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Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência

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Pondera-se sobre a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, adequando-o ao ordenamento jurídico pátrio através dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

RESUMO:A Emenda Constitucional nº. 45/04 criou um novo instituto jurídico, chamado de incidente de deslocamento de competência, aplicável nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos, ensejando a transferência do inquérito ou da ação judicial às instâncias federais. Esta criação levou a grandes discussões doutrinárias, em função de uma aparente violação a alguns princípios constitucionais, como o juiz natural, o contraditório, a ampla defesa, o pacto federativo e a segurança jurídica. O escopo do presente artigo foi o de ponderar sobre a constitucionalidade do incidente de deslocamento de competência, adequando-o ao ordenamento jurídico pátrio através dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, trazendo à tona algumas lições sobre os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos e analogias à federalização através de casos concretos, como os incidentes suscitados até hoje, primando pela sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio.

Palavras-chave: Incidente. Deslocamento de competência. Direitos humanos. Federalismo. Princípios constitucionais. Cláusulas Pétreas. Proporcionalidade.

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO.DIREITOS HUMANOS.O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e as obrigações assumidas pelo Brasil . A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES GRAVES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS.Requisitos e pressupostos para o deslocamento de competência. Existência de grave violação aos direitos humanos. Assegurar o cumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos. Inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico. ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE..ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À CONSTITUCIONALIDADE DO INCIDENTE.. CONCLUSÃO..REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 45/04, comumente conhecida por “reforma do Judiciário”, introduziu no ordenamento jurídico pátrio, dentre outros institutos, o Incidente de Deslocamento de Competência, representado pela sigla IDC.

Tal incidente se afigura através da interpretação extraída da norma contida no § 5º do artigo 109 da Constituição Federal, o qual prevê a possibilidade de o Procurador-Geral da República suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo, o aludido incidente de deslocamento de competência, com o fito de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja signatário.

O dispositivo legal em comento prevê, pois, a federalização dos crimes graves contra os direitos humanos, consistindo na possibilidade de deslocamento de competência da Justiça Comum para a Justiça Federal nas hipóteses em que houver configurada uma grave e clara violação de direitos humanos.

Impende ressaltar que, para o deferimento do aludido deslocamento, faz-se necessário a comunhão de alguns requisitos objetivos, extraídos da redação do parágrafo 5º do supracitado artigo 109, assim como a harmonização com os princípios constitucionais que tangenciam toda a atividade jurisdicional.

Neste ponto, insta consignar que, desde o seu nascimento, tal norma fora alvo de severas críticas dentro das acaloradas discussões jurídicas, mormente em face de supostas violações a princípios consagrados na Constituição Federal, destacando-se a possível afronta ao princípio do Juiz Natural, ao contraditório e a ampla defesa.

Por conseguinte, o presente estudo objetiva analisar a compatibilidade do Incidente de Deslocamento de Competência com a Constituição Federal, e, por consequência, com o ordenamento jurídico vigente.

Anote-se que o propósito não é esgotar as concepções teóricas acerca dos direitos humanos e/ou constitucionais, mas analisar o referido instituto à luz de uma hermenêutica constitucional que sufraga pela prevalência e defesa dos direitos humanos e pela harmonização e constitucionalidade da “Federalização” em comento.

Para tanto, utilizar-se-á da o método dedutivo, através do levantamento bibliográfico para fins de pesquisas, tendo como fonte primordial a doutrina brasileira, o direito estrangeiro comparado e a jurisprudência, assim como eventuais fontes necessárias para o bom desenvolvimento do tema abordado.


DIREITOS HUMANOS           

Para uma eficaz compreensão do tema objeto deste estudo é imprescindível conhecer um pouco acerca dos direitos humanos, tendo em vista que sua violação ou grave ameaça é um dos requisitos para o deslocamento de competência.

Sucintamente, pode-se asseverar que os direitos humanos são direitos tidos como fundamentais ao ser humano, fazendo parte das suas necessidades mais básicas. Sem a garantia de tais direitos, a vida em sociedade tornar-se-ia inviável ou ficaria prejudicada.

Não se pode olvidar que o ser humano é tido com sujeito da história e, como tal, a constrói ao longo dos anos, trazendo consigo traços inerentes à sua personalidade. Neste diapasão, Hanna Arendt (1979, p. 32) afirma que “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”.

Pelo magistério de Alexandre de Moraes (1998), tais direitos se afiguram como previsões necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, assim como garantir a limitação de poder e oportunizar o desenvolvimento da personalidade humana.

Ressalta-se que tais direitos são construídos ao longo do tempo, evoluindo ao lado da própria sociedade, na constante busca por meios que garantam uma sobrevivência digna a cada ser humano.

Nesta esteira, importante o ensinamento de Dalmo de Abreu Dallari:

Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também, devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos (DALLARI, 2004, p. 12).

No magistério de Herkenhoff (1997) entende-se por direitos humanos aqueles direitos tidos como fundamentais, que integram a personalidade do indivíduo pelo simples fato de ser considerado “humano”. Outrossim, são direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política, pelo contrário, tal sociedade possui o dever de os consagrá-los e protegê-los.

