições legais de proteção ao trabalhador).
A questão está diretamente relacionada aos limites do poder normativo da Justiça do Trabalho, pois a Constituição Federal de 1988 chancela especial proteção dos trabalhadores contra as dispensas coletivas, primando pela manutenção do emprego, ainda que mediante restrições de determinadas garantias temporariamente - a denominada flexibilização. A interpretação da limitação imposta pela Constituição Federal, portanto, deve compreender tão somente as garantias trabalhistas realmente mínimas, indisponíveis, sem as quais a própria atividade laboral tornar-se-ia inviável, arriscada, indigna.
Dessa forma, resta claro que a limitação constitucional ao poder normativo da Justiça do Trabalho não consiste em toda e qualquer garantia trabalhista, mas na proteção à dignidade humana do trabalhador. Dissertando sobre os limites à negociação coletiva de trabalho, o que, mutatis mutandis, pode ser importado para o poder normativo da Justiça do Trabalho, Maurício Godinho Delgado afirma a existência de normas de indisponibilidade absoluta, as quais seriam “imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e valorização mínima deferível ao trabalho” (DELGADO apud PEREIRA, 2009).
Segundo Ives Gandra, esse posicionamento é refletido na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho acerca dos limites da negociação coletiva de trabalho. Segundo o autor, pode-se extrair dos precedentes da Corte Trabalhista os seguintes parâmetros que condicionam a autonomia negocial das partes e, analogamente, o poder normativo da Justiça do Trabalho (MARTINS FILHO, 2009, p. 49):
a) não se admite supressão integral de direito legalmente reconhecido;
b) não se admite flexibilização de normas previdenciárias, fiscais, processuais, de medicina e segurança do trabalho (orientação Jurisprudencial 342 da SBDI-1 do TST);
c) admite-se flexibilização de direitos ligados a salário e jornada de trabalho (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV), com redução e compensação implícita, em face da teoria do conglobamento, quando, no todo, a norma coletiva é favorável aos trabalhadores (Súmulas 364 e 423 do TST). - grifo do autor