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Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência

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A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES GRAVES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS

De maneira sucinta, importa aduzir que a referida federalização dos crimes graves contra os direitos humanos fora inserida no ordenamento jurídico vigente através da Emenda Constitucional nº. 45/04. Contudo, a previsão de julgamento de crimes em geral pela Justiça Federal, conforme previsto em tratados internacionais, remete-se à Constituição Federal de 1967.

Convém relembrar que o regime militar havia recriado a Justiça Federal através do Ato Institucional nº 2, promulgado em 1965. Nesta esteira, o referido regime ditatorial apresentou um projeto para uma nova Constituição, através de um processo constituinte contestável, que resultou na aprovação da Carta Maior de 1967, cuja característica marcante era o controle sobre os atos do governo, atrasando as decisões judiciais em que ainda seriam aplicáveis as normas da Constituição de 1946 (SARLET, 2006, p. 39).

Passado uma década, veio a Emenda Constitucional nº 7, data de 13 de abril de 1977, a qual incluía no artigo 125 o seguinte texto: “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”, conferindo à Justiça Federal a competência das hipóteses que posteriormente seriam previstas na Constituição de 1988.

Já no ano e 1996, fora editado o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, sendo então, encaminhado ao Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, a primeira proposta de federalização os crimes contra os direitos humanos, através do Projeto de Emenda Constitucional nº 368-A de 13 de maio do corrente ano. Neste contexto, tal proposta fora apensada à Proposta e Emenda Constitucional nº 96/92 que originou a Reforma do Judiciário, anos após. Com muitas discussões acaloradas, no ano de 2000 modificou-se o texto, o qual fora aprovado (SARLET, 2006, p. 39).

Posteriormente, fora aprovada a última redação pelo Senado, em primeiro turno, na data de 7 de julho de 2004, resultando na aprovação definitiva em plenário no dia 17 de novembro de 2004, sendo promulgada a Emenda Constitucional nº 45/04 na data de 8 de dezembro de 2004 e publicada em 31 de dezembro do mesmo ano. [4]

Outrossim, cumpre anotar que a federalização dos crimes contra os direitos humanos não é única medida que transfere à seara federal uma competência que não lhe é originária. Sem adentrar em maiores discussões, fugindo do escopo principal deste estudo, importante apenas mencionar a Lei nº 10.446/02 que dispõe sobre as infrações penais de repercussão interestadual ou internacional, em atendimento ao artigo 144 da Constituição Federal[5], atribuindo à Polícia Federal a competência para proceder com a investigação, independente da responsabilidade dos órgãos de segurança do Estado (BONAVIDES, 2010, p. 523).

Urge destacar, pois, que o incidente de deslocamento de competência representa apenas uma das medidas possíveis de transferência da competência estadual para a federal. Destarte, seus requisitos e pressupostos que o diferenciam dos demais instrumentos serão adiante sublinhados.


Requisitos e pressupostos para o deslocamento de competência

A norma contida no artigo 109, inciso V e em seu § 5º, é apta e clara a demonstrar como tem início o procedimento de deslocamento de competência, deixando implícito que não compete ao Procurador-Geral da República emitir qualquer decisão acerca do cabimento ou não da medida pleiteada. Para este, caberá apenas a análise dos pressupostos constitucionais que dão azo à propositura do deslocamento em cotejo.[6]

Da leitura das normas supracitadas, pode-se asseverar que para subsista a prerrogativa de federalização em estudo, três requisitos básicos devem coexistir, sendo eles: a existência de uma grave violação aos direitos humanos, a necessidade de assegurar o cumprimento de tratado internacional do qual o Brasil seja signatário e a inépcia ou incapacidade das autoridades originariamente competentes para responder ao caso específico.


Existência de grave violação aos direitos humanos

De plano, impende mencionar que não se trata de qualquer violação aos direitos humanos, mas sim, de grave violação. Nesta seara, surge uma acalorada discussão doutrinária do conceito exato do que seriam as “graves violações” aduzidas.

Destarte, o exato conteúdo da expressão “direitos humanos” também suscita grande debate, vez que o legislador transferiu a responsabilidade de conceituar tais temas para a doutrina e a jurisprudência. Anote-se que o presente estudo não busca esgotar tais questões, objetivando apenas descrever um cenário propício para adentrar nos argumentos favoráveis e contrários ao instituto em análise.

Acerca da gravidade das lesões ou violações, em que pese o silêncio do legislador, é grande a contribuição da doutrina e do direito comparado para que se configure tais violações.

De imediato, é premente destacar que se trata de um conceito jurídico indeterminado, traço característico dos textos constitucionais contemporâneos, o que não inviabiliza a aplicação do preceito constitucional, mas enseja uma análise hermenêutica mais aprofundada.

A indeterminação de conceitos é uma técnica que visa evitar o engessamento do ordenamento jurídico, conferindo a necessária permeabilidade, se afigurando como expressões propositalmente vagas que são utilizadas pragmaticamente pelo legislador, com o fito de propiciar o ajuste de certas normas a uma realidade cambiante ou ainda pouco conhecida. (FARIA, 1993, p. 139)

O Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Incidente de Deslocamento de Competência IDC-1, sufragou como adequada a não definição de um rol taxativo do que seriam graves violações, permitindo a flexibilização da norma diante do caso concreto, in verbis:

Dada a amplitude e a magnitude da expressão “direitos humanos”, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir um rol dos crimes que passaram para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstancias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há de se falar em norma de eficácia limitada. Ademais não é próprio de texto constitucional tais definições (BRASIL, 2005, p. 217).

