Interfaces dos direitos fundamentais e humanos

14/08/2016 às 14:57
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As vértices dos direitos fundamentais e humanos sob a luz do Direito Constitucional e o Biodireito no que tange às situações de gestantes de alto risco.

É enorme o sofrimento da gestante de um feto anencéfalo, alegando uma ‘agressão à dignidade da pessoa humana'. Seguramente essas mães sofrem e a preocupação com o sofrimento alheio é sempre  meritória. No entanto, pergunto: qual mãe não sofre por seus filhos? Sofre mais a mãe cujo recém-nascido vem a óbito em um curto período, ou aquela mãe que vê seu filho morrer lentamente, nos descaminhos da droga? Sofre mais a mãe cuja gestação enfrenta sérios riscos, ou aquela mãe que vê seu filho, saudável e bem-formado, contrair uma doença causada pela falta de saneamento básico? Aliás, é possível mensurar o sofrimento?

Há  outro aspecto muito sério. Os atuais recursos diagnósticos permitem a identificação de centenas de alterações durante a vida fetal. Síndromes diversas podem ser diagnosticadas com relativa segurança. Então, depois do anencéfalo, qual será a próxima alteração fetal a justificar o aborto?

Isso me traz à mente qualquer coisa de "pureza racial" enrustida. Saber da surdez, cegueira, agenesia de membros, retardo mental, intersexualidade etc. não são situações capazes de causar sofrimento nas mães e pais, de "agredir a dignidade da pessoa humana?"

O mundo hoje tem se empenhado tanto na inclusão dos portadores de necessidades especiais, então como estabelecer quais anomalias podem ou não ser mantidas durante a gestação?

Devíamos cobrar do Ministério mais investimentos no diagnóstico precoce de anomalias embrionárias e fetais. Mais incentivos às pesquisas para, a partir do diagnóstico, haver medidas capazes de atuar na ativação ou repressão dos genes responsáveis por tais alterações. Afinal, a sequência gênica não pode ser alterada, mas a epigenética hoje nos mostra ser possível modular a ação dos genes. Gostaria de ver os Ministros defendendo mais recursos para a Saúde, eliminando doenças vinculadas à falta de saneamento básico.                  

Com relação à ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental -primeiramente acho que não deveria ter sido acolhida pelo STF. Cabe à Suprema Corte, dentre outros, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato que fira preceito fundamental da Constituição Federal ( art. 102, parágrafo 1º desta Carta). Todavia o que se busca com a ação ajuizada pelo CNTS ( Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde) é assegurar o direito da mãe de decidir sobre a antecipação da morte do seu filho, portador de deficiência congênita, em detrimento do direito fundamental à vida assegurado pelo artigo 5º da Lei Maior. Impõe-se com a referida ação que o STF assegure uma nova modalidade de aborto eugênico, contrariando a própria Lei.

O direito à vida, conforme reza a Constituição Federal, antecede todos os outros não podendo ser minimizado por um direito subjetivo da mãe que enseja abortar. Vale lembrar ainda que o artigo 4º do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, assegura o direito à vida desde a concepção e tem força de emenda constitucional imutável, cláusula pétrea. Outrossim o artigo 2º do Código Civil dispõe que “a lei põe a  salvo  dos direitos do nascituro desde a concepção” Não obstante alguns  juízes tenham  autorizado  o  aborto de fetos mal formados, no Brasil este tipo de aborto é considerado criminoso, não incorrendo em excludente de ilicitude como quando há risco de vida para a mãe. Há entendimentos importantes, inclusive, sobre a inconstitucionalidade do aborto em razão do estupro, outra hipótese prevista pelo Código Penal que exclui o crime. Isso porque nesse caso, de estupro, não há conflito de direitos iguais, quais sejam, a vida da mãe e a da criança, como na hipótese em que o aborto é permitido por haver risco de morte da gestante configurando o estado de necessidade.

A anencefalia é definida como anomalia resultante da má formação fetal congênita caracterizada como defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex havendo apenas parte do tronco encefálico, o que lhe impõe vida curta ou o nascimento com morte. Nos casos em que essa anomalia  acarreta  risco  de vida para a mãe admite-se o aborto, pois trata-se da modalidade  terapêutica  perfeitamente aplicável a este caso.Todavia, não havendo risco, não se  pode  permitir aborto. E esse risco, segundo a grande maioria dos médicos, não é muito maior do que numa gestação normal. Atenta-se também para a possibilidade significativa de erro no diagnóstico.

