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Da instituição de bem de família no caso de união estável

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29/04/2004 às 00:00
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4. A UNIÃO ESTÁVEL E A CONSTITUIÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA.

Em relação ao bem de família involuntário, não existem dúvidas de que este se estende também para proteger a união estável, uma vez preenchidos os requisitos para a sua constituição, tendo em vista que a própria lei 8.009/90, em seu art. 1º, determina que à proteção se estende à entidade familiar.

Também não se encontram maiores problemas devido a informalidade do bem de família voluntário, que condiz com a informalidade que circunda a união estável, não havendo necessidade de constituição por escritura pública ou registro em cartório.

Controvertida, entretanto, é a questão da possibilidade da instituição de bem de família voluntário por pessoas solteiras que mantêm união estável.

Como dito anteriormente, a instituição do bem de família voluntário é ato de previdência do proprietário do bem visando à futura proteção da família, evitando a penhora do imóvel em que esta reside.

O art. 70, do CC/16, é expresso em determinar que quem pode instituir o bem de família é o chefe de família. Entretanto, esse artigo foi prejudicado pelo art. 226, § 5º, CF/88, que estabelece a igualdade entre homens e mulheres, o que se aplica também ao direito de família, tornando-se o art. 70 ultrapassado mesmo antes das disposições do novo código. Hoje não existe mais a figura do chefe de família.

Já segundo o CC/2002, no art. 1.711 e p.u., a instituição do bem de família cabe aos cônjuges, à entidade familiar ou terceiros. O artigo está em conformidade com o art. 226, CF/88, pois coloca os cônjuges em pé de igualdade e confere à união estável e a família monoparental o status de entidade familiar, equiparada à família tradicional.

Entretanto, numa interpretação sistemática do nosso ordenamento, a doutrina já considerava que pelo art 226, da CF/88, permitia-se que na união estável e na família monoparental também se instituísse bem de família. O novo código veio apenas reproduzir o pensamento que já se mostrava dominante na prática, o que não quer dizer, não obstante, que a questão deixou de ensejar polêmica.

A discussão ainda não foi completamente dissipada porque há quem sustente a equiparação do concubinato e da sociedade homoafetiva com a entidade familiar, o que, conseqüentemente, implicaria na possibilidade de constituição de bem de família.

No caso de concubinato, a posição que domina hoje na doutrina é que não há equiparação à união, não se tratando de família. União estável é a que permite a conversão da união em casamento, o que não é possível no concubinato. O novo código civil, ao regular a união estável, deixa claro tal distinção no art. 1.727.

Quanto à união de homossexuais, também há óbice legal, pois a CF/88 (art. 226, §§ 3º e 5º) e o código civil de 2002 (art. 1.565) legalizam apenas a união entre homem e mulher. Não se pode, assim, de acordo com a lei, considerar a união homoafetiva como entidade familiar [15].

Pela natureza informal da união estável, deduz-se que esta não combina com a formalidade que envolve o bem de família voluntário, que demanda a presença do proprietário em cartório, formalização da instituição por escritura pública e conseqüente registro, embora a determinação do Código de 2002 seja expressa em permitir a criação do bem de família voluntário no caso de união estável.

O art. 73, do CC/16, exigia expressamente que a instituição do bem de família voluntário seja feita por escritura pública, transcrita no registro de imóveis e publicada na imprensa local. Assim, conclui-se que se trata de um ato solene. A razão de toda essa publicidade é justamente prevenir os credores, já que a regra geral é que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas (art. 5º, LXVII, da CF/88).

A matéria também está regulada nos arts. 260 a 265, da lei 6.015/73, só que esses dispositivos, mais acertadamente, exigem a precedência da publicação ao registro. A doutrina também é pacífica sobre esse entendimento, pois a razão da publicação é exatamente permitir que o possível prejudicado, tomando consciência da instituição, possa impedir o registro e a constituição definitiva do bem de família.

O novo código não disciplina a matéria, apenas, em seu art. 1.714, estabelece que o bem de família constitui-se pelo registro do seu título no Registro de Imóveis. Já no art. 1.711, o novo código inova ao dispor que poderá ocorrer a instituição também por testamento.

Não existem maiores dificuldades se, precedentemente à constituição do bem de família, a união estável foi reconhecida judicialmente ou existe um contrato de convivência. Mas a questão fora dessas hipóteses, e no caso de não haverem filhos fruto da união, a questão é controvertida, porque o registrador realmente não é competente para analisar provas referentes à existência e manutenção de uma união estável.

A situação se complica tendo em vista que os tabeliães de notas, responsáveis pela feitura da escritura pública de bem de família, que será posteriormente registrada no cartório do registro de Imóveis, não estão preparados para lidar com a situação controvertida.

Nos tabeliães de nota da cidade de São Paulo, por exemplo, a política adotada para a feitura da escritura pública de bem de família por parte dos conviventes não é uniforme. As exigências normais são escritura comprovando propriedade do imóvel, comprovante de quitação de IPTU, CPF e RG (há casos em que se exige também as certidões pessoais do proprietário, como, por exemplo, certidão negativa de protesto e execução fiscal). Fora isso, alguns exigem prova documental da união estável; outros, não fazem escritura pública de bem de família no caso de união estável, exigindo apresentação de certidão de casamento ou dispensando está pelo fato do estado civil de casado já constar da escritura do imóvel; havendo ainda casos em que o funcionário pede para pesquisar melhor o pedido, dadas as inovações legislativas.