Pelas palavras do relator, um rol exemplificativo dos crimes considerados como graves violações poderia criar uma banalização do instituto da federalização, fugindo do princípio básico do texto constitucional. Assim, cada caso deve ser analisado sob o prisma dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o “caso Manoel Mattos” [7] (IDC-2) decidiu que é de responsabilidade do referido órgão examinar o caso concreto, observando a razoabilidade e a proporcionalidade da medida, dando efetividade ao deslocamento de competência, superando a subjetividade legislativa do mesmo.

Para o doutrinador Eugênio Pacelli de Oliveira, a medição de gravidade da violação aos direitos humanos não está na violência do ato em si, mas “ao grau de repercussão a conduta, em relação à efetiva possibilidade de intervenção da Administração e das autoridades federais para a repressão e prevenção de tais delitos” (OLIVEIRA, 2005, p. 202).

No que se refere à concepção de “direitos humanos”, urge destacar que se trata de temática extensa, que não se adequaria a principal proposta deste estudo. Para tanto, importa trazer à baila que a concepção de direitos humanos ultrapassa a institucionalização da política estatal, impondo certa dimensão jusnaturalista, uma vez que são direitos inerentes à personalidade humana independente de reconhecimento do Estado para que sejam validados.

Um conceito recorrente, sustentado por Ingo Sarlet, denota que os direitos humanos são aqueles direitos previstos em textos constitucionais, posto que ao atingirem a consagração na Constituição Federal, passariam a ser considerados como direitos fundamentais (SARLET, 1998, p. 31).

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Embora extremamente útil, tal intepretação não pode ser levada à cabo, aplicada de maneira automática, pois se assim fosse, haveria a exclusão do âmbito do incidente de deslocamento de competência todo e qualquer direito assegurado pelo Texto Constitucional de 1988, visto que os direitos humanos se tornariam fundamentais, esvaziando o campo de atuação do deslocamento em questão (CAZETTA, 2009, p. 149).

Luciano Mariz Maia, citado por Ubiratan Cazetta assevera que inexiste exclusividade científica no uso das expressões em cotejo, visto que os direitos humanos já responderam pelo nome de direitos individuais, civis, políticos, liberdades fundamentais, direitos do homem etc, sendo destituído de razão que se considerem como direitos humanos apenas aqueles previstos em tratados internacionais, e como direitos fundamentais àqueles mesmos direitos integrados na Constituição Federal (MAIA apud CAZETTA, 2009, p. 149).

Complementando as afirmações retro, Mario Luiz Bonsaglia sustenta uma interpretação mais ampla do conceito de direitos humanos, aduzindo que:

[...] quando se fala em “crimes contra os direitos humanos” naturalmente está a se considerar aquelas infrações mais graves, que atentam contra os direitos humanos não apenas garantidos na Constituição e leis federais, mas, também, por sua especial relevância, consagrados em instrumentos internacionais, como convenções e tratados, a cuja observância o Brasil encontra-se vinculado (BONSAGLIA, 2006, p. 02)

Contudo, insta consignar que, se não é correto uma leitura estrita sobre os direitos humanos, também não é razoável que se adote um conceito demasiadamente abrangente, como no caso da possibilidade de suscitação do incidente de deslocamento em qualquer persecução criminal.

Para tanto, deve-se buscar um elemento diferencial, um ponto de inflexão que demande a premente necessidade de alteração da competência, derivada da conjugação de várias situações, objetivas e subjetivas, como o contexto em que atuava a vítima, a vinculação da ofensa a uma reiterada atuação estatal ilícita, a uma tentativa de intimidação de minorias ou a prática de crimes internacionalmente reconhecidos como hediondos, rememorando que o Direito Internacional Público possui o chamado “núcleo duro” de direitos que devem ser preservados pela humanidade, tais quais standarts mínimos que constituem a definição de crimes contra a humanidade, ressaltando dentre eles, a escravidão, a execução sumária, as detenções arbitrárias, as discriminações de toda espécie, a tortura, a violência sexual ou contra a mulher e a violência contra aqueles indivíduos considerados mais frágeis, como crianças e idosos (CAZETTA, 2009, p. 151-152).

Nesta seara, se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento proposto:

É imprescindível, todavia, verificar o real significado da expressão “grave violação de direitos humanos”, tendo em vista que todo homicídio doloso, independente da condição pessoal da vítima e/ou repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida (BRASIL, 2005, p. 217)

Assim, o conceito de “grave violação” guarda enorme intimidade com o caso concreto, o qual será analisado sob a égide da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de impedir a banalização do incidente de deslocamento de competência e o esvaziamento da Justiça estadual.

Ademais, pode-se arguir que a definição de graves violações aos direitos humanos será uma tarefa imperativa, mas não subjetiva, diante dos inúmeros parâmetros e normas que possuem ligações com o sistema internacional de proteção destes direitos. Há de ser um crime que viole um bem de proteção jurídica elevada no sistema nacional e internacional, em circunstâncias excepcionais ou que representem práticas sistemáticas de violações a grupos vulneráveis (BARROSO, 2006, p. 40).

Por todo o exposto, pode-se adentar a um ponto de convergência entre este primeiro requisito e um segundo: a garantia de que o Brasil cumpra as obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais seja signatário. Conclui-se que a expressão “grave violação” deve ser analisada em cada caso concreto, importando ainda, a responsabilidade do Estado brasileiro diante de tratados internacionais assumidos.

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Sobre o autor
José Gabriel Pontes Baeta Costa

Graduado em Direito pela PUC/MG, campus Poços de Caldas. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Advogado inscrito na OAB/MG, atuante nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Penal e Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, José Gabriel Pontes Baeta. Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4795, 17 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51254. Acesso em: 22 dez. 2024.

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