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Da inaplicabilidade da Súmula 84 do STJ em face da garantia hipotecária

29/04/2004 às 00:00
Leia nesta página:

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Das características dos direitos reais e dos direitos pessoais; 3. Da inaplicabilidade da súmula 84 do STJ em face da garantia hipotecária; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.


1- INTRODUÇÃO.

             Tema bastante controvertido na doutrina e na jurisprudência é a preponderância na execução dos direitos reais de credor hipotecário quando este entra em confronto com o direito do compromissário comprador do imóvel hipotecado.

             De fundamental importância para a elucidação da questão é se verificar as características do direito pessoal e do direito real, bem como diferenciar o compromisso de compra e venda com e sem registro.

             Uma vez examinadas essas questões preliminares, cabível é o questionamento a respeito da possibilidade da promessa de compra e venda suprimir os efeitos da garantia hipotecária, ddevendo prevalecer ou não sobre tal direito real.


2.DAS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS REAIS E DOS DIREITOS PESSOAIS.

             Para uma análise mais aprofundada da questão, faz-se mister um estudo preliminar a respeito das características dos direitos reais e pessoais.

             Tanto os direitos reais quanto os direitos pessoais, por seu conteúdo econômico, integram a categoria dos direitos patrimoniais, mas as semelhanças entre esses dois direitos ficam por aí.

             Os direitos reais são direitos absolutos, oponíveis erga omnes. Por essas razões exige-se a publicidade por via do registro, e a segurança da enumeração numerus clausus, havendo pouco espaço para a autonomia da vontade e prevalecendo o princípio da ordem pública. O objeto dos direitos reais são as coisas, e podem ter duração temporária ou serem perpétuos. O direito real adere à coisa, o que gera para o titular o direito de seqüela e o direito de preferência (1).

             Já os direitos pessoais são relativos, sendo oponível apenas a pessoa obrigada, a quem cabe a prestação. Em decorrência disso, o registro não é da essência do ato, sendo um "plus" de segurança, possível no intuito de tornar o negócio oponível a terceiros. No regime legal dos direitos pessoais domina a autonomia da vontade, os particulares estão livres para criar as mais variadas relações jurídicas pessoais, desde que não contrariem a lei.

             Dessa forma, não há uma enumeração taxativa dos direitos pessoais. Nos direitos pessoais, o objeto é a prestação do devedor, por isso são sempre temporários. Além disso, como não há aderência do direito a coisa, não se pode falar em direito de seqüela ou direito de preferência.

             O art. 1.225, do Código Civil de 2002, inclui o direito do promitente comprador do imóvel expressamente como direito real. Já no art. 1.227, o mesmo Código estabelece que os direitos reais sobre imóveis constituídos ou transmitidos por atos inter vivos só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis. O art. 1.417 exige ainda, para que se trate de direito real, a inexistência no pacto de cláusula de arrependimento. Apenas a promessa constituída nesses termos configura direito real e enseja a adjudicação compulsória do imóvel nos termos do art. 1.418. Do contrário, tem-se mero direito pessoal.

             Apenas se preenchidos todos os requisitos legais a promessa irretratável de compra e venda será direito real e terá oponibilidade erga omnes. A exigência da publicidade que deriva do registro é, assim, fundamental, uma vez que todas as pessoas deverão respeitar esse direito, necessitando, para isso, ter conhecimento dele. De outra forma, não haveria como vincular terceiros ao negócio original (2).


3. Da inaplicabilidade da súmula 84 do STJ em face da garantia hipotecária.

             O art. 961, do Código Civil de 2002, a exemplo do que estabelecia o art. 1.560, do Código Civil de 1916, dispõe:

             Art. 961. "O crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral".

             Da análise desse artigo, resta claro o entendimento de que, numa situação em que estejam confrontados um direito real e um direito pessoal, o direito real prevalecerá. Aquele que tem garantia real deve preferir na execução ao credor com crédito pessoal (3).

             A Súmula 621 do STF estabelecia que:

             "Não enseja embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis".

             A Súmula 84 do STJ, que veio substituir a Súmula 621 do STF, estabelece que:

             "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro".