Ocorre ainda que, como no caso concreto, após a feitura da escritura pública de bem de família voluntário beneficiando os conviventes, pelo tabelião de notas, o Cartório do Registro de Imóveis se recuse a registrar a referida escritura.

No caso de união estável com filhos a situação é facilitada, pois os tabeliães de notas produzem a escritura pública de bem de família mediante a certidão de nascimento dos filhos. Entretanto, o que se verifica nesse caso é que a proteção foi possível por se considerar uma família monoparental, e não por força da união estável, o que não é satisfatório tendo em vista que a união estável pode se constituir, pelo nosso ordenamento, sem a existência de prole.

Deve-se admitir, em verdade, que a ausência dessa formalidade exigindo prova da união estável pode ser uma porta aberta à fraude, ao permitir que se institua como bem de família imóvel que não sirva de domicílio a uma família. Por outro lado, a exigência da prova documental prejudica os conviventes sem filhos, pois a união estável é completamente informal, não se comprovando por certidão como ocorre no casamento.

Outra questão interessante surge também no caso da união estável uma vez que a lei não exige para sua configuração a coabitação e a regulamentação sobre o bem de família determina que deve haver domicílio da entidade familiar no imóvel para que se constitua o bem de família, tratando-se de uma exigência específica. Assim, na nossa opinião, no caso de união estável em que os conviventes não coabitem o mesmo imóvel não poderá se instituir o bem de família [16].


5. CONCLUSÃO.

Hoje, no nosso sistema, coexistem dois regimes diversos para bens de família, uma para o bem de família voluntário e outro para bem de família involuntário. Este é regulado pela lei 8.009/90; aquele, pelo código civil. Inegavelmente, com a instituição do bem de família involuntário, pela lei especial, o instituto do bem de família passou a ter maior alcance do que o que tinha sob o regime do código civil, pois a proteção da moradia da família não depende mais do ato de previdência do instituidor ou proprietário do imóvel.

Já o bem de família voluntário conserva uma formalidade que não combina com a natureza informal da união estável, embora a legislação civil em vigor determine a possibilidade de instituição do bem de família voluntário também nesse caso.

Havendo o preexistente reconhecimento judicial da união estável ou contrato de convivência, ou ainda na existência de filhos que sejam fruto da união, a instituição do bem de família voluntário não gera dificuldades, pois o registrador tem condições de aferir a veracidade da alegação de união estável.

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Entretanto fora desses casos a questão enseja dúvidas e dificuldades, pois não é da competência do cartório de registro de imóveis verificar a configuração da união estável no caso concreto.

A despeito disso, vale lembrar que, de qualquer forma, não há que se olvidar que a residência da entidade familiar originada pela união estável se encontra protegida pelo instituto do bem de família involuntário, realizando-se a especial proteção à família preconizada no caput do art. 226, da Constituição Federal de 1988.

Sobre o tema ainda desperta controvérsia a possibilidade de se constituir bem de família para beneficiar os conviventes que não residam no mesmo imóvel, uma vez que a coabitação não é exigida por lei para a configuração da união estável.

No nosso entender, como a destinação específica do imóvel para que se constitua o bem de família é a moradia da família ou entidade familiar, não seria possível a constituição do bem de família para a proteção da união estável diante da inexistência de coabitação dos conviventes.

Vale esclarecer que não condenamos a possibilidade de instituição de bem de família voluntário no caso de união estável. Longe disso, consideramos que se trata de uma opção a mais, sempre bem-vinda, de proteção à entidade familiar. Contudo, reconhecemos que todas as polêmicas e dificuldades que ventilam essa hipótese obstam a sua verificação na realidade, no âmbito prático.

O bem de família voluntário, que já é pouco utilizado na hipótese de casamento, deve ser menos utilizado ainda no caso da união estável.


6. BIBLIOGRAFIA.

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NOTAS

1 Bem de Família: Com comentários à lei 8.009/90, p. 24-38.

2 Derecho Civil: Derecho de Familia, tomo 1, p. 558-559.

3 Instituições de Direito Civil, p. 117.

4 Curso de Direito Civil Brasileiro, 5º vol: Direito de Família, p. 192.

5 Álvaro Villaça Azevedo, op. cit., p. 93

6Op. cit., p. 93.

7 Curso Avançado de Direito Civil, vol. 5: Direito de Família, passim.

8 Bem de Família: Teoria e Prática, passim.

9Op. cit., passim.

10 Concubinato: união estável, 2 ed., São Paulo: LEUD, 1995, p. 162.

11 Norma constitucional e seus efeitos, 6 ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 109-116.

12 Francisco José Cahali, União estável e alimentos entre companheiros, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 62.

13 Irineu Antonio Pedrotti, Concubinato, cit., p. 155.

14 Concubinato, cit., p. 125.

15 Ver em sentido contrário, Rita de Cássia Correa de Vasconcelos, A Impenhorabilidade do Bem de Família e as Novas Entidades Familiares, p. 143-151.

16 Ver em sentido contrário, Rita de Cássia Correa de Vasconcelos, op. cit., p. 138-139.

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Sobre a autora
Mariana Ribeiro Santiago

Advogada. Mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Da instituição de bem de família no caso de união estável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 296, 29 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5148. Acesso em: 25 abr. 2024.

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