Uma vez reconhecida a existência dos direitos humanos emerge a discussão da necessidade de afirmação desses direitos no plano teórico-normativo: de um lado e sua efetividade e de outro, sua aplicação fática. O binômio da teoria do direito e da sua aplicação na realidade é um dos principais problemas que assolam a democracia contemporânea. Isto é, a existência dos direitos humanos pode ser facilmente comprovada, entretanto, sua aplicação fática e garantia por parte do Estado Democrático de Direito nem sempre se concretizam.

Insta destacar que em um primeiro momento histórico, nem todo ser humano era detentor dos direitos supracitados. Somente através de revoluções, guerras e revoltas, que se concederam direitos a uma camada maior da população, abrangendo classes até então esquecidas, em um lento processo de evolução.

Nesta esteira, preleciona Norberto Bobbio:

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (1992, p. 05).

Insta salientar que os direitos humanos possuem uma característica peculiar que lhes permite ter aspecto formal, tendo em vista que são consolidados por leis, através de tratados internacionais, incorporando as Constituições contemporâneas.

Nesta esteira, Flávia Piovesan (2006) afirma que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, introduziu-se o conceito hodierno de direitos humanos, cujas características marcantes são: a universalidade, indivisibilidade e a interdependência. Segue o magistério mencionado:

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN, 2006, p. 216).

Através da universalidade e da indivisibilidade é possível garantir tais direitos dentro de qualquer ordenamento jurídico contemporâneo, primando pelo Estado Democrático de Direito. Souza Cruz (2001) ensina que o quadro dos Direitos Humanos se integra ao modelo de qualquer constituição democrática, haja vista que são elementos indissociáveis, tais quais os órgãos vitais são para o corpo humano.

A Constituição Federal se encarrega de ditar os parâmetros gerais que tangenciam a proteção e aplicação dos direitos humanos, ficando a cargo do legislador infraconstitucional estabelecer os caminhos que deverão ser seguidos para a concretização destes direitos. Nesta senda, é sob a tutela da Constituição Federal de 1988 que os direitos humanos passam a ser valorados com maior intensidade, ressaltando que a Emenda Constitucional nº. 45/04, através da norma contida no § 3º do artigo 5º, elevou os tratados internacionais sobre direitos humanos à equivalência de emendas constitucionais, após a aprovação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.

Flávia Piovesan assevera que “a Constituição de 1988 é o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. O texto demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático pós-ditadura” (PIOVESAN, 2003, p. 39).


O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e as obrigações assumidas pelo Brasil

No âmbito da Organização dos Estados Americanos existem diversos atos internacionais que fixam o contexto normativo para a proteção dos direitos humanos, sendo patente que o documento central do aludido sistema interamericano é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida por “Pacto de São José da Costa Rica”.

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A referida Convenção, adotada em 22 de novembro de 1969, consagra em seus 82 artigos um extensivo rol de garantias dentre as quais, destacam-se a existência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, bem como da Corte Interamericana de Direitos Humanos, responsáveis por atuar no sistema em cotejo, com funções que se aplicam a todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, independentemente de terem ratificado ou não o Pacto de São José da Costa Rica. (CAZETTA, 2009)

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem como função precípua promover a observância e a defesa dos direitos humanos, assim como as atribuições que decorrem do artigo 41 da Convenção alhures mencionada.[2]

De outra banda, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem importante papel de intérprete final do estatuto interamericano de direitos humanos, podendo manifestar-se quanto à correta interpretação das obrigações assumidas pelos Estados que integram o bloco supracitado.

No que tangencia ao Brasil, além dos impactos da jurisprudência da Corte na interpretação das obrigações assumidas pelo país, que devem ser levados em consideração na implementação das políticas públicas, na atuação judicial e na formulação legislativa, já subsistem alguns precedentes importantes, como no caso “Ximenes Lopes”, que resultou na primeira condenação brasileira por descumprimento de obrigação internacional de proteção aos direitos humanos. [3]

Ademais, o Brasil adotou uma variedade de atos internacionais de proteção dos direitos humanos, firmados na seara da Organização das Nações Unidas e, posteriormente, à Declaração Universal dos Direitos Humanos, vindo a ratificar inúmeros instrumentos específicos, destacando o já citado Pacto de São José da Costa Rica, os Pactos de Direitos Civis e Políticos sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, as Convenções sobre a eliminação da escravidão, a repressão aos crimes de genocídio, decorrentes de gênero ou raça, tortura, tráfico de seres humanos, dentre outros. (CAZETTA, 2009)

Nesse contexto de regras e obrigações assumidas pelo Estado brasileiro, através da implementação de políticas públicas eficazes, reconhecendo a imperiosa necessidade de cumprimento das regras internacionais de direitos humanos, ganha destaque a efetiva repressão e combate aos crimes que atentem violentamente contra os direitos humanos, dando o devido enfoque para o Incidente de Deslocamento de Competência e suas repercussões no plano teórico-normativo, mormente em face da sua suposta inconstitucionalidade, consoante avençado por diversas vozes.

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Sobre o autor
José Gabriel Pontes Baeta Costa

Graduado em Direito pela PUC/MG, campus Poços de Caldas. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Advogado inscrito na OAB/MG, atuante nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo, Penal e Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, José Gabriel Pontes Baeta. Da aplicabilidade do incidente de deslocamento de competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4795, 17 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51254. Acesso em: 19 abr. 2024.

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