O crime de furto está previsto nas leis brasileiras desde sempre. Toda coisa móvel pode ser objeto do crime (punido com pena de um a quatro anos de reclusão). O legislador brasileiro, de mentalidade pré-moderna, acaba de aprovar uma lei (13.330/16) para “tipificar, de forma mais gravosa, o furto de semoventes (animais) domesticáveis” (animais criados em grupos: bovinos, suínos, caprinos etc.). Tudo isso já está na lei geral (CP, art. 155). Mas sempre queremos “leis especiais”.
A mentalidade pré-moderna odeia qualquer tipo de lei geral. O personalismo nos conduz a querer leis especiais, tratamentos especiais, mordomias especiais: “minha situação é diferente da dos outros”. “Meu caso é diferente”. “O gado, os animais, os suínos e os caprinos são diferentes”. “Eles merecem uma lei especial”. É isso o que foi feito, de forma totalmente equivocada (na forma e na substância).
Mais uma vez, “macaco em casa de louças” (o desarranjo é geral, tudo é feito estabanadamente, sem a observância das técnicas e da razoabilidade). O povo desacredita totalmente nos legisladores. Quando eles fazem mais “barbaridades”, a profecia se cumpre. Um exemplo: se houver receptação para fins comerciais (de semoventes), a pena nova (de 2 a 5 anos de prisão) é menor que a anterior (de 3 a 8 anos de reclusão). Efeito contrário ao declarado pelo legislador. Isso é falta de técnica. É irracionalidade.
Não há dúvida de que todos os animais domesticados podem ser (e já são) objeto de proteção penal. Isso é indiscutível. O problema está nas distinções. Se a moda pegar teremos que fazer um dispositivo especial para as vítimas de furto de celulares, de motocicletas, de bicicletas e por aí vai.
O fundo psicossocial da exigência de leis especiais reside no racismo (que, no século XIX, passou a distinguir “as raças superiores” das “raças inferiores” – Spencer etc.). O supostamente diferente tem que ter tratamento diferente. Trata-se de uma irracionalidade. Quando essa irracionalidade é trazida para o campo da política criminal vira um desastre.
Quando as sociedades ou setores dela entram em colapso?
As sociedades ou alguns dos seus setores entram em colapso em quatro situações: (a) quando são incapazes de prever um problema coletivo; (b) quando são incapazes de perceber esse problema; (c) quando são incapazes de resolvê-los (adotando medidas paliativas ou demagógicas para enganar a população) ou (d) quando não são bem sucedidas nas tentativas de solucioná-los (ver J. Diamond, Colapso, p. 503 e ss.).
Nenhum item da criminalidade no Brasil diminuiu nos últimos 76 anos (1940 é a data do Código Penal vigente). Todos os crimes aumentaram. Para combater a chaga, o legislador aprova, a todo momento, “leis novas para agravar a pena”. Já fez isso 160 vezes desde 1940. Resultado: um desastre. A lei, por si só, não muda a realidade. Mais importante é a certeza do castigo (ver nosso livro Populismo penal legislativo, JusPodivm).
A velha estratégia de prevenir a criminalidade por meio da edição de uma nova lei penal que aumenta o castigo cominado se exauriu (ver nosso livro Populismo penal legislativo citado). Novas leis penais, ressalvados os casos de lacuna evidente, sobretudo por razões de proporcionalidade da pena (caso do feminicídio, por exemplo), são mais inúteis que jogar “Pokémon Go”, com a desvantagem de nem sequer gerar qualquer tipo de positivo prazer. Depois de 160 tentativas, se nenhum resultado positivo aconteceu estamos diante de um fracasso.
O mais relevante na prevenção dos delitos não é a edição de leis penais novas mais severas (frequentemente desproporcionais),mas, sim, a certeza do castigo (ver Beccaria, Dos delitos e das penas, 1764). É correta a política criminal que busca a certeza do castigo (justo e proporcional). É demagógica e populista a política criminal que ilude a população com novas leis penais mais duras, sabendo-se da sua inefetividade (por falta de estrutura material, pessoal, tecnológica etc.).
A delação premiada (regulamentada pela Lei 12.850/13) foi muito mais efetiva no combate aos delitos do colarinho branco no Brasil que todos os aumentos de pena referendados pelo legislador brasileiro (nessa área) em toda sua história. As incontáveis reformas legislativas aprovadas na era Collor, por exemplo, não representaram praticamente nada em termos de certeza do castigo.
A delação, ao contrário, revolucionou, porque ela significou uma “destruição criativa” (na linguagem de Schumpeter), ou seja, uma inovação que destrói tudo que fica obsoleto. Na delação, o colaborar confessa o delito, delata terceiros e facilita a produção das provas, agilizando a investigação e o processo criminal; e tudo se faz de forma responsável, porque, sem provas, a delação não produz nenhum efeito jurídico, tampouco gera o prêmio negociado.
Promulgar leis e constituições, leia-se, normas constitutivas de um novo Estado de Direito, sem empoderar concretamente órgãos que possam fazer valê-las para todos (eficácia “erga omnes”) não deixa de ser uma iniciativa que busca finalidades comuns louváveis, mas todo o projeto está condenado ao fracasso, porque, sem empoderamento de quem não é hegemônico (em qualquer que seja a sociedade), o cenário vivido não se modifica.
A Lava Jato (que veio depois do mensalão) só ganhou a natureza de microrrevolução porque a polícia, o Ministério Público e os juízes foram concretamente empoderados (ou se empoderaram). Por força desse empoderamento hoje quase cem notáveis do mundo das elites dominantes e governantes estão encarcerados ou sob o regime da tornozeleira domiciliar. Isso significa mudar as relações sociais concretas (ou a frustração se torna inevitável). São dessas relações sociais concretas que temos que cuidar. Sem modificação delas, as leis e as constituições bem intencionadas não passam de paisagens.
As polícias judiciárias (que fazem investigações) foram sucateadas em todo país pelos governos estaduais. Aqui está o problema (no aspecto repressivo). Mas o problema maior, lógico, reside na falta de prevenção. O Brasil é uma das dez sociedades mais desiguais e injustas do planeta, com gravíssimos problemas educacionais. As elites dominantes e governantes, com mentalidade pré-moderna, não construíram uma sociedade, sim, uma “monstruosidade social” (Faoro).
Monstruosidade social de um lado + sucateamento da polícia judiciária de outro = colapso total da segurança. Ao legislador, impotente, só resta fazer demagogia (para se reeleger). Sorte dele que a demagogia encontra eco social.