A questão  da anencefalia desdobra-se também sobre a hipótese de não haver expectativa de vida da criança, ou seja, vida em potencial. Ora, expectativa ou probabilidade  de  vida  há, curta, mas há. Outra  questão  se depreende do fato de que há entendimentos no sentido de que o feto portador de anencefalia não é considerado vivo por não ter o cérebro totalmente formado o que não configuraria ilícito penal a prática do aborto, um vez que este consiste na cessação da gravidez de um ser humano vivo. Mas seria correto afirmar  que  um bebê  apesar  de anencéfalo, mas cujo coração e respiração funcionam independentemente de meios artificiais, esteja morto?

Outro argumento  é o de que o bebê com a referida anomalia mantém-se vivo somente às custas  do  organismo  materno. Mas o corpo  da mãe é essencial até mesmo para fetos sadios e perfeitos manterem-se vivos até o nascimento. E a anencefalia não é impedimento para  que  outras  funções vitais, como a respiração e o batimento cardíaco, permaneçam ativas ainda que por pouco tempo após o parto.

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Outra questão que se aborda é a da morte cerebral, que não se confunde com a anencefalia. Equiparando-as, como tem sido feito neste caso, peca-se por desconhecimento, já que na primeira as funções vitais não se prorrogam a não ser por meios artificiais. Na segunda, aquelas funções podem ser mantidas ainda que por pouco tempo depois do nascimento ou mesmo por dias e meses. Há estudos que tratam de casos menos críticos que possibilitam ao anencéfalo condições primárias sensoriais e de consciência. Isso seria possível devido à neuroplasticidade do tronco cerebral.

Em se tratando do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana este nada mais é do que o direito à assistência para manter uma vida digna até a morte inevitável. Este princípio não está sujeito a concepções subjetivas. Portanto, qualquer outro conceito de dignidade que não seja aquele mencionado consistirá em ardilosa tentativa de adaptar o princípio fundamental às conveniências pessoais.

Em que pese o sofrimento dos pais que sabem da curta sobrevida do seu filho, não se pode ignorar que o direito à vida inerente à criança não está condicionado à vontade de seus genitores. E amar um filho independe de sua perfeição física ou do tempo em que ele viverá. Ainda que o feto tenha vida curta, ainda que os pais sofram por isso, viver é um direito inviolável. Cabe a pergunta: quando se sofre mais? Quando se gera um filho defeituoso cuja morte será natural ou quando se mata esse filho por sua própria vontade trazendo consigo além da dor da perda a dor do remorso?A vida de um filho não vale pelo número de dias em que ele esteve presente na vida dos pais, mas pelo simples fato de ter estado presente. Mesmo que por um só dia. Não se precisa ter um cérebro completo para dar e receber amor. Tudo o que se precisa é um coração!

A decisão do STF favorecendo o aborto para bebês anencefálicos provavelmente servirá de abertura, permitindo uma liberalização crescente das restrições ao aborto, até que efetivamente seja legal na totalidade.

Não podemos deixar de citar as palavras do  Ministro  Cezar  Peluso  que, ao proferir seu voto na ação mencionada alhures, traz algum alívio de consciência a nós outros:

“Parece-me falsa a idéia de que o feto acometido de anencefalia não tem encéfalo. O termo anencefalia induz a erro. Na verdade, a anencefalia corresponde à ausência de uma parte do encéfalo”, "A ação de eliminação intencional da vida intrauterina de anencéfalos corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética capaz de me convencer do contrário”.

“Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos ao arrepio da legislação penal  vigente, além de discutível do ponto de vista  ético, abriria portas para interrupção de inúmeros embriões que sofrem ou venham sofrer outras doenças genéticas ou adquiridas, às quais de algum modo levem ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina”

"Nesta postura dogmática ao feto, reduzi-lo no fim das contas à condição de lixo, uma coisa imprestável e incômoda, não é dispensada de nenhum ângulo à menor consideração ética e jurídica"

Enfim, cabe  ressaltar que ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – não autoriza o aborto. O que ficou determinado na perigosa e celebrada decisão foi a possibilidade da mulher gestante de um feto portador de anencefalia ser auxiliada por um médico a decidir se mantém ou não a gravidez. E o risco que se corre é a banalização da consequência da ação que, no fim, detém alguns méritos.

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Sobre o autor
Giovanna Bianca Trevizani

Graduanda dos cursos de Direito e de Sociologia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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