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Judiciário não pune nem 3% da corrupção do agente público

21/08/2016 às 17:16
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A chance de alguém ser efetivamente preso, no Brasil, por corrupção, é próxima de zero. A ideia de que pessoas corruptas nunca respondem à Justiça no Brasil não é um exagero. Se mudarmos o “nunca” para “quase nunca” a afirmação se torna precisa.

As elites dirigentes locais (coloniais), desde o século XVI, criaram no Brasil uma sociedade claramente cleptocrata (onde as instituições funcionam em direção ao enriquecimento ilícito ou politicamente favorecido delas), seguindo, em linhas gerais, o receituário do Antigo Regime português: hierarquização social rigorosa, distinção “qualitativa” entre as pessoas (elite é elite e o resto é o resto), “estatuto da pureza de sangue”, conquista de terras e escravização dos humanos, uso político intenso das “mercês” (favores, isenções, distribuição de cargos, pensões etc.) e apoderamento do poder político da Câmara (ver J. Fragoso, A formação da economia colonial no Rio de Janeiro, em O Antigo Regime nos Trópicos, p. 69-70).

Todas as instituições (econômicas, políticas, jurídicas e sociais, destacando-se, aqui, as religiosas) foram criadas (moldadas) em torno do projeto cleptocrata de poder (que promove o enriquecimento ilícito ou politicamente favorecidos dos dirigentes). Dentre elas destaca-se a Justiça (cujo funcionamento nas origens esteve inteiramente subordinado, com raras exceções, aos interesses das elites dirigentes econômicas e políticas). Esse pecado capital de origem até hoje não foi (totalmente) expurgado. Os brasileiros (na maioria) não confiam na Justiça que possuem.

Na pesquisa do Ibope (Índice de Confiança Social – ICS) de 2016 (feita entre os dias 14 a 18 de julho, com 2.022 pessoas em 142 municípios) o Judiciário aparece com 46 pontos (atrás da Polícia Federal com 66 pontos e do Ministério Público com 54 pontos). A pesquisa pontua as instituições em uma escala de 0 a 100, na qual a pontuação igual a 100 pontos significa “muita confiança”; igual a 66 pontos “alguma confiança”; igual a 33 “quase nenhuma confiança” e igual a 0 “nenhuma confiança”. O Judiciário, como se vê, é uma instituição que desperta pouca confiança da população (está entre o “quase nenhuma confiança” e o nível “alguma confiança”).

Isso se deve a uma série de fatores, destacando-se morosidade, pouca acessibilidade, prescrições, impunidade etc.

Levantamento e estudo feitos por Carlos Higino Ribeiro de Alencar e Ivo Gico Jr. (ver Revista Direito GV-Scielo/Brasil) constatam que a punição efetiva (judicial) da corrupção do agente público (do funcionário) não chegou no período de 1993 a 2005 nem a 3% dos casos.

No Brasil, portanto, não é exagero afirmar que a corrupção do agente público, quando chega ao Judiciário, fica (quase que) totalmente impune. A sensação generalizada de impunidade não é irreal. A Justiça funciona muito seletivamente.

Base metodológica: o estudo teve por base a Teoria da Escolha Racional (sobre a teoria ver F. A. Rodrigues, Análise econômica da expansão do direito penal, p. 62 e ss.), que é uma forma de compreensão dos fenômenos sociais. Ela afirma que o comportamento humano, em muitas situações, seria modelado pela racionalidade.

A teoria nasceu no mundo da economia e depois se expandiu para outras áreas do conhecimento humano (sobretudo para a política, o direito etc. – ver Downs, Riker et alii ).

Consoante tal teoria, os indivíduos se comportariam de acordo com a maximização daquilo a que se atribui valor de utilidade: é “o comportamento previsível e típico da escolha racional que leva as empresas a maximizarem seus lucros, assim como o Fisco maximizar a arrecadação, o ativista ambiental a maximizar a preservação do meio ambiente, o assaltante a maximizar os benefícios oriundos do roubo etc.” (ver F. A. Rodrigues, Análise econômica da expansão do direito penal, p. 63).

Em suma, diante de situações de múltipla escolha, é frequente que o humano acabe optando pela estratégia que mais maximiza os resultados pretendidos. Tudo é uma questão de custo-benefício. Quando os benefícios são maiores, há incentivos para se praticar uma conduta.

No caso da prática da corrupção do agente público, o que o funcionário leva em conta é o risco de punição, perda do cargo, perda dos salários e da aposentadoria, da reputação etc. Diga-se a mesma coisa para o agente político (que pode perder o mandato, chance de não reeleição etc.).

Para os agentes do Mercado corruptor (empresários, financistas etc.) o risco é de prisão, danos à imagem, empobrecimento-reparação dos danos, prejuízos nas empresas, dificuldade de obtenção de créditos, impossibilidade de novas contratações com o poder público etc.

O estudo citado (de Carlos Higino Ribeiro de Alencar e Ivo Gico Jr.) conseguiu identificar que, de 1993 a 2005, 687 servidores públicos demitidos, dos quais 246 (35,81%) foram demitidos por razões não relacionadas à corrupção e 441 (64,19%) estavam realmente envolvidos em práticas corruptas.

Apenas um terço dos servidores públicos demitidos administrativamente (34,01%) são processados criminalmente. Apenas 14 dos servidores foram definitivamente condenados. Sendo assim, concluem que, com base no pressuposto de que as condenações administrativas são um forte indicativo de corrupção real, pode-se estimar a eficácia do sistema criminal em cerca de 3%.

Em resumo: [excepcionando-se a operação Lava Jato] a chance de alguém ser efetivamente preso, no Brasil, por corrupção, é próxima de zero. Os autores finalizam afirmando que a ideia de que pessoas corruptas nunca respondem à Justiça no Brasil não é um exagero. Se mudarmos o “nunca” para “quase nunca” a afirmação se torna precisa.

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Do ponto de vista da teoria, segundo eles, é razoável inferir que o desempenho judicial no combate à corrupção é tão baixo que atividades ligadas à corrupção devem ser altamente lucrativas e, portanto, ubíquas em nossa sociedade.

O levantamento só enfocou a corrupção do agente público. Ideologicamente isso reforça o mito de que só o Estado é corrupto. Ficaram de fora as corrupções do agente político, assim como, sobretudo, dos agentes econômicos e financeiros (que são os corruptores).

O estudo cuidou, em suma, da corrupção dos “assalariados”, que não chega nem aos pés (em termos quantitativos e de danos sociais) à grossa corrupção dos agentes políticos e dos empresários e financeiras. Não é verdade que a corrupção seja só do Estado. Há muita gente do Mercado (econômico e financeiro) que pratica a corrupção para seu enriquecimento privado.

Se na corrupção do agente público o Judiciário não capta nem 3% dos casos, parece muito evidente (pela lei da razoabilidade e da realidade) supor que o império da lei é muito mais pífio no que diz respeito à corrupção do sistema de poder (que envolve as elites dirigentes do país, governantes e influentes).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Judiciário não pune nem 3% da corrupção do agente público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4799, 21 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51463. Acesso em: 22 nov. 2024.

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