             Vale ressaltar que tanto a súmula 621 STF quanto a súmula 84 STJ se referem a hipóteses de confronto entre direitos pessoais, tendo em vista que o compromissário-comprador que não registra o negócio tem apenas direito pessoal. As súmulas basearam-se numa jurisprudência que analisa o confronto da situação de compromissário-possuidor, sem compromisso registrado, com a situação de crédito, postulada contra o promitente-vendedor, situações de natureza idêntica, já que em ambos os casos há direito pessoal.

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             A Súmula 84 veio permitir que o compromissário-comprador defendesse seu direito pessoal por meio de embargos de terceiro, num confronto com outro direito pessoal que colocasse em risco o seu direito. Abrandou, assim, o posicionamento consubstanciado na Súmula 621, que não permitia a utilização do embargo de terceiro, para efeito de obstar a penhora da coisa, se o compromisso de compra e venda não estivesse devidamente registrado.

             Entretanto, se o direito for incompatível, se houver confronto entre direito pessoal e direito real, a súmula 84 não se aplica, pois preponderam os direitos reais, devendo o credor do direito obrigacional postular seus possíveis direitos contra aquele que em relação a ele se obrigou. Esse é o entendimento que coaduna com o art. 961, do Código Civil de 2002.

             Se a coisa hipotecada for alienada (ou seja, com transferência do domínio) subsiste para o credor hipotecário o direito de promover a expropriação do bem hipotecado, subsiste a garantia real, havendo a oponibilidade a terceiros adquirentes. A mutação na situação possessória não influi e não afeta a plenitude da garantia, conforme se depreende do art. 1.474, 2ª parte, do Código Civil de 2002:

             Art. 1.474, 2ª parte. "Subsistem os ônus reais constituídos e registrados, anteriormente à hipoteca, sobre o mesmo imóvel".

             A contrario sensu, deduz-se que o ônus real registrado posteriormente à hipoteca não prevalece, bem como os créditos não registrados.

             A hipoteca, direito real de garantia, tem eficácia erga omnes, e, por isso mesmo, não pode perecer ou ser afastado diante de situação possessória em que exista, exclusivamente, direito pessoal, ou, direito sem eficácia erga omnes.


4- CONCLUSÃO.

             Pelas razões discorridas anteriormente, o entendimento que faz prevalecer o compromisso de compra e venda não registrado sobre a hipoteca regularmente constituída mostra-se equivocado, pois está em desacordo com o nosso ordenamento jurídico.

             Mostra, ainda, o referido entendimento, data maxima venia, uma compreensão errônea da Súmula 84 do STJ, que se aplica apenas no caso de confronto de direitos pessoais.

             Dessa forma, o compromisso de compre e venda não registrado não pode valer perante terceiros, pois é exatamente o registro que o eleva à condição de direito real, dando a publicidade necessária para que tenha validade erga omnes. O entendimento contrário acaba por desvirtuar o instituto da hipoteca e torná-lo totalmente inútil para efeito de garantia. Além disso, deve-se entender que o descrédito da garantia acaba por desmotivar os investimentos no setor imobiliário.


5- BIBLIOGRAFIA.

             ALLENDE, Guillermo L. Panorama de Derechos Reales. Buenos Aires: La Ley Sociedad Anónima Editora e Impresora, 1967.

             ALVIM NETO, José Manuel Arruda. Parecer não publicado sobre o confronto entre uma situação de direito real e outra de direito obrigacional, análise da súmula 84 do STJ.

             DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, vol. 1. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

             GATTI, Edmundo. Teoria General de los Derechos Reales. Buenos Aires: Abeledo – Perrot.

             GOMES, Orlando. Direitos Reais. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

             RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 5: Direito das Coisas. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

             RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, vol. 3. Tradução da 6 ed. Italiana por Paolo Capitanio. Campinas-SP: Bookseller, 1999.


NOTAS

             1

Gatti, Teoria General de los Derechos Reales, p. 63-70.

             2

Silvio Rodrigues, Direito das Coisas, p. 319.

             3

Nesse sentido, o entendimento de Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, vol. 3, p. 188-189.
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Sobre a autora
Mariana Ribeiro Santiago

Advogada. Mestre e doutoranda em Direito Civil pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Da inaplicabilidade da Súmula 84 do STJ em face da garantia hipotecária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 296, 29 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5149. Acesso em: 4 nov. 2024